segunda-feira, 5 de maio de 2008

Um pesadelo que eu tinha



Teve uma época em que eu tinha um pesadelo recorrente. É. Já me disseram que pesadelo recorrente é o primeiro sinal de loucura. Não importa. No pesadelo eu voltava para uma sala de estudantes. Começava numa espécie de tribunal. Um monte de juízes togados, com cabeleira branca, olhava uns papéis enquanto batiam os martelos. Um deles, francamente hostil, apontava o dedo para mim. E ria com um colega. Os dois eram adolescentes, ainda.
Eu olhava para cima. E as mesas dos balcões onde os juízes apoiavam os braços eram muito altas. E eram cheias de entalhes. E os entalhes eram como aqueles relevos de gesso das igrejas, com as todas as passagens do Novo Testamento. Só que não era o Novo Testamento. Eram Fábulas de La Fontaine. O lobo e o cordeiro. A assembléia de ratos. O escorpião e a rã.
Nesse pesadelo, os juízes que examinavam o currículo ficavam decepcionados comigo, com a minha carreira, com as coisas que eu começava e não terminava. Eles ficavam olhando o currículo lá de cima, detrás dos balcões. As longas cabeleiras brancas se embaraçavam. Mas nem se eu pulasse conseguiria alcançar uma mecha de cabelo. Depois eles ficavam enfurecidos e me mandavam voltar a estudar.
_Tudo bem, posso fazer uma pós – eu dizia, fingindo indiferença.
_kjdbjhagdjhfbajhbdfkjahojçlk – diziam os caras.
Nos pesadelos eu não entendo nada do que os outros falam. Tudo eu tenho que pedir para repetir.
_Como é, doutor?
_kjdbjhagdjhfbajhbdfkjahojçlk – eles repetiam.
_ Para a sétima série? Vocês devem estar brincando! Rá! Não vou mesmo! – eu dizia, batendo os pés no chão.
Mas nos pesadelos não adianta a gente esbravejar. Eu chorava de raiva, batia a cabeça, mas acabava tendo que ir. Se eu não fosse, alguma coisa me dizia que seria pior.
E de repente, lá estava eu, no banco da sétima série, na mesma sala em que eu estudei. A diferença é que ninguém me conhecia. Nem mesmo os velhos amigos, as pessoas que ficaram para a vida inteira desde aquele tempo. E eu conhecia todos menos os professores. A minha insegurança crônica estava sentada ao meu lado, vestida de Isabel. Minha timidez, de Maria do Socorro. Todos os meus medos estavam lá. Mas também estava ali, intacta, a minha coragem. E em cada rosto do passado eu encontrava um pedaço meu, que escondi, uma coisa boa, que eu deixei partir. Ali estava um pensamento redentor, uma idéia clara, um modo simples de ver as coisas. Todas as dúvidas que eu deixei que se perdessem. Todas as certezas enganosas que eu deixei que ficassem. Os novos professores, eu descobria depois, eram os mesmos juízes que examinavam os currículos.
_jhiuhalkjnlkbnalgephçknçalkhçlkhalkjdhçadkjfhçahçlkafjçlkjl?
_Não entendi. Poderia repetir, por favor?
_ jhiuhalkjnlkbnalgephçknçalkhçlkhalkjdhçadkjfhçahçlkafjçlkjl?
_Claro, não tem problema. Eu vou escrever no quadro-negro. O que é para escrever?
_SDSDSDShiuhalkjnlkbnalgephçknçdfgffgfererweweewwçlkhalkjdhçad.
_Hã? Quer dizer, poderia fazer o favor de repetir?
_ SDSDSDShiuhalkjnlkbnalgephçknçdfgffgfererweweewwçlkhalkjdhçad.
_Isso é muito difícil – eu repetia. Isso é muito difícil.
E eu então começava a rabiscar devagar, com um pedaço de giz. Tudo o que eu via era a minha mão e um pedaço de cada palavra que eu escrevia, lentamente. Com aquele barulho terrível de giz. Era muito, muito cansativo escrever todas as frases. E eu demorava um bocado até preencher todo o quadro-negro. E quando eu me voltava para a sala, todas as pessoas estavam lendo a mesma frase, na maior atenção.
_uorjekhrqopiyhkqjnfkmahlkjdfhçahfçahyfoiehçekjhçaoihaçhçha?
_O quê? Pode repetir, por favor?
_uorjekhrqopiyhkqjnfkmahlkjdfhçahfçahyfoiehçekjhçaoihaçhçha?
_O que significa tudo isso? O que é que eu quero dizer com isso?
E eu juro que não sei a resposta.

9 comentários:

Mwho disse...

Careca,
Excelente texto!
Emocionante mesmo...
Parabéns.
Abraço,

Mwho disse...

Selecionei este trecho que é para se guardar: "E em cada rosto do passado eu encontrava um pedaço meu, que escondi, uma coisa boa, que eu deixei partir. Ali estava um pensamento redentor, uma idéia clara, um modo simples de ver as coisas. Todas as dúvidas que eu deixei que se perdessem. Todas as certezas enganosas que eu deixei que ficassem."

Careca disse...

Mwho,
obrigado.
Um abraço,

Anônimo disse...

Esse post seu tá com muita cara de Pink Floyd, Another Brick In The Wall. Cruzes!

Doll Kinha disse...

Amei e me emocionei.
BjKas DollKa

Careca disse...

Camila,
nesse meu pesadelo bem que podia ter uma trilha sonora...

Careca disse...

Doll,
BjKas

Anônimo disse...

Hum, Hum, vejamos:
Um julgamento?! vc sendo julgado por juizes adolescentes e insastifeitos, sentados em cadeiras inalcançaveis? E os mesmos juizes tornavam-se professores?
isso pode ter a ver com o seu proprio padrão interno de julgamento, com a sua propria insastifação (adolescente, angustiada?, de querer sempre mais, mas que ao mesmo tempo que te rebaixa, te ensina e te cansa)quanto aos seus feitos academicos/intelectuais (?). os detalhes das fabulas tb/ sao bastante significativos, pois as fabulas tem sempre um fundo moral, aonde o mal sempre se ferra no final e o bem não tem nenhuma compaixâo. Ferro nu e cru. A cigarra morre de frio e a formiga nem se importa. Um compromisso com a verdade. As cabeleiras entrelaçando tb/ são um detalhe significativo pois os cabelos tem relação com a força (sansão), com a posição religiosa (verdades maiores) como os monges, as freiras, ou jubas leoninas cheias de poder e as vezes arrogancia. Se entrelaçando ?
Quando no final vc se cansa de escrever as frases no quadro, pode ser um certo cansaço da mente, da vida, do intelecto por esse movimento de ficar constantemente reescrevendo (buscando/elaborando) a mesma coisa (?).
E ai, Careca? Mandei bem? Quero nota para a interpretação, seja gentil comigo, gastei um tempão e pense tb/ no bocado de dinheiro que vc economizou com um bomprofissional da área. Há, há, mas é sério! O inconsciente nos fala por meio de símbolos, anterior a linguagem e estranhos consciencia.
Abraços
Xamã Valéria

Careca disse...

Valéria,
mandou super-bem! O legal de sonho, mesmo se for pesadelo, é que todo mundo gosta de interpretar. Mas eu não resisto a um trocadilho: Vou te xãmar sempre pra analisar os meus sonhos...

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