quarta-feira, 31 de outubro de 2007

Entenda o que é psicologia


Todo mundo sabe que o jogador quer mesmo é perder a grana que aposta. O vício dele não é ganhar. No máximo, ele quer juntar uma fortuna para perder. É isso que o tira do sério e injeta adrenalina nas veias. O cara é um perdedor, foi feito para isso. Essa é a sua tara. É aí que o sujeito se embica e se esbalda. E quando ele não consegue, mesmo se esforçando, perder tudo o que ganhou naquela noite de sorte incrível, ele torra tudo no dia seguinte.
_O que vem fácil, vai fácil!
O conceito vale para qualquer jogo, inclusive os esportivos. Se o sujeito gosta de futebol, nem precisa ser um apostador, o raciocínio é o mesmo. Ele gosta mesmo é de sofrer. O seu timão lidera o campeonato, é líder absoluto, mas deixa a peteca cair no último minuto. Aos 45 minutos do segundo tempo, depois de estar na frente por quatro a zero, a equipe perde de virada em gol de pênalti roubado.
_Valeu, timão. Fica para a próxima!
A lógica do contrário é a mesmo para o sujeito que gosta de trair a mulher. Ele não vê a hora de deixar aquela infeliz. Ele não vê a hora de trocar aquela mulher que o privou de tudo por aquela outra, e aquela outra, e a outra. Mas, na verdade, o traidor é o corno absoluto. Ele só irá se dar por satisfeito no dia em que flagrar a mulher com outro, transar com os dois, e ser morto por eles. É a única coisa que faz sentido.
_Perdoa-me por me traíres!
Veja o caso dos viciados. Cada vício é uma coisa diferente, mas o princípio é o mesmo do jogador: perder no final. O viciado em shoppings gasta até o que não tem para comprar coisas que não irá usar. Depois, terá que deixar de freqüentar os shoppings. O viciado em cigarro fuma por status, aceitação em grupo, por prazer, por isso e mais aquilo, mas sabe que terá que largar o vício se quiser continuar vivo, ou com pelo menos um dos pulmões funcionando. O alcoólatra é a mesma coisa. Metade da vida bebendo, pensando na birita que irá beber. E a outra metade, se estiver vivo, pensando na birita que não poderá beber. O viciado em trabalho, esse maluco, será aposentado compulsoriamente e só de sacanagem alguém dará um relógio gravado para ele.
_Puxa, depois de 55 anos de trabalho. Eu não merecia tanto!
Ás vezes você se depara com uma coisa que parece fugir à regra. Examine com cuidado a situação. Verifique quem são os santos, os pecadores, as prostitutas e as virgens. Verifique de novo e veja se não é o contrário. Geralmente é.
Mas o melhor da psicologia é a sua facilidade de aplicação no mundo prático. Por exemplo, aquele seu amigo mala que vive chamando você para participar de negócios da China. Ora, todo mundo que já leu um pouquinho de Freud sabe que a melhor maneira de fazer uma pessoa desistir de um negócio da China é se entusiasmar tanto quanto ela.
_Estou pensando em vender geladeira no Pólo Sul. O que você acha?
_Excelente idéia. Posso ser seu sócio? Quando partimos? Posso levar o pingüim da minha geladeira?
Quando a idéia é de jerico, ensina Pavlov, concorde com o animal até o próximo choque elétrico.
_Vamos abrir um boteco?
_Vamos. Amanhã mesmo. Mas você fecha. Detesto mexer com aquelas portas de metal.
Mas existem também as exceções à regra. Os caras que acham que são normais. Esses não têm cura, você sabe. E são mais discretos. Os caras metidos a normais reagem aos maiores disparates com um mero arquear de sobrancelhas.
_Hum!, eles dizem.
Uma pesquisa ainda não divulgada revela que esses sujeitos são os maiores freqüentadores de blogs do planeta. E os únicos que deixam comentários. Mas você, meu amigo, não é nada disso. Ou é?

terça-feira, 30 de outubro de 2007

Pesadelos idiossincráticos



Sou um leitor compulsivo. Leio tudo que minhas mãos conseguem alcançar e colocar diante dos meus olhos. Especialmente quando me tranco no banheiro e as crianças não podem interromper. O universo de leitura vai de livros até brochuras com informações detalhadas sobre as formas de pagamento de um bloquete de cobrança bancária. É lógico que isso teria que provocar algum tipo de problema. E o calor que vem fazendo também só poderia aumentar as conseqüências.
Para resumir, embora ainda esteja no segundo parágrafo, tenho tido pesadelos estranhos, muito idiossincráticos. Sou atacado por expressões idiomáticas, sejam elas ninfetas ou maduras, vestidas em trajes de gala ou com indumentárias típicas, estereotipadas. Pequenas palavras estrangeiras também estão se organizando para me apavorar. Sozinhas ou em gangues, elas se aproveitam do meu estado de nervos e me ameaçam. Sou uma vítima constante de galicismos e anglicismos. As palavras e até expressões aparecem uniformizadas, em negrito itálico, ou vestidas de aspas sumárias, mas equipadas com o que existe de melhor em tecnologia armamentista.
Numa madrugada dessas, uma “Uh-lá-lá” tentou me obrigar a fazer alguma coisa que não consegui descobrir o que era depois de dançar o “Can-Can” em minhas sobrancelhas. Levou uma tapona de uma “Bad Girl” que decidiu que o melhor era me congelar com um raio cósmico. Ela também estava armada de mísseis “Exocet” e certamente teria alcançado seus objetivos se uma ambígua “Bah!Tri-legal, tchê!” não viesse em meu socorro. Acho lindas as mulheres lindas do sul e sudeste, e também as do norte, nordeste e centro-oeste. O devaneio me levou a outro e mais outros e foi assim que escapei.
Na manhã seguinte, analisei com cuidado a questão. Eu estava tendo sorte pois eram definitivamente expressões heterossexuais, que não ficavam nada más vestidas em “lingerie” preta. Mas a coisa poderia mudar de figura. E essa perspectiva não me agradava. Decidi que evitaria ler qualquer coisa. Decidi que passaria a observar com cuidado as orelhas e as capas. Ficaria de olho nos efeitos colaterais. Nada de entrelinhas, nada que tivesse parágrafos inteiros escritos em letras minúsculas. Pesquisaria contra-indicações. Não leria nada que tivesse letras e números entre parênteses no início das frases. Evitaria os sujeitos que abusam de adjetivos, esse glacê vicioso dos medíocres. Especialmente antes de ir dormir. E durante o dia, graças a um livro do William Golding, cumpri o prometido. Só que à noite, precisei ir ao banheiro, sem “O Senhor das Moscas”. Encontrei um folheto sobre seguros de automóveis no banheiro, que estava sendo usado como marcador de um livro do Philip Roth.
Naquela noite, um “Bar Mitzvah” me atacou num canto de pesadelo e teria me sufocado em Complexos de Portnoy se um sujeito de quipá e filicários não tivesse me explicado o significado da expressão. Na seqüência, fui salvo pelo mesmo sujeito de um “shtetl”, que significa vilarejo judeu tradicional. Só assim é possível escapar. Com o significado correto da expressão sendo atirado, feito uma torta de creme, no rosto do agressor. Por causa disso, abandonei Roth pela metade e não leio Saul Below e Isaac Bashevis Singer há tempos.
Teria que tomar novas precauções. Mas quais? Eu me policio, evito ler qualquer pedaço de papel. Tentei os clássicos. Mas bastou ler Macunaíma, de Mário de Andrade, e pronto. Um puíto (buraco da lapela do terno para colocar flor) me salvou de uma flunfa (sujeira do umbigo), que por sua vez havia me libertado, sob protestos meus e dela, de uma cunhã (mulher em Tupi) ajeitada. Sob protestos, volto a dizer.
Mas com essa descoberta, confesso, fiquei mais tranqüilo. Embora tenha percebido que ela, a descoberta, tenha vindo acompanhada da tendência a utilizar apostos. As pequenas explicações acompanhadas de vírgulas começaram a surgir nos meus pesadelos, bem vestidas em biquínis e maiôs, mas sempre com caras e poses de bandidas. Durante semanas, elas me dominaram. Agiam em duplas, me espancavam até que, no pesadelo, eu cochichasse gírias velhas como “Tremendão!”, “Baratão!”, “Brasa!”, “Jóia!”e a campeã de todas : “Putzgrilla!”.
“Putz”, como a chamo, faz um baita sucesso até hoje. Está sempre de mini-aspas e usa um batom vermelho brilhante reforçado. Dela, eu jamais conseguirei escapar. Nunca tive a menor idéia do que significa.

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

O desconhecimento


De tudo o que não sei, o que mais desconheço é o que mais falta me faz.
Ainda recordo os dias em que soube de cor as músicas que me cortavam o coração.
E também o seu. E o de todos nós.
Já não sei mais os cortes que já me cortei.
Já não sei mais cantar música.
Já não sei mais acompanhar o vento com os meus cabelos. Aliás, já nem os tenho.
Já nem tento ver se tento ver arrefecer em tão pouco tempo o pouco de ódio que vi no seu olhar desatento.
E o tédio de louco que me provoca o meu próprio sustento.
Não existe acalanto que espante esses gritos distorcidos que me entopem a garganta.
Não existe mais música para meu desalento.
E vai chover.
O que diz a previsão do tempo?
Não sabem de nada os que desconhecem que o tempo se faz com calma, sem destempero, com a alma, sem desespero, com a chama, com a água, com o sopro e com um gosto de areia do mar no fundo do canto da boca.
Eu que já penei um lustro, dois lustros, três lustros, nem eram tigres, também já não sei, perdi o brilho de um início promissor.
A minha memória é feita de miçangas que parecem pequenos pedaços de espelhos.
Agora patino na lama dessa sarjeta pequena e escura.
Então desconheço o que não vejo mais em você, nem em mim.
Porque se é de ausências que se faz uma solidão, estou cheio de falhas completas.
Guardo multidões prestes a arrebentar o meu peito.
Falta só uma agulha para costurar um nervo exposto logo abaixo do meu coração.
Ali voltarei para mergulhar de novo na insanidade de mais dias e anos perdidos.
Depois disso, posso prosseguir sem descanso para meu precipício.
De lá, bem distante, vou contemplar achados que não valerão nada, nem mesmo os tesouros que perdi em resgate de um perdão.
Só eu sei que serão preciosos como o sorriso que eu vi escondido atrás do castanho dos seus olhos.

domingo, 28 de outubro de 2007

A indesejada das gentes II

Fui a um enterro neste domingo. Ontem, a irmã de um grande amigo foi atropelada, durante um pacato passeio de fim de tarde de sábado com as crianças. Um manobrista invadiu a calçada, imprensando-a contra a parede. Eram quatro no passeio. Meu amigo, a irmã que morreu, um bebê e outra criança. Ela estava com o filho desse meu amigo, de apenas 4 meses nos braços. À sua frente estava a própria filha, de 4 anos. Só houve tempo dela atirar a criança para o irmão e de empurrar a filha. O manobrista disse que confundiu a ré com a primeira. O bebê caiu no chão, mas passa bem. A menina também não se machucou. Mas o meu amigo e toda a sua família perderam um ente querido.
Deixou marido e duas filhas, menores de sete anos.

sábado, 27 de outubro de 2007

A indesejada das gentes




Quando a indesejada das gentes chegar/ Talvez eu tenha medo./Talvez eu sorria, ou diga: - o meu dia foi bom pode descer.(poema Consoada de Manuel Bandeira)


A morte mais bonita que eu já vi no cinema foi a Jessica Lange, em “All That Jazz”, filme dirigido por Bob Fosse em 1979, e apelidado no Brasil de “O Show deve continuar” (Deve sim, mas poderiam ter inventado um nome melhor). Jéssica fazia o papel de morte e cantava sedutoramente o dançarino/coreógrafo que vivia o personagem principal. “Está na hora. Agora vamos”, ela diz, quase no final, com um lindo sorriso. E dava vontade de levantar da poltrona e ir embora com ela. Jéssica Lange personificou uma morte belíssima, charmosa, sensual e até alegre. No telão do cinema, era alguém a quem você se entregaria, se não de alma, pelo menos de corpo.
Depois disso, não lembro de ter visto morte bonita no cinema. Fizeram um filme com o Brad Pitt, em que ele encarnava a “indesejada das gentes”. Morte masculina. Rum. E ele ainda traçava uma belezura antes de rebocar o Antônio “Silêncio dos Inocentes” Hopkins para o além, o além. Lembrei também de ter visto “Uma Janela para o Céu”, em diferentes versões. Em todas não existe morte personificada, mas uma espécie de mensageiro/mordomo que vai levar o personagem para cima, num lugar azul e branco cheio de nuvens, ou para baixo, lugar enfumaçado com chamas e muito vermelho.
Aí eu comecei a pensar na minha própria morte. Em como ela seria se fosse personificada. Na verdade, de tanto pensar em como ela seria foi que a vi, em pé, quietinha, os braços esticados colados ao corpo nu, no canto do meu quarto. Estava bem ali, meio espremida entre a estante, o criado-mudo e a parede. Era rápida como uma sombra e não me deixava ver o rosto. Ficava mexendo os cabelos, ou melhor, os cabelos se mexiam como cobras, pequenas serpentes escuras. Olhei melhor e percebi que eram mesmo serpentes. Uma quase me acertou o bote. Cada serpente soltava uma risadinha que parecia uma guitarra com delay.
A minha morte era do tipo calada, que evitava olhares diretos. Tinha calos nos joelhos de tanto me observar em minhas quedas nas sarjetas. E usava um par de óculos escuros e estranhos. A minha morte, com dentes de agulha, haveria de costurar vermes em minhas entranhas. Tinha as cicatrizes enormes dos corações despedaçados. A minha morte, e já a enganei muitas vezes, estava mais esperta, usava um anel esquisito. Tinha as olheiras das noites insones, dos exames dos fracassados. A minha morte não tinha cheiro de coisa alguma que eu conhecia. E esse odor estrangeiro me tresandava a medo. A minha morte tinha um terço entre os dedos e agora jogava dados contra as minhas vontades.
Percebi, pelo tom solene, que eu não a enganaria. Percebi, pelas tentativas de ritmos sem rimas, que ela sairia daquele canto e que eu estaria perdido. Percebi, portanto, que a minha morte não tinha vindo fazer só uma visita. E nem era hora para aquilo. Aliás, já devia ser tarde para baralho. Cadê aquela coisa? E senti seu bafo cálido na ponta do lóbulo esquerdo.
Belisquei o braço. Se eu estivesse dormindo, nessa hora eu acordaria. Mas não senti nada, só um gemido abafado. Belisquei de novo. E aí a patroa gemeu alto e me acertou uma cotovelada, com força. Com a cabeça no travesseiro, eu lembrei do poema do Bandeira. Tenho de parar de ler poesia antes de ir dormir.
A segunda morte mais bonita que vi no cinema foi a da Sigourney Weaver, em Alien 4...

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Menáge à troís


Nós quatro havíamos escapado juntos do Exército. Éramos maiores de idade e já sabíamos tomar montes de cervejas sem cair no chão ou babar na roupa. Só o Digão, que desde os 15 anos era do mesmo tamanho que o armário da cozinha, ainda não tinha completado a maioridade. Mas em dois meses isso estaria resolvido. Era até um contra-senso, pois o maior de nós, o único que agüentaria porrada para valer, que daria conta de correr 20 km com um fuzil e uma metralhadora nas costas, era justamente o caçula da turma. E também o gigante mais gentil e inofensivo que já passou pela face da terra. Descanse em paz.
Perigoso mesmo era o Jô, todos nós sabíamos. Era o menor, o mais fraco, o mais sacana, o mais irascível e, por tudo isso e menos um pouco, o mais suscetível. Era melindroso como um gambá passeando entre as grades de um canil. O Jô era terrível. Imprevisível. Sabe o baixinho de “Os Bons Companheiros”. O Jô fazia tudo aquilo, mas deixava os sujeitos vivos. Eu o vi enfrentar três caras de uma só vez e levar a melhor. E não é porque lutava bem. É porque lutava sujo, usando dentes, unhas, areia, pau, bengala e cacete: tudo o que a adolescência ainda achava que não podia usar numa briga. Quando o Jô apelava, o melhor era sair de perto. Depois, quando virou adulto, parou de brigar porque percebeu que dali pra frente só encontraria adversários do mesmo nível, que brigariam tão sujo quanto ele. Era parar ou morrer.
O segundo mais perigoso era o Sumbrái. Era o oposto do Jô. Frio. Mau. Cruel. Calculista. Curto. Grosso. Rápido. Direto. Econômico. Desviava de golpes com uma agilidade incrível. Encaixava joelhos e cotovelos como se fosse um ortopedista. Também sabia brigar sujo, mas sem abusar de dedos nos olhos. Ele gostava mesmo era de acertar o pomo de Adão dos oponentes. Nunca perdeu uma briga. Depois, quando virou adulto, parou de brigar porque percebeu que adultos que apanham podem querer se desforrar com armas de fogo. Virou advogado. Depois delegado. Acho que ainda é polícia.
Por último, havia eu. Nunca me saí muito bem em brigas. E se o Jô e o Sumbrái não tivessem me ajudado, acho que não teria sobrevivido. Valeu, amigos.
Nós quatro, portanto, estávamos entrando no mundo adulto com a fantasia acelerada pelo que ouvíamos dos outros caras e até das garotas. Os rumores chegavam distorcidos, exagerados, mas sempre excitantes. Nós queríamos sexo. Heterossexual. E nós também queríamos transar com duas mulheres ao mesmo tempo. Eu gostava de brincar, inclusive, de que esse era o verdadeiro significado da palavra bissexual. Mas queríamos sexo sem pagar. Ninguém tinha grana. Isso deveria significar assexual. Mas nós éramos jovens e não ligávamos para o significado das palavras. Aliás, não ligávamos para muita coisa.
Talvez por isso tenhamos feito a aposta de um engradado de cerveja para o primeiro que transasse com duas mulheres ao mesmo tempo. Teria que ser registrado. Foto. Isso era complicado, porque ninguém tinha câmara. E as câmaras digitais não passavam de minúsculas idéias nas cabeças de japoneses ainda não nascidos.
Ou teria que ser testemunhado. Isso também era complicado porque três testemunhas, um cara e duas garotas entupiriam um quarto comum. Mesmo assim, foi apostado. E aposta séria, com cuspe na mão e tudo. Logo depois que escapamos do Exército. Nós saímos dali, do quartel improvisado no Parque da Cidade e fomos tomar uma cerveja. E lá mesmo, naquele boteco de madeira, numa barraquinha clandestina nas costas do Colégio Santo Antônio, fechamos a aposta.
Nunca soube quem ganhou. Nem mesmo soube se houve um vencedor. Em menos de 3 meses minha vida mudou completamente. Meus três amigos inseparáveis, de vida inteira, sumiram. O gigante se mudou para outra cidade, de repente. Sumbrái entrou para a universidade, ficou importante, desconhecia os conhecidos. E o Jô ficou doente naquele ano. E depois, de seis em seis meses, passava temporadas internadas em sanatórios e hospitais.
Jamais voltei a ter amigos como eles. Nunca mais faria pactos. Mal sabíamos que a nossa geração pegaria tudo pela metade e que aqueles seriam os estertores da revolução sexual. Estávamos em plena ascensão da era da Aids e ainda com vergonha de comprar camisinha na farmácia. Talvez o vencedor tenha sido o Sumbrái. Ele não precisava de testemunhas. Ele não precisava de ninguém.

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Metamorfoses




Naquela manhã, a barata do meu quarto acordou e percebeu que havia se transformado num careca. E não era qualquer careca, era eu, o Careca. Ela se levantou, coçou o que eu sempre coçava quando acordava e procurou fazer tudo como eu sempre fazia. Enfiou o dedo no nariz e procurou o chinelo. Para variar, encontrou. E começou a caminhar em direção ao banheiro. Mas espere aí. Se eu estou vendo a barata...

Foi então que percebi que eu, por minha vez, havia me transformado em outra coisa. Pelo ângulo, pela esplêndida visão do tapete e da estante, pela sensação de estar com um rádio-relógio na cabeça, eu só poderia ter me transformado no criado-mudo. Felizmente eu não era surdo. E enxergava pela fechadura, com se fosse um olho só. Mas enxergava. E como eu não era surdo, ouvi a descarga do banheiro e o chuveiro sendo ligado. Aquele Careca, mesmo sendo uma barata, iria demorar um bocado no chuveiro. Tentei me mexer, mas criados-mudos não se mexem. Sequer abrem a própria gaveta.

Procurei me acalmar e me acalmei. Percebi que o criado-mudo é, por natureza, um tipo que se acalma rapidamente. Tentei me aprofundar na consciência de criado-mudo. Mergulhei na minha gaveta interior. Não dei nem uma braçada e já tinha chegado ao fundo. E lá havia apenas uma revista antiga de mulher pelada e duas lâmpadas. Uma queimada e outra boa. A revista era com a Vera Fischer. Eu me lembrava de ter lido com atenção a entrevista. E um arrepio percorreu os fiambres da minha gaveta central ao me lembrar do pôster com a Vera.

Estava pensando no pôster quando percebi que Careca, a barata, estava de volta, com a toalha enrolada na cintura. Percebi também, um olhar guloso em minha direção. Ou seria um olhar raivoso, superior? O Careca sempre foi meio esnobe, nariz pra cima, metido a nobre, então era natural que desprezasse a ralé dos criados-mudos. Mas quase chacoalhei as gavetas quando percebi que o Careca estava mesmo olhando para mim. E mais. Estava em vias de abrir a minha gaveta. E mais. Além de abrir a gaveta, havia acabado de pegar a minha revista.

Uma sensação de vazio tomou conta de mim. Eu agora me resumia a ser um suporte para rádio-relógio com duas lâmpadas na gaveta. E uma estava queimada. Sentado na cama, Careca, a barata, folheava a revista. Passou pela entrevista rapidamente. E era uma excelente entrevista com não sei quem. E foi para o final, ler as piadinhas. Forçando um pouco a vista do meu olho único de fechadura, percebi que Careca havia parado com as preliminares. Ele havia fechado a revista e se preparava para abri-la pela metade, direto no pôster central. Senti o ciúmes invadir os recônditos inauditos da minha gaveta. Senti a cólera assumir o comando e a minha voz sair pelo rádio-relógio.

_Desafasta, sem-vergonha. Essa revista é de coleção. Só pode folhear com luva e máscara cirúrgica, ô panaca! Não vá babar, hem...eu disse, em AM e FM.

_Gostosa!, falou a barata Careca.

_Qualé, rapaz, tu és casado. Não vá ficar na mão. Fecha essa revista e abra a Bíblia, mérmão! Lembra do Monty Pithon: “Every sperm is sacred, every sperm is good...”

_Gostosa, repetiu.

E só então percebi que a borda do poster central estava parecendo meio... roída. Aquela barata roedora dos infernos estava comendo a Vera Fischer, ou melhor, o pôster da VF pelas beiradas.

_Sacrilégio! – gritei, em Ondas Curtas.

E antes que eu engavetasse aquele Careca para sempre, eu acordei. E acordei bem. Um pouco chateado, na verdade. Talvez chato fosse mais adequado. Isso. Chato. Eu podia sentir isso em quase todas as minhas folhas...

quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Perus selvagens passeiam


Eu costumava me sentir indignado quando os americanos me perguntavam se era verdade que os macacos e as onças criavam problemas demais em nossas cidades.
_Os macacos não atacam as pessoas?
_Não, os macacos são muito mansos. Nós os treinamos para fazer cafuné nos turistas americanos. Alguns deles só aceitam gorjetas em dólar. Mas agora o euro está mais forte...
_E as onças, como vocês fazem para fugir?
_Não há perigo. As onças só aparecem em dias de liquidação nos shoppings, ou em carros de jogadores de futebol. É muito raro e até considerado de mau gosto andar com uma onça por aí.
Eu ficava chateado quando os gringos, falo sério, perguntavam sobre os jacarés em nossas ruas.
_Mas eles não impedem o trânsito de pedestres?
_Oh não, as pessoas andam com rifles. O primeiro a acertar um jacaré tem o direito de levá-lo para casa. Nós comemos a carne e o couro é usado em sapatos para exportação.
Eu ficava fulo da vida quando os caras da terra do Tio Sam queriam saber sobre os perigos da selva. Os sujeitos que achavam que da janela de casa eu via o desmatamento da floresta amazônica me irritavam.
_Vocês não fazem nada para acabar com isso?
_Sim, é claro. Todos fazemos. É uma questão de conscientização. Lá em casa só usamos a serra elétrica aos sábados, e assim mesmo só quando fazemos um churrasco de turista, você sabe, “a tourist barbecue”. Sem carvão, não há churrascão.

Também havia os que supunham, erroneamente, que eu ou alguém da minha família era pessoalmente responsável pela extinção dos botos cor-de-rosa. Eu não desmentia nada. Ao contrário, ajudava a aumentar a fantasia.
_Sim, tenho muitas saudades do meu último boto cor-de-rosa. Criei o bicho desde que era do tamanho de um iguana. Eu teria comido ele, assado, com um abacaxi na boca, mas ele preferiu tentar a sorte num aquário em Chicago. A última vez que tive notícias, ele estava em Tijuana para tentar atravessar a fronteira com um grupo de Governador Valadares. Me mandou uma garrafa de tequila. Nunca pude pegar, por causa da taxa de importação dos correios.
Mas não eram nada tolos, os americanos. Uma vez disse para um gringo que no quintal de casa havia sido encontrada uma ossada do pássaro Dodô. Ele não acreditou.
_Os Dodôs foram extintos por causa do dia de ação de graças, seu imbecil. Não deu tempo deles chegarem à América do Sul.
_Não seja bobo, um casal deles escapou no mesmo barco do marido de Pocahontas. Aliás, cientistas brasileiros já conseguiram ver alguns Dodôs vivos, na Amazônia, com a ajuda do Google Earth, eu disse.
_Aposto como era somente um bando de araras, continuou o gringo, ainda cético.
_Duvido, as últimas araras foram vendidas para um banco de DNA na Europa. Agora elas só poderão ser vendidas se houver pagamento de royalties.
_Well done.
Eu disputava papaias com preguiças, no meu quintal. Se chovesse forte meu banheiro se tornaria um refúgio de capivaras e estranhos tipos de rãs, ainda não catalogadas pela ciência. Aranhas caranguejeiras e pedaços de jibóias também faziam parte do meu cardápio. Insetos do tamanho de tacos de beisebol eram comuns em nossos pântanos. Só conheci sapatos nos EUA. Abandonamos o canibalismo, definitivamente, depois da copa do mundo de 1970. Pelé foi um dos nossos melhores presidentes. Carmem Miranda, além de cantora, também era uma de nossas santas milagreiras. Nós usamos fósforos para acender fogo, mas preferimos fazer faíscas com pedrinhas. Alguns de nós dominam a escrita, usamos conchinhas ou trocamos mercadorias por cocos e bananas. E sim, nós falamos espanhol, mas de um jeito que só os portugueses entendem.

Hoje, não. Não ligo a mínima. Eu simplesmente invejo as aves selvagens que caminham tranqüilamente pelas cidades do primeiro mundo.


24/10/2007
http://www.uol.com.br/ - Perus selvagens são vistos com freqüência em áreas urbanas de Massachusetts (EUA); as aves, que podem pesar até 9 quilos e chegar a 1,21 m de
altura, provocam medo em moradores de Boston, Cambridge e Brookline.

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Comedores de empada

Eu sou de Goiás. E lá nós nos orgulhamos do empadão que nossas mães fazem. Esse conhecimento costuma ser transmitido de mãe para filha. Minhas irmãs já dominam o segredo do empadão goiano. Eu sou um simpatizante das tradições, que exigem que sejam as representantes do sexo feminino a lidar com o forno, o fogão e a pia. Minha patroa discorda. Então nós dois freqüentamos restaurantes, fast-foods e lanchonetes. Mas um dia, juro, vou aprender a fazer o empadão.
Enquanto isso, numa dessas idas a lanchonetes, descobri, aqui perto de casa, que também os cariocas podem se orgulhar de suas empadas. Comi uma empada carioca na loja de mesmo nome e tenho arrepios só de lembrar. Boa demais. Pessoas que fazem coisas tão gostosas, como se sabe, são inescrupulosamente investigadas pela Receita Federal. Os caras da Receita presumem que pessoas dedicadas a proporcionar prazer aos outros, ainda que gastronômicos, sejam sonegadores contumazes de impostos. Talvez tenham um pouco de razão. Eu, por minha vez, presumo que os sujeitos que trabalham na Receita Federal sejam sádicos contumazes que só conseguem sentir prazer arrancando o máximo de dinheiro possível dos contribuintes. Talvez eu também tenha um pouco de razão. Mas, voltando à empada carioca, supimpa.
Então, espontaneamente, passei a fazer propaganda bucal da lanchonete e do empadão carioca. Meu amigo mineiro protestou. Disse que a empada mineira também é muito boa. O pernambucano também ensaiou algumas alegações, por isso tive que estabelecer uma escala de qualidade da empada, de seis mil pontos. Nela, lamento dizer, as empadas mineiras e as pernambucanas não atingiram o nível de excelência – acima cinco mil e 700 pontos. Percebi, para meu espanto, que o mineiro e o pernambucano não aceitaram os meus critérios de pontuação, baseados na quantidade de saliva produzida ao me lembrar das empadas. Como sou um cara absolutamente guiado por critérios científicos, eu os desafiei a elaborar um critério melhor do que a produção de água na boca do comedor de empadas número um desse país. Vieram com uma conversa mole de pesquisa quantitativa. Pesquisa quantitativa é o quadrado! Portanto, vencida a discussão, finquei pé nos critérios absolutamente qualitativos que devem guiar qualquer juízo de valor do ser humano de bom senso e mandei pernambucanos e mineiros às favas. Às favas, eu diria novamente.
Isso aconteceu na manhã de sábado. Para não dar o assunto por encerrado, lá pelas cinco da tarde, da varanda de casa, passei a monitorar a freqüência à lanchonete, com a ajuda de um potente binóculo que usava para outros fins. E eis que bastaram alguns minutos de tocaia para perceber um freguês atípico na lanchonete. Com um boné de beisebol da Praia do Forte e um par de óculos escuros do tamanho da viseira do Homem-Aranha, meu amigo pernambucano procurava se esconder atrás de uma pilastra, fazendo gestos para ser atendido. Aplicado como sou em leitura labial, pude notar que ele pedia insistentemente “um refri e uma carioca, sivousplé”. Regulei o binóculo para o máximo e vigiei as expressões despudoradas da degustação do Recifense.
O animal da “Veneza brasileira” pediu outras três empadas, sem esconder a cara de satisfação em nenhuma. E teria continuado se, de repente, não percebesse, pela direita, a aproximação de outro fã de beisebol, com o símbolo do Cruzeiro. Era o Mineiro, é lógico. Também pediu a carioca, “pliis”. O homem de BH saboreou outras três, fazendo caras lúbricas e repletas de concuspicências.
Pensei em armar um flagrante, me disfarçar de vendedor. Pensei em subornar o vendedor de empadas para ele introduzir um papel em cada empada comprada pela dupla. No papel estaria escrito: “eu sei o que vocês fizeram com a empada carioca”. Ou: “estou vendo vocês da varanda, seus bocós”. Ou: “com os cumprimentos do Careca”. Mas achei brega e achei pouco.
No sábado seguinte, no horário do chopp, as empadas voltaram a ser assunto. E, sem que eu precisasse falar muita coisa, a minha escala de qualidade da empada foi oficializada. Vitória do bom senso.

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Complexo de vira-latas

Os dissidentes russos se preocupavam demais com o seu país. Fora dele, na Europa e nas Américas, se reuniam em guetos para falar mal do tzar. E depois da revolução, para falar mal de Lênin. E depois dele, de Stalin. E depois de Stalin, do comunismo. Eram malas saudosos do que não tinha jeito nem solução.
Brasileiros são iguaizinhos. Fora do país, reúnem-se em guetos para comer feijoada e falar mal do governo de plantão. Sentem saudades do que já funcionou e agora não tem mais jeito de funcionar. Éramos uma república de favores entre poucos conhecidos. Agora já não pode ser mais assim. Mas ainda temos saudades do jeitinho, da gentileza de quem era simpático e nos deixava passar na frente na repartição pública. Do quebra-galho que arrumava uma solução de última hora. Do arranjo do esquema que nos poupava tempo, mas que encrencava a vida de quem não tinha a mesma sorte. E isso está acontecendo porque a tolerância contra os fura-filas está diminuindo. Até mesmo nessa cidade, onde isso sempre foi notório. Ninguém buzina. Ninguém protestava contra o fura-fila. Agora já não é assim.
Outro dia eu estava lá no final da fila para fazer um retorno em frente ao Hospital da Universidade. Lá existiam até alguns bloquetes de concreto para impedir os furadores de filas. Mas algum destruidor do patrimônio público tratou de marretar os bloquetes. Já não existe obstáculo para se furar fila. E alguns espertinhos se aproveitam disso. Mas não naquela segunda-feira mal-humorada. Lá do final da bicha, como se diz em Portugal, eu vi um Tucson cruzar a pista para pegar o retorno e furar a fila. O carro que estava lá na frente não deixou, apesar do Tucson tentar enfiar o para-choque. Era um Fiat 147, bege, provavelmente de 1981. Ele não só impediu o Tucson de entrar como forçou um pouquinho e emparedou o carro fura-fila. Ele só passaria se fosse por cima do Fiat 147. Deu para sentir uma corrente elétrica de “perigo-lá-vem-briga” entre os motoristas, que mexiam as cabeças e olhavam pelos retrovisores, inquietos. A matilha sentiu o cheiro de confusão no ar. Eu desejei ter um binóculo no carro para assistir ao espetáculo.
O segundo movimento foi feito pelo motorista do Tucson. Ele abriu a porta do carrão e exibiu um belo par de botas de couro. Eu estava longe. Minha vista turvou. Mas pelo que percebi, o sujeito era um pouco menor do que aquele ator que fazia o papel de um super-herói verde e furioso na televisão. Não entendi o que ele gritou mas deve ter sido ofensivo. O motorista do Fiat, por sua vez, também saiu do carro. Para ficar nas comparações com velhos seriados de TV, o segundo motorista era pouco maior que o Tatu, aquele anãozinho que gritava “Patrão,um avião, um avião” numa ilha paradisíaca. Os dois se encararam por alguns segundos. O incrível motorista do Tucson exibiu alguns músculos que eu não sabia que existiam ao apontar para o anãozinho. O motorista do Fiat, que eu vou chamar de Tatu, não se intimidou. Lá de trás eu vi Tatu chutar o pneu do Tucson. O motorista musculoso, que eu vou chamar de Arnold, deu um tapão no capô do Fiat. O pára-choque do Fiat caiu no chão. Tatu ficou furioso. Pulou e arrancou os próprios cabelos, igual àquele pirata ruivo do desenho do Pernalonga. Arnold voltou para o carrão. Tatu foi pegar o para-choque. Arnold engatou uma ré. Tatu tentou acertar a frente do Tucson, mas só pegou de leve. Mesmo assim, a galera vibrou quando o farol de Arnold foi estilhaçado. Tatu brandiu o para-choque por alguns segundos enquanto o Tucson sumia no horizonte. Sob aplausos, Tatu colocou o pára-choque no carro e seguiu caminho. O anãozinho pobre colocou o gigante endinheirado e pilantra para correr. O vira-lata ganhou.
É lógico que não aconteceu assim. Depois que a minha vista turvou, o Arnold enfiou o para-choque cromado na lateral do Fiat 147. Xingou Tatu de filho de uma mãe que faz sexo por dinheiro. Avançou acelerado e impune. Furou a fila e ainda ligou uma buzina ridícula de música para chatear os que ficaram para trás. A maioria dos brasileiros se preocupa demais com o país. Mas um punhado de idiotas não está nem aí. Infelizmente, são esses que mandam. E que não deixam o país melhorar.

Moral da história:
Os vira-latas não ganham. Não adianta ter razão. O mundo é mesmo de quem tem grana.

sábado, 20 de outubro de 2007

A águia e a coruja

Todo mundo conhece a fábula da águia e da coruja. As duas aves resolvem parar de brigar. Selam as pazes devorando juntas um pombinho distraído. As novas amigas também juram que nunca irão tocar nos filhos uma da outra. E como reconhecê-los? _Se forem três pimpolhos lindos e maravilhosos, bem feitinhos de corpo, alegres, cheios de uma graça especial que não existe em nenhuma outra ave, pode se afastar que são os meus filhos, disse a coruja. E no dia seguinte, a águia encontra os filhotes da outra. _Horríveis bichos!, disse ela. Vê-se logo que não são os filhos da coruja.E come os filhotes. A coruja retorna e encontra só umas peninhas manchadas de sangue. Acha também uma pena de águia e resolve tomar satisfações._O quêêê? Aqueles monstrengos eram seus filhos?E a moral da fábula é: quem o feio ama, bonito lhe parece.Portanto, só para resumir, eu não tinha motivo nenhum para duvidar da minha amiga Maira sobre os atributos da namorada do Francisco Natalício, um amigo nosso, que foi morar no Rio de Janeiro. A Maira é bem casada, feliz e sorridente e não teria motivos para exageros ou mentiras. Ela descreveu a namorada do Francisco como “carioca descolada”, “uma mulher linda de morrer”, “maravilhosa”, ¨tentação”, “pedaço de mau caminho”, “artista de cinema” e “carne de primeira”, para acrescentar que o nosso amigo estava mais feliz que pinto no lixo. Acreditei. O Francisco é um cara muito legal e merece toda a felicidade do mundo, ainda mais se for no Rio, ao lado de uma beldade encarnada que deveria estar fazendo sucesso ao lado de Nicole Kidman. A descrição da namorada aconteceu há uns dois anos, mas ficou entranhada na minha cabeça. A cada vez que um dos amigos mencionava o Chico, das saudades dele e do seu bom humor, do seu jeito goiano de ser, eu me lembrava dos adjetivos citados acima entre aspas. A eles, por conta própria do passar do tempo, acrescentei outros: “diva da Barra”, “gata”, “leoa de Copa”, “felina carioca”, “magnífica”, “madona” e “Afrodite do Leblon”.E assim, num dia desses fui para mais um almoço entre amigos e quem abriu a porta foi a namorada do Francisco._ Você só pode ser o Careca, o Chico falou muito de você, é o único que não tem cabelo, só pode ser, é o Careca não é, e cadê a Patroa ?, o Chico falou que você é o único que chama a mulher de patroa sem apanhar, cadê ela?, trouxe cerveja?, pode entrar, quase ninguém chegou ainda...Meu Deus, o que era aquilo? Imagine a Catherine Zeta Jones sem botão de pausa e com o botão de avançar apertado. Era ela. Espetacular. Mas só se você estivesse de fone de ouvidos. A mulher do Chico era uma beleza acelerada, uma Ferrari faltando apenas uma volta com a Mclaren na cola. Bonita de se ver, mas fazia um barulho danado.Consegui balbuciar algumas exclamações e fui me esconder próximo à geladeira, sob o pretexto de guardar as cervejas. O Chico não estava, ainda tinha pouca gente, de forma que não tive alternativa a não ser sentar ao lado e ouvir a saraivada de palavras da namorada do meu amigo. Entre 10 perguntas, eu conseguia encaixar meia resposta em uma breve pausa para respirar. Estávamos assim, num monólogo entrecortado por onomatopéias, igualzinho ao Galvão Bueno pedindo comentários para o Romário, quando a Maira chegou._Puxa, Maira, o Careca é muito legal, mas não é o conversador que você tinha falado, aliás ele quase não fala, e você disse que ele gostava de contar histórias, e não me contou nenhuma, aliás, Maira, ele é mais careca do que você tinha avisado, puxa, ele é totalmente careca...E então eu me lembrei da coruja e da águia.

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Palomas

O pai de Picasso tem 43 anos quando o filho nasce, em 25 de outubro de 1881. Era um pintor provinciano. Foi professor de pintura e conservador de museu de arte durante algum tempo. Não deixou quadros aclamados. Parece que seu maior sucesso foi mesmo ter sido pai do gênio da pintura. Don José Ruiz y Blasco, pai de Picasso, não era um mau desenhista, nem tampouco brilhante. Antes do filho nascer, era visto em Málaga como um sujeito que gostava de pombos. Na biografia de Picasso, de Gilles Plazy, ele afirma que Don José era conhecido como um “especialista em pombos (ele os cria antes de pintá-los)”. Também gostava de touradas, como todo bom espanhol.
Mas há quem diga que não é nada disso. Com alguns cliques no Google, você encontra informações sobre estudiosos que afirmam categoricamente que Picasso fraudou o próprio pai. Ele teria assumido diversas pinturas feitas pelo pai como suas. Os estudiosos afirmam que isso foi feito como forma de dar continuidade à criação do mito de gênio em torno de Picasso. E teria tido a conivência da própria mãe de Pablo. Esses estudiosos afirmam que os diversos museus do mundo que ostentam essas obras como sendo de Picasso deveriam devolver o dinheiro ao público.
Eu não iria tão longe. Aliás, eu não daria sequer um passo nessa direção. Em primeiro lugar porque acredito em boa parte do mito e considero Picasso o grande, o maior artista e mexedor de pincéis e tintas do século XX. Ele tem mais de 45 mil obras atribuídas, sendo pelo menos 20 mil catalogadas. É obra pra dedéu. A acusação de furto e fraude envolve o período em que Picasso teria entre 10 e 16 anos. Ou seja, os tais estudiosos não admitem como verdadeira a parte do mito que fala em criança prodígio. Eu não ligo a mínima para isso. Para mim, o gênio não precisa ser, necessariamente, prodígio. Aliás, de prodígio, basta Mozart. Acho que Picasso não foi uma criança modelo e provavelmente era pouco mais que um analfabeto funcional até os 20 anos. Mas pintou e desenhou horrores. Também acho que alguma centelha se acendeu no rapaz depois dos 16 anos. Ele era preguiçoso e mimado. De repente, torna-se incansável, um sujeito que não consegue ficar parado com o lápis. Testa tudo e o tempo inteiro. E assim será. Futucará a onça com o lápis de cor até o fim da vida. Foi um gênio ao vencer a preguiça.
Resolvo bancar o detetive, à la Nero Wolfe, no conforto da minha poltrona. Tem alguma coisa nessa história de fraude que me parece verdadeira. Os tais especialistas falam que o quadro “A primeira comunhão” foi obra do pai de Picasso. E isso é muito importante. Com esse quadro, Picasso venceu o primeiro concurso de que participou. Com isso, obteve apoio do tio Salvador para os primeiros estudos. Foi um estímulo do pai para que estudasse? Talvez. Para mim, a religiosidade de Picasso é tão grande quanto a cabeça de um alfinete. E o quadro é tão certinho... Bom, havia a necessidade de bajular o tal tio Salvador, esse sim, muito devoto, o que explicaria esse quadro e também outro, chamado “Ciência e Caridade”.
Alguma coisa aconteceu com o menino Pablo. O que foi? Aos 13 anos perde uma das duas irmãs. Aos 16 anos, em outubro de 1897, passa o aniversário sozinho, em Madri., estuda na academia San Fernando com um velho amigo de seu pai, o professor Degrain. Não é nada aplicado. Conhece Toledo em uma visita e as obras de El Greco. Tenta copiar freneticamente tudo o que vê do mestre a partir daí. Em junho de 1898, depois de uma escarlatina, está de volta à casa paterna. Traz um boletim não muito bom de Degrain. Deve ter tomado uma senhora bronca do pai. Prefere se curar de vez em Horta de San Juan. Depois dirá que tudo o que aprendeu, aprendeu em Horta. É aqui que existe uma guinada. O que aconteceu com Picasso em Horta? Foi ali que virou gente.
Depois de alguns minutos observando o nada, verifico com pesar que não possuo nem um centésimo de milésimo do talento extraordinário de Nero Wolfe. Volto aqui para terminar esta crônica. E volto apenas para comentar que um dos primeiros desenhos que me lembro de ter visto na vida foi uma “Pomba da Paz”, que Picasso pintou em 1949. Em 1950, também para figurar em pôster do Congresso Mundial de Partidários da Paz (Congrès Mondial des Partisans de la Paix) ele pintaria uma outra, mas em nenhuma dessas aparecem os raminhos de oliveira. Mas a partir da série de "El rostro de la paz" que celebra o trigésimo aniversário do Partido Comunista em 1950 a paloma surgirá com o raminho e será pela pena de Picasso que se tornará o símbolo Universal da Paz. Pois antes não era. E não posso deixar de pensar que Picasso, com as Palomas, encontrou um jeito seu, muito particular, de agradecer e homenagear seu pai, Don José.

1949. 9 de enero. Realiza la litografía de La paloma.
Febrero. Aragon escoge La paloma para el cartel del Congreso de la Paz, que se va a celebrar en el mes de abril en la Salle Pleyel de París.
8 de marzo-2 de abril. Exposición de las últimas obras de Picasso en la galería Buchholz de Nueva York.
19 de abril. Nace Paloma, segunda hija de Picasso y Françoise.
20 de abril. Se inaugura el Congreso de la Paz en la Salle Pleyel.
Abril. Exposición de Picasso en la Galería de Arte de Toronto.
Primavera. Regreso a Vallauris para adquirir los talleres Fournas, donde trabajará a partir de entonces.
Julio. Exposición de 64 obras de Picasso en la Maison de la Pensée Française de París.
(Mais em http://www.museupicasso.bcn.es/guerraipau/cast/crono_cast/1949.htm )

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Piñata

O mundo está que é só uma grande aldeia. E já começamos a imitar hábitos de outras tribos. Pois não é que outro dia eu estava numa festa de aniversário de menino com Piñatas. Os meninos todos em círculo, um indiozinho com venda, um porrete na mão e ali, pendurado no galho de uma árvore, uma piñata. Tinha a forma de um pássaro, com um bico fino e estreito. Depois vim a saber que era uma representação estilizada de um colibri mexicano, de mais ou menos 50 centímetros de comprimento.
Si, pero que si, pero que no. Jamais poderia adivinhar pelos restos mortais da tal piñata. Seguramente, se fosse um ser vivo, seria necessário um exame de DNA para descobrir que bicho era. Isso porque o moleque que estava com a venda não demorou dois segundos para acertar uma tremenda porretada no tal do colibri. Embalado, o colibri de papel rachou ao meio e derramou uma chuva de balas e doces sobre as crianças. Em um milésimo de segundo foi puxado pelo bico e disputado a tapas e chutaços pelos pimpolhos. Foi triturado, estilhaçado e espicaçado nos escassos segundos que uma Ferrari leva para trocar os quatro pneus no Box de uma corrida. Depois disso, não restou nada da piñata, a não ser alguns minúsculos pedacinhos de papel, menores do que confete.
Fiquei surpreso pela tal piñata. Mas depois um dos pais ali presentes me informou que agora é comum ter festa com piñata. Ele mesmo já tinha ido numas três ou quatro só naquele mês. Fiquei surpreso pela enorme quantidade de festas de aniversários a que meu interlocutor comparecia. Mas era lógico. Em setembro, nove meses depois das férias, os aniversários abundam. Aquela, no entanto, era a minha primeira festa com piñata.
No sábado seguinte, eu estive em outra festa. E lá também teve piñata. Era enorme. Uma grande cabeça cinza de elefante em papel machê, com muitas fitas coloridas e um belo par de presas forradas com papel camurça. Os indiozinhos estavam todos ali, em círculo. Um bastão de beisebol foi entregue para o aniversariante. Dessa vez fizeram a coisa direito. Rodaram o menino vendado até que perdesse um pouco o equilíbrio e o soltaram. Ele não sabia que estava longe do alvo. De verdade. Tentou olhar por baixo da venda. Não deu. Tentou umas três porretadas e desistiu. Em seguida, outros meninos tentaram a sorte. Meu filho foi um dos últimos. E acertou de leve na cabeça de elefante, com grande torcida da meninada. Até que o aniversariante voltou e acabou com a brincadeira. Como da outra vez, sobraram apenas confetes.
Então eu encontrei o mesmo pai da última festa.
_ Não falei. Piñata agora é moda, comentou, como se tivéssemos conversado há apenas dois parágrafos.
_É, bacana, eu disse.
_Você é mexicano?
_Não, eu sou brasileiro.
_Eu também.
_ E gosta de piñatas?
_Esta é a segunda que eu vejo.
_Eu já estou cansando.
_ Podia ser pior...
_ Pior como?
_Podia ser aquela dança caribenha, com bastão...
_Calypso.
_Ispso, você tem que passar debaixo da barra, sem perder o ritmo, joelhos pra frente, dobrar o corpo até o ombro quase tocar o calcanhar...
_Calypso, ele repetiu. É terrível. Já estive em duas festas com isso. Em geral, são os pais que dançam o calypso depois dos cumplyanos.
Um calafrio tomou conta da minha espinha.
_Cumplyaños?
_Parabéns. Depois dos parabéns.
E no sábado seguinte, eu chego para mais um aniversário. Depois dos cumplyaños e das guacamoles e de uma ou duas tequilas, uma barra é equilibrada sobre dois apoios, as marimbas, os chocalhos e as castanholas são preparadas e os mariachis e os ritmistas caribenhos botam para quebrar. Fico pensando nessa aldeia global e não deixo de dar uma risada ao imaginar um monte de mexicanos comendo feijoada, enchendo os cornos de caipirinha e dançando pagode depois de cantar parabéns.

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

O saudosista do supermercado

Se depender da caixa do supermercado, serei um velho mesquinho e zangado. Sou saudosista. Gosto de lembrar do tempo em que éramos bem tratados nos supermercados. Eles ainda não eram os campeões do varejo. Eles nos disputavam com a quitanda e a mercearia da esquina. Para acabar com essa concorrência, os supers ofereciam promoções o tempo inteiro. Hoje é só o esculacho. Acabaram com o Sinca Chambord. A maioria mal oferece o saco plástico para embalar a mercadoria. O caixa pesa tudo na hora, o que é bom. Mas fica olhando você se esforçar para colocar as compras rapidamente nas sacolas, acelerando a esteirinha com sadismo. Quando elas aceleram muito a esteirinha, eu começo a vetar itens já registrados. É o único jeito de ganhar fôlego.Detesto isso.
Meu amigo Rodrigão é quem sabe lidar com essa gente. Ele impõe respeito, com seus dois metros de altura, sua envergadura de condor. Ele parece um armário, sem maçanetas. É reto, duro. O cara tem ângulos obtusos e um cérebro dentro. É especialista em computadores e análise de sistemas. Quando o meu micro estraga eu levo para ele. Ele arruma em trinta segundos e não cobra nada. O cara é um gênio.
Pois o Rodrigão não mexe um dedo no caixa do supermercado. Ele aproxima o carrinho do balcão com a esteirinha e tira um ou dois pacotes. A fila começa a se formar atrás dele. Ele olha para as unhas. As pessoas atrás dele começam a reclamar, que a fila não anda, etc. Ele se vira, lentamente, e boceja, exibindo tríceps e bíceps. As pessoas se calam. Alguns, assobiam em disfarce, dão um jeito de trocar de fila. A caixa, com todo o respeito, pergunta se ele deseja um empacotador. Ele grunhe em assentimento. O empacotador chega e realmente empacota tudo, com separação e cuidado. Vidros com vidros, latas com latas, verduras com verduras, carnes com carnes. O Rodrigão dá duas moedas de 25 centavos para o empacotador. O cara quase chora de agradecimentos. Quando ele paga, a caixa sorri e agradece efusivamente. O gerente sai do cubículo onde se escondem os gerentes de supermercados e vem cumprimentá-lo. As pessoas da fila aplaudem a sua sabedoria compradora, o seu sucesso supermercadista. Nunca lhe ofereceram um cartão do super. Ninguém do super jamais se meteu a besta com ele.
Comigo é ligeiramente diferente. A caixa pergunta se eu tenho o cartão do super. Eu digo que não. Ela passa a grunhir comigo. Quando eu peço um empacotador ela nem tenta suprimir um sorrisinho de escárnio. E não chama ninguém. Nesse meio tempo, ela se divertirá comigo. Ela irá acelerar a esteirinha e entupir o balcão de mercadorias registradas.Lá para o final, quando eu estiver colocando a última coisa na sacola plástica aparecerá um empacotador para me ajudar. E esse cara ficará grudado em mim, me olhando com olhos pidões e mão estendida até que eu saque uma nota de dez reais.
Mas o pior é a fila. Se carrinho de supermercado tivesse buzina eu seria um campeão de buzinaços. Já levei até vaia da fila, imagine. Mas mantenho a minha pose de homem independente e que se vira sozinho. Tudo, porém, tem um limite. Teve um dia em que depois de passar pela seção de especiarias, decidi mostrar que também sei chatear um caixa.
_As nêsperas libanesas vão ficar, eu disse.
_Já registrei.
_Ah, bom. Então vai ter que cancelar.
_Vou ter que chamar um gerente.
_Melhor chamar uns dois ou três, vamos ter um bocado de trabalho.
_O quê?
_Nada, não.
_E aí?
_O quê?
_Vai levar a nêspera libanesa?
_Não. Pode cancelar.
_Para cancelar vou ter que chamar o gerente.
_Chame, chame.
E a fila começa a protestar. Uma velhinha de seus 90 anos se aproxima, ameaçadora, e me dá uma bolsada.
_Peraí, minha senhora, sou careca mas não sou Dirceu.
_O senhor faça o favor de pagar logo e deixar a fila andar.
Mas olho para o fim da fila e resolvo mesmo bancar o durão. Hoje estou com sorte e não vou facilitar para ninguém. Resolvo vetar mais um item das compras.
_As uvas, pode cancelar as uvas.
A caixa ameaça um protesto até prestar atenção no gesto que estou fazendo para o final da fila. Ele se aproxima lentamente, como o início de avalanche. E logo está ao meu lado, sorrindo para a Caixa e a fila silenciosa. Carrega apenas um pacote de mostarda italiana.
_ Rodrigão, meu amigão, que bom te ver!

terça-feira, 16 de outubro de 2007

Um til de porta

Eu não achava a menor graça em histórias de crianças. As mães e os pais orgulhosos que se vangloriavam dos ditos e feitos de seus moleques eram por mim relegados ao esquecimento. Eu desprezava os atores mirins, achava ridículos os meninos dançarinos, os pequenos prodígios que apareciam na televisão e no cinema. E achava também uma tremenda babaquice os pais desses meninos e meninas permitirem que fossem explorados em seus talentos.
Hoje penso de forma diferente. Fico bobo de ouvir sobre os prodígios da meninada alheia, me amarro em ver artista mirim e parei de recriminar os pais desses meninos e meninas. Não acho que eles são mais felizes ou infelizes que outros meninos. Não tenho a menor idéia sobre o que faria se tivesse um filho ou uma filha prodígio. E parei de ter opinião formada sobre esse e um monte de assuntos.
Depois dessa introdução, peço desculpas para contar uma história sobre o meu filho, que está com menos de cinco anos. Sou meio metido a ler histórias para ele e também gosto de incentivá-lo a desenhar. Ele aprende rápido, mas é difícil segurá-lo na frente de um papel por mais de 15 minutos. Com um laptop já é diferente. Posso ficar uma hora que ele prestará atenção. Se tiver Internet, duplico esse tempo de atenção. Pois já faz algum tempo que estou repisando as letras do nome dele. E ele aprendeu todas, inclusive o til. Volta e meia ele tenta rabiscar o próprio nome, mas a letra ainda é muito trêmula e a forma é mais uma intenção do que fato. Entretanto, posso utilizar o tipo de letra que eu quiser que ele reconhecerá as letras e as colocará na ordem certa para formar o próprio nome.
Estou realmente orgulhoso desse aprendizado rápido, pois não devo ter insistido mais do que uma semana com essa história. E até me assombra um pouco a dedicação com que ele pega uma caneta hidrocor e procura um espaço para escrever o nome. É bem verdade que esse espaço muitas vezes não é apropriado. Ele gosta das paredes, do sofá, da tela da tv e da mesa branca do computador. Eu evito correr atrás dele para uma palmada, como lembro da minha mãe ter feito. Não tomo a caneta, como também lembro de ter ocorrido comigo. E também não dou bronca, nem puxo a orelha. Só explico que o sofá está estragado e sujo. Que a parede terá de ser lavada e, talvez, repintada. E que agora ele terá de se acostumar a ver desenhos entre as letras e rabiscos da tela da tv.
Ele compreende. Mas também sugere suas próprias soluções. A começar pela substituição do item estragado pela tinta da caneta hidrocor.
_Ah pai, a gente compra outra parede.
_Ah pai, a gente compra outro sofá.
_Ah pai, a gente compra outra tevelisão(que é como ele fala tv).
Eu também explico que isso, se acontecer, só poderá ser feito assim que eu tiver muito dinheiro, o que deverá demorar um século, ou dois. E é bom, porque assim explico o que é século, lustro, biênio. Explico o que é dinheiro. Explico como é difícil ganhar dinheiro. Explico que dinheiro não dá em vídeo game. Explico que nem se você brigar na rua vão aparecer moedinhas para pegar. Pais têm que ser criativos na educação dos moleques, no enriquecimento do vocabulário. E assim vou levando, até o dia em que ele surge com uma novidade:
_Pai, a gente compra outra porta de carro...?
Esperto como eu sou, percebi logo a similaridade da construção frasal. Pensei com meus botões que mancha de caneta hidrocor deveria sair com alguma coisa. E já fazia uma retrospectiva mental para encontrar o melhor removedor de tinta quando ele terminou a pergunta:
_... azul?
Sundown. Eu lembrei. Aquele protetor solar remove até mancha de piche, que dirá uma simples...Azul. Peraí. Peraí.
_Filhote, o carro do papai é cinza.
_Eu sei. Mas a gente compra outra porta de carro azul?
E dois minutos depois, nós olhávamos para o carro azul importado do vizinho. E lá, firme e forte, estava um longo arranhão em curva na porta do motorista. Semihelicoidal, a forma seria bela, se não significasse um prejuízo. Senti as minhas orelhas começarem a ferver, o que também me lembrou dos puxões de orelhas que já recebi.
_Mas por que você arranhou o carro?, perguntei, procurando manter a calma.
_Pai, isso não é um arranhão.
_Então o que é esse risco?
_Não é risco. É um til.
_Um til?!
_Um til de porta.
Vou procurar ajuda profissional, pois num breve relance pelas portas dos carros na garagem, percebi que meu filho já domina o alfabeto.

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Eu voei para Pasargada

Faz um bom tempo que eu não sonho que sei voar. Deve haver uma penca de boas explicações psicológicas para esse tipo de sonho. É complexo de superioridade. É sublimação de complexos. É pura satisfação. É um orgasmo sem ejaculação. Não importa. Seja isso ou seja aquilo, o fato é que faz um bom tempo que não sonho que sei voar.
Acho que todo mundo já teve esse sonho. É um troço bem popular. Basta reparar no número de músicas de sucesso sobre o tema. Ou na quantidade de heróis de quadrinhos, de filmes, e de um monte de ícones da cultura de massa que voam, com ou sem penas. Lembro de uma história em quadrinhos do Laerte, publicada na extinta re vista Circo, que trata do vôo com penas. O personagem principal descobre umas peninhas nascendo nos braços e que pode voar. Faz parte de uma turma que é metida a dona do mundo. Não lembro como termina.
No meu caso, não tem penas. Sonho que, quase do mesmo jeito que Peter Pan, eu preciso pensar numa coisa boa para começar a levitar. É uma coisa boa específica, que sempre funciona. Mas é mais do que uma coisa, um fato. É um sentimento que deve me envolver completa e verdadeiramente para que as engrenagens da levitação comecem a funcionar. É algo muito tênue, específico, como um sabor de vinho gostoso que fique rumorejando no fundo da garganta e você não quer comer mais nada para que aquele gostinho não suma.
E é sensacional saber voar. Começar a levitar devagar, como se fosse homem-balão, com o peso caindo de mim como sacos de areia. Aproximar a cabeça do teto e tocá-lo, de leve, como se fosse um astronauta no vácuo. Aí, sem gravidade, deixar os braços flutuando, tocar os nós dos dedos na luminária. Depois, também devagar, concentrar o pensamento no calcanhar, contrair os músculos da barriga, como se estivesse na piscina, boiar de barriga para baixo.
Só então é que olho para baixo. Vejo a cama, a estante, o armário, o pequeno tapete, o criado-mudo e o telefone de uma nova perspectiva. Em cima da estante, quase alcanço aquela revista que procuro há meses. Pressiono os nós dos dedos contra o teto, sou um homem flutuante. Não é isso que eu quero. Eu quero é voar rápido. Ser veloz. Mas só flutuo. E se não fosse o teto, talvez flutuasse até me perder na atmosfera. No ar rarefeito. Não seria nada bom. No sonho eu penso sobre o que fazer para voar depressa. É um outro sentimento, é uma outra coisa que deve envolver o meu coração. (Continua)

domingo, 14 de outubro de 2007

Aquilo que os pais fazem

Um dia alguém me falou que os meus pais faziam aquilo.
_Aquilo o quê, ô Vlamir?
O Vlamir era um poste bossal meio valentão que morava na quadra de baixo.
_Aquilo ué. Aquilo que o macaco faz no pé de côco.
Teria levado um socão na hora, se não fosse a turma do deixa disso. E olha que o Vlamir era o dobro no tamanho e quase o triplo no peso. Não queria nem saber. Teria bordoado de primeira, sem pestanejar.
Um outro menino, o Leônidas, também quis dar pitaco.
_ È isso mesmo, ô Careca! Todos os pais fazem aquilo.
_Os seus podem fazer. Os meus não. Nem a quilo, nem a grama.
_Deixa de bobeira, cara.
_Nem vem, Léo. Pópará.
Cheguei em casa e contei para o mano.
_O Vlamir falou que o papai e a mamãe fazem aquilo.
_Falou, é?
_Falou.
_E o quê cê fez?
_Ia dar uma nele, mas os caras me seguraram.
_ Deixa pra lá.
_Mas mano...
_ O pai e a mãe fazem mesmo aquilo.
_Nem brinca.
_É verdade. Todos os pais fazem. Ou você acha que o pai casou para ficar na mão, feito você.
_Mas a mãe é tão religiosa.
_Deixa de ser besta, ô Mané. Sexo é uma coisa natural entre adultos que se amam.
Meu irmão, além de ser o campeão da frase feita, também já tinha lido a enciclopédia e me falou tudo o que eu desejava saber sobre aquilo e não tinha coragem de perguntar para ninguém. Eu já sabia de quase tudo, só não imaginava que aquilo também acontecesse lá em casa. E ainda por cima com os meus pais. E o pior de tudo, com a minha mãe. Naquela noite, no jantar, eu não consegui olhar direito para os dois. (Continua)

sábado, 13 de outubro de 2007

Choro de Homem I

Homem não pode chorar. Ou melhor. Pode, é claro. Mas ninguém pode ver. Tem que ser escondido. No escuro do cinema. À noite, espremendo a cara no travesseiro. Ou no banheiro, disfarçando com o barulho da torneira. O melhor mesmo é fazer isso com o chuveiro e a torneira ligados. Aí é camuflagem perfeita.
No cinema americano a regra é bem clara. Homem, na tela e na platéia, só pode chorar em momento de emoção incomensurável. Isso pressupõe uma série de situações prévia e intensamente anunciadas pela trilha sonora. Os americanos são assim, cheios de avisos prévios. Por exemplo, antes da cena emocionante do abraço de pai e filho. Aliás, abraço de pai e filho em filme americano é de cortar o coração de qualquer machão. É só reparar. Nessa hora, o cinema inteiro começa a tossir e espirrar horrores, com toda a cambada de marmanjos procurando disfarçar a choradeira incontida.
Outro cena onde é permitido verter lágrimas, com macheza, é em filme de guerra. O Johnny no chão, ferido, gritando “Diga a Mary que eu a amo”, fechando os olhos logo depois da seqüência em que ele salva o batalhão e vira a batalha contra o inimigo. Em filme romântico só é permitido homem chorar se a mocinha morrer de câncer. Ou em filme de ação, como no último 007, se a mocinha(nem é preciso dizer que trata-se de uma tremenda gata que já fez loucuras sexuais com o machão na telona) decidir se afogar de puro remorso por ter traído você, o agente secreto da rainha.
Mas tem homem que não tem vergonha de chorar. Não são muitos, é verdade, mas existem. Os caras que não se importam se alguém está vendo. É o caso do Digão, um amigo meu. Machão, machão. Um metro e noventa, 120 quilos, pescoço de Mike Tyson, lutador de jiu-jitsu, orelha queimada pelo tatame. Mas é um tremendo coração-mole. Super-sensível. Uma moça, diria Caetano. É bem educado também, o Digão. Quando ele pressente que não vai resistir, ele avisa antes.
_Olha, você vai me desculpar, mas eu vou chorar.
Então ele se acaba. Lágrimas vertem feito cachoeiras dos olhos do infeliz. E ele faz mais barulho que uma panela de pressão.
_Já vou terminar. É que isso é muito tocante..., explica o Digão. E torna a se debulhar em lágrimas.
O Digão é capaz de empapar toalhas de banho, de encharcar sapatos. Em resumo, o cara é um exagero. Mas nós todos já estamos acostumados. Só a Soraia, novata no pedaço, é que ainda não sabia. E foi descobrir no dia do aniversário de três anos da minha filha.
Todo mundo tinha cantado os parabéns e a patroa resolve perguntar para quem a filhota queria dar o primeiro pedaço de bolo. E apesar do alvoroço dos avós, dos primos, do papai aqui e dos amiguinhos, ela escolheu o Digão.
_Olha, vocês vão me desculpar...
E antes mesmo de pegar o pratinho de bolo, o Digão já estava no maior esguicho de lágrimas e fazendo aquele barulho de pneu furado. (continua)

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

O banheiro é importante para toda mulher

Adoro encontrar os amigos em restaurantes. E em botecos também. E como a grana anda mesmo curta, ultimamente eu só encontro a turma de sempre nos botecos. E assim mesmo, só pé-sujo. As esposas de alguns reclamam, é claro. Boteco pé-sujo, em geral, não tem papel Neve e nem porcelana chinesa. O nome pé-sujo, aliás, só existe por causa do banheiro. Se não quiser sujar o pé, consulte um guia da cidade.
Mas se algumas mulheres reclamam, só as namoradas radicalizam. E a namorada do Junão, a Júlia, é radical. Outro dia foi assim.
_Pôxa, Junão. No banheiro daqui só vou de asa delta.
_ Junão, vou deixar o nariz na mesa e volto já.
_Caraca, Junão. Não volto lá nem amarrada e sob tortura.
_Ali deve ter um anão assassinado .
_ Junão, prefiro fazer aqui, numa garrafa.
E lá foi o Junão embora. O Cabeça, que tem sempre uma frase boa para tudo, ficou calado. Paulinho, que é mais estourado, quebrou o silêncio.
_Mas não se pode nem tomar cerveja. Essa mulé é um porre. O Junão tem que mandar passear.
_Quêisso... o banheiro é importante para toda mulher, diz o Cabeça.
Putz! Uma faísca elétrica percorreu todas as cadeiras. Um sentimento comum foi compartilhado no mesmo instante. O Cabeça havia criado mais uma sentença profunda e sintética, uma oração dirigida aos céus e infernos. Uma frase digna de virar placa, de entrar para a posteridade num pára-choque de caminhão.
_Cabeça, tu é campeão, eu digo, olhando o cardápio de petiscos. Aqui tem uma carne-de-sol de primeira.
_Essa é a melhor da semana, diz a minha patroa.
_Queria ser negão para virar essa frase num pagode, diz o Niltão.
_Alguém me passa a gelada, diz o Cabeça, modesto.
E uma semana depois, no retorno ao pé-sujo, para nossa surpresa aparece o Junão.
_Ué, você por aqui...
_Pois é, pois é.
_Cadê a Júlia?- pergunta a mulher do Cabeça.
_Tá vindo aí.
E veio mesmo. E sentou de frente para o Paulinho. Que lembrou logo da sentença do Cabeça.
_O banheiro é importante para toda mulher.
_ É verdade, concordou a Júlia. Só voltei aqui porque eu gosto muito do Junão. Se dependesse de mim, a gente ia para um boteco com um banheiro onde fosse possível respirar.
_Ah, deixa de exagero, vai. Não é tão ruim assim.
_Só não é pior que o da rodoviária.
_Vocês dois, será que não tem outro assunto? É só banheiro, mictório, w.c.. Coisa mais escatológica!, apelou a Aninha.
_É que você ainda não viu o banheiro daqui.
_Vi sim, e é bem limpinho.
_ Aposto como você não agüenta cinco minutos lá dentro, diz a Júlia.
_Tá certo, aposto. Se eu ficar lá dentro cinco minutos, você paga a minha parte da conta e nunca mais fala de banheiro perto de mim. Se eu não agüentar, eu pago a sua parte e agüento esse assunto caladinha.
Fiquei apreensivo e olhei para a patroa. A Aninha é gente fina. Tem antepassados ilustres e nobres. Olfato sensibilíssimo. Do tipo que sente cheiro de barata num apartamento de 250 metros quadrados, como o dela. Pelo olhar da patroa ela também não estava levando fé. A Aninha era do tipo cri-cri-pernilongo. Encontrava defeito em vaso Ming e mancha de cobre em prata inglesa. O banheiro do pé-sujo era limpinho, mas até a minha patroa não agüentaria aquele cheiro de morto no ralo por cinco minutos. Que dirá a Aninha!
Mas para surpresa de todos, inclusive do Cabeça, a Aninha ficou os cinco minutos. E seis. E sete. E nós começamos a ficar preocupados. O Cabeça já estava ligando para uma ambulância, para o Corpo de Bombeiros, quando escutamos a descarga. Suspiramos de alívio. Até a Júlia.
_E aí, gente. Não é mais assunto, tá.
_Táááá.
E não falamos mais nisso. A Júlia se comportou direitinho. Não azucrinou o Júnior, nem reclamou de nada. Naquele dia, o Paulinho só pediu coisas delicadas, começando pelo mocotó. O Cabeça, a patroa e a Maira se entupiram de feijoada. O Niltão abusou do repolho e da couve. E a Aninha atacou uma carne de bode. Senhoras e Senhores, eu pedi carneiro desfiado e fui chamado de fresco. Todos consumimos mais chopps do que o permitido para um retorno seguro ao volante. Voltei de táxi com a patroa. No caminho, descobri com ela como foi que a Aninha tinha agüentado.
_ Ela entrou no banheiro com o Chanéu Nâmber Fáive. Gastou meio vidro no lenço.
_ Ah bom.
_ Para ela, o banheiro vale o mesmo que o poeta falava de mulher. Não é só importante. É fundamental. Mas ela jamais daria o braço a torcer para a Júlia.
_Por quê?
_Porque o Junão, antes de terminar com ela, vivia reclamando do excesso de frescuras da Aninha.
_E eu nem sabia que os dois tinham tido um caso.
_Foi uma coisa de louco. Começou por acaso, num banheiro. Lá em casa eu te conto...

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Pescar truta na América

Uma vez eu estava relendo O Mundo Segundo Garp, um excelente livro do John Irving que virou um filme médio com o Robbin Williams no papel principal. Não foi nem culpa dele, Robbin, que na época era um excelente comediante. É que o livro é bom demais, cheio de histórias paralelas, difícil de transpor para o cinema. Pois no livro, de repente o escritor iniciante Garp conta o que o faz escolher um livro entre milhares de outros na livraria. A magia está relacionada à primeira página, às frases, às primeiras palavras escritas no compêndio. Garp, fã do Grande Gastby de F.S.Fitzgerald, que reli por causa dele, decidia levar um livro se sentisse a fisgada do primeiro parágrafo. Em resumo, são os livros que nos pescam. Somos todos peixes para os escritores. Mas muito deles não sabem disso.
Richard Brautigan sabia. Em 1967 ele escreveu um livro genial, Pescar truta na América. Vendeu dois milhões de exemplares. O livro saiu no Brasil, pela editora Marco Zero, com tradução de José J. Veiga. Na orelha do livro, o escritor goiano diz que é fã de Brautigan desde a década de 70, quando leu outros livros dele, Watermelon Sugar e All Watched Over. Mas os fãs e os elogios recebidos somente no início da carreira não adiantaram para o Brautigan. Ele caiu dos píncaros da glória para o ostracismo depois que o LSD perdeu o lugar para coisas da Bolívia e as anfetaminas subiram de preço. Mas de vez em quando, eu ainda volto a ser pescado por Pescar Truta...
Para mim, um dos melhores livros pescadores do mundo é A Gangue do Pensamento, do Tibor Fischer. O sujeito consegue arquitetar, com brilhantismo, uma gaiola de embromações literárias que hão de enrolar você e suas companheiras de cama por um longo período. Ele parece inteligente a partir da primeira frase. Depois continua inteligente, e termina de um jeito inteligente. No final, você nem percebeu, mas tinha sido fisgado e estará procurando outro livro pescador do mesmo autor.
Outro que sabia era o Guimarães Rosa. Nonada, a primeira e também a última palavra de Grandes Sertões, diz tudo. O cara sabia que ia prender você, leitor, pelo beiço. E não adianta sacudir a cabeça, dizer que achou que podia ser mais curto. Se você for um peixe honesto, vai admitir que o livro do G.R. é capaz de pescar qualquer um, do bagre ao atum. Ou seja, a coisa depende da armadilha do início, do garrote invisível acobertado no final do primeiro parágrafo. É ali, debaixo daquela isca de nada, imperceptível, que se esconde a ponta de aço de um anzol que irá ferroar a sua alma, irá aguilhoar o coração empedernido que bombeia o sangue nos seus pulmões.
E uma vez fisgado, faça como achar melhor. Existem peixes que só faltam gritar, se debatendo desesperados para ir até o fim, voltar, reler algumas partes, contar para os amigos e só depois se soltar. Outros fogem e voltam, tentam esticar uma linha que terá sempre o mesmo alcance ou se romperá. Poucos são os sábios que se entregam com tranqüilidade no primeiro momento, para depois, de leve, bem de leve, conseguirem aos poucos se soltar.
Eu não sou desses últimos, por sinal. Sou dos primeiros, que engolem a isca inteira e se vêem presos pelo esôfago. Me engasgo, me emociono, pareço virar do avesso. Só depois de muito cansado é que descanso de um livro pescador. E durante a minha vida tive a sorte de encontrar uma porção deles.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Matem o DJ

Foi o Maurício quem começou essa história. E dizem as más línguas que eu era o DJ que merecia ser morto. Pura maldade. Meu gosto musical é tão bom quanto o de qualquer um. O meu problema era encontrar o disco certo. Depois, o problema era encontrar o CD certo. E, em todas as ocasiões, onde é que eu tinha colocado as listas de músicas?
Lembro de fazer pesquisas extensas e profundas para elaborar as listas. Escutava rádio o tempo inteiro. Conversava com os caras das lojas de discos. Ficava parado, na frente das boates, em pesquisa aplicada de campo. E depois, num esforço intelectual, místico e retumbante, eu fazia nascer a lista de megahits arrasadores para a festa da semana. Três horas cronometradas, às vezes mais, de músicas perfeitamente organizadas para estimular uma gama variada de sentimentos nos seres humanos, inclusive com pausas para ir ao banheiro.
Sem falsa modéstia, minhas listas eram simplesmente perfeitas. Mas eu nunca as encontrava quando precisava. E depois, no final da festa, quando todos já estavam de porre e de agarração, e ninguém, a não ser o Maurício, se importava mais com a música, lá estava ela. A lista. Perfeita, pronta e acabada. A lista de músicas que eu havia preparado para tornar a festa um sucesso. A lista que iria me retirar do limbo dos DJs expostos à execração pública. A seqüência criteriosa e científica que faria as mulheres bonitas admirar a minha sensibilidade, ritmo e harmonia , além de provocar um avassalador desejo da minha carne. A fila de sucessos musicais delirantes que despertaria a inveja dos rapazes e demarcaria um território perfeito no coração das meninas. (Na frente desse território, em arial néon, estaria escrito em bom português: _Entre DJ. Pode fazer xixi de porta aberta)
A cabala musical que projetaria, sobre todos os dançantes e paredistas, meu conhecimento dos rankings da Billboard, das Dez Mais da Semana em NY, e dos SuperHits da Rolling Stones estaria na capa do álbum do Barão Vermelho. Eu a acharia uma semana depois da festa. O mantra de sucessos dançantes e hits descolados estaria grudado no fundo daquela minha calça jeans, transformado numa pequena massa de papel deformado. Eu a encontraria durante outra festa, no mês seguinte. A lista que eu nunca encontrava e cuja falta sempre provocava a minha substituição como DJ estaria alhures, ou bem à vista, naquele CD de versões de músicas do Roberto Carlos, que tem “È Proibido Fumar”, com o Skank. Eu vivia ouvindo, como é que não achei?
Lobão, Paula Toller, Blitz, Legião Urbana, Ira, Paralamas, estavam todos lá, na minha lista, na ordem correta para dançar, dançar colado, dançar com beijo e dançar separado. E como eu não achava a bendita lista, eu era obrigado a lembrar de cabeça e improvisar, alterando a química perfeita que eu havia arquitetado tão cientificamente. E nessa hora, o Maurício, sempre atento, mesmo de porre, vinha puxar o corinho.
_Matem o DJ! Matem o DJ! Matem o DJ!
E antes que a turba sedenta por sangue e descontrolada se lançasse sobre o meu pescoço eu largava a pick-up, ou saía de lado, deixando o tocador de CDs para outro aventureiro. Mais uma vez, o meu sonho intrépido de comandar corações, mentes e corpos por meio de músicas teria que ser adiado. Primeiro a discoteca, depois, o mundo...
Hoje em dia a rapaziada não tem esse grilo. Eu carreguei pilhas de discos para as festas. Depois, eram pilhas de Compact Discs. Hoje em dia, você carrega 40 horas de música num trequinho menor que um relógio de pulso. E tudo organizado em pastas previamente planejadas, na ordem exata, no tempo correto, na medida científica da emoção musical e do estímulo dançante. A rapaziada pode arriscar a ser DJ contando com o máximo em tecnologia e já com uma aura pré-projetada de profissionalismo. Dá até para pensar novamente em bancar o DJ nas festas. Mas só se o Maurício não for.

terça-feira, 9 de outubro de 2007

O senhor almoço

A tradição começou quando ainda éramos solteiros. Uma vez por mês, sempre aos sábados, nos encontrávamos na casa do Niltão para tomar muita cerveja, colocar o papo em dia, descobrir as novidades, que eram sempre muitas, dos amigos dos tempos da universidade. O Niltão estava aprendendo a cozinhar e era ousado como só os iniciantes podem ser. Fejoada, rabada, buxada, costela, salmão, lula, camarão na moranga, pato, galo, peru, pernil, tutu, galinha d´angola, e qualquer coisa pesada, lenta e difícil de cozinhar foram os pratos que ele aprendeu a dominar. Éramos cobaias felizes desse aprendizado, que hoje já é maestria.
Com o passar dos anos, e já se passaram muitos, os casamentos aconteceram, as crianças nasceram e os almoços no Niltão começaram a se tornar mais raros. Não por vontade dele, é claro. A verdade é que ele cansou de insistir com alguns. Até mesmo comigo, depois que a caçula nasceu.
Lembro que ele ligava na véspera, como sempre, e mandava o convite.
_Alô, você também. Amanhã tem baixo lá em casa. Leva birita.
E eu dizia que não, que as crianças vão dar trabalho, que elas ainda estão muito pequenas e uma série de lamúrias de pai velho e bobo. Um dia o Niltão, com sua sabedoria e fino trato, cortou as frescuras.
_Deixa de fazer doce e traga a patroa e os moleques. Aqui está cheio de brinquedos e tem um quarto só para bagunçar.
Tanta perspicácia mexeu com os meus sentimentos. E eu voltei a freqüentar o almoço do Niltão. Eu e outros desgarrados e desgarradas. E voltei a ter informações sobre os amigos do tempo em que éramos jovens e íamos mudar o mundo. A cada vez que vou a um almoço no Niltão, eu comprovo. Minha geração é um sucesso.
Alguns dos casados se separaram, outros se amancebaram e um mudou a opção sexual. Meus colegas da universidade têm a sexualidade resolvida.
Fulano foi ser DJ na Escócia, Beltrano está em Sidney trabalhando de copeiro num hotel e a Sicrana, quem diria, casou com um banqueiro alemão babaca e mora em Munique. E o Glauco, lembra do Glaucoma!, se deu bem, casou com um baú e mora em Paris. Meus colegas de universidade são internacionalizados.
Aquela menina que dizia ser atriz ficou grávida de gêmeos de um senador. O Tavinho virou escritor e já publicou quatro biografias de deputados. A Samantha brigou com a Tabatha e voltou a fazer publicidade para partidos políticos. O Bicola, aquele que escondia cola na caneta, foi candidato por um partido nanico e hoje está atolado em dívidas. Meus colegas de universidade são politicamente corretos.
O Juca, irmão do Quincas, passou dois dias preso em Cartagena. A Samara, prima da namorada do Niltão, teria morrido se não fosse uma injeção de glicose. A Cráudia salvou o Piu do uísque, mas teve que beber tudo sozinha. A sativa teria matado o Michelangelo, se ele não tivesse sido atropelado enquanto cheirava a duodécima carreira do dia. E o Bituca, que tinha mania de procurar pontas em cinzeiros, fez tratamento com laser e agora só vasculha o porta-luvas dos carros dos amigos. Como se vê, meus colegas de universidade também gostam de rock´n´roll.
Agora eu não perco nenhum almoço no Niltão. Ás vezes ligo para ele, sugerindo algum prato leve.
_ Alô, você. Que tal um cassoulê para amanhã?
_ Comida de mocinha. Macho come é joelho de porco. Topa?
_Lógico. Vou levar uma de alambique que o meu avô deixou de herança.
_Traz limão também.
E eu vou dormir feliz da vida, porque sábado terei um senhor almoço no Niltão.

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Bú, Jô, Sumbrái e Zezinho

Jô é um apelido danado de comum. Mas Sumbrái eu sou capaz de apostar que a maioria de vocês nunca nem ouviu falar. Pois é corruptela de Sombrancelha. Quando eu era menino, um dos amigos era chamado de Sumbrái por causa das enormes sobrancelhas. Nem sei se a palavra existe. Havia uma infinidade de apelidos grotescos naquela rapaziada. O Pig, o Porrinha, o Xexéu, o Murrinha, o Bú, o Gasparzinho e o Olhos Azuis.
Os dois últimos, nem preciso dizer, eram negros de carapinha apelidados pelo nosso racismo (mais monetário do que de cor e credo). Aliás, os apelidos eram a mais pura demonstração disso. Alguns dos brancos, mais endinheirados, ganhavam os apelidos dos heróis dos seriados da TV: Kowalsky, Capitão Lee, Spock, Magnum e Mcgáiver. Se usassem óculos e fossem franzinos, como eu, sobravam os nomes de desenhos animados: Formiga Atômica, Mr. Magoo, BatFino, - “Minhas asas são como uma couraça de aço!”.
Se fossem mais fortinhos : Maguila, Falcão Azul, Falcon... etc. Mas poucos apelidos pegavam. De todos esses que já falei, os mais extraordinários eram Sumbrái, Zezinho e Bu.
Sumbrái eu já expliquei. Zezinho era o irmão mais novo da menina mais bonita da quadra, a Mônica. Essa menina de longos cabelos encaracolados, além de ter peitos, era carioca, falava como carioca e gostava de andar de bicicleta. Ela possuía uma bicicleta de 10 marchas, verde-limão, com guidão de corrida. Isso forçava a postura inclinada, o que favorecia a observação do decote e do cofrinho.
O forte calor, a secura e os hormônios faziam o resto. Íamos aos bandos chamar o Zezinho para andar de bicicleta. Falávamos todos ao mesmo tempo no interfone: “Alô Zezinho, desce aí, vamos dar um rolé de camelo...”. Nesse tempo, bicicleta era camelo e camelo só existia no zoológico. Não era como é hoje nas praias do Nordeste. Com sorte, a Mônica descia também para andar com a gente. Com muita sorte, ela chamava as amigas BBGs (Boa, Bonita e Gostosa) dela. E muitas vezes dávamos muita sorte.
Sempre tivemos enorme respeito pela irmã do Zezinho e pelo Zezinho. E isso só fez aumentar depois que ela arrumou um namorado. O sujeito tinha fama de lutar uma capoeira violenta. Certo dia, só para demonstração, ele derrubou uns quatro ou cinco de nós com uma única rasteira. O sucesso da demonstração foi tão grande que o bando diminuiu para 3 gatos pingados assíduos, que ainda insistiam em tentar brechar a irmã do Zezinho mesmo depois do aviso rasteiro.
Eu, Jô e o Sumbrái mantínhamos a expectativa. Depois comparávamos as impressões. Você viu o que eu vi? Vi, e vi mais ainda, viu também? Se vi. Vi muito e muitíssimo, que isso não aparece nem em revista.
- Do que é que vocês estão falando aí?, perguntava o Zezinho.
- Nada, não. É só um filme que passou ontem na Tupi.
E na verdade era tudo exagero, porque não dava para ver muita coisa mesmo. E acho que se tivéssemos mesmo visto alguma coisa não insistiríamos tanto em ver se conseguíamos ver.
Um dia estávamos andando perto do Zezinho e sua irmã, que conversavam. O Sumbrái esticou o ouvido, sorriu e perguntou se estavam falando dele.
-Quê isso, Sumbrái? Ninguém falou seu nome.
_ Mas ouvi alguém falar Maurício, e meu nome é Maurício.
- O meu também é , disse Zezinho.
_Péra lá, eu disse. Zezinho, seu nome não é José?
-Não, meu nome é Maurício. Mas até em casa todo mundo só me chama pelo apelido de Zezinho.
_ Lá em casa também, disse o Maurício, todo mundo só me chama de Sumbrái.
_ E Jô, como é seu nome?
_Gerônimo. Mas lá em casa só me chamam de José Carlos, que era para ter sido o meu nome.
_Putzgrila!, eu disse, a cabeça girando com os nomes e apelidos de todos os conhecidos. E alguém aí sabe qual é o nome do Bú?
_ É Marco Aurélio, disse, para minha surpresa, a Mônica.
_ E por que Bú?
_ Bom, o apelido é antigo, do tempo em que ninguém da quadra tinha cabelo nas pernas, continuou Mônica.O Marco Aurélio foi o primeiro a ter. Era tão bonitinho que eu e as meninas começamos a chamar ele de Bú. Mas foi a Laura quem botou o apelido de Bú.
_Bú, de urubu? De buraco? De búzios? De buriti?
_Não, as perninhas cabeludas dele pareciam com outra coisa. Você sabe, aquilo de mulher.
E no meio do sorriso da Mônica e entre um olhar maroto para o púbis, um rubor apareceu em todos os rostos. Eu, Sumbrái, Zezinho e Jô compreendemos. E desde aquele dia, passamos a infernizar o Bú como ninguém.

sexta-feira, 5 de outubro de 2007

Graminha

Graminha
Se baixa umidade fosse sinal de nobreza essa cidade seria majestade. A secura é uma presença constante da paisagem local. É preciso tomar cuidado para que ela também não penetre na alma. Mas isso é outra história. A que eu quero contar é sobre os profissionais que defendiam os gramados e mudas de árvores das áreas verdes de Brasília. Nós os chamávamos de “Graminhas”. Os Graminhas eram os caras que trabalhavam para o Departamento de Parques e Jardins - DPJ. Possuíam o poder de remover e apreender as bolas, pelotas e outros objetos e materiais que estivessem sendo utilizados para prejudicar os gramados e plantas ornamentais da cidade. Eles eram os defensores do verde ainda hoje difícil de manter da capital brasileira. Mas para nós eram sujeitos desalmados, que atrapalhavam o desenvolvimento do nosso futebol.
É preciso fazer um esclarecimento sobre a época. O futebol era o maior esporte nacional. A seleção só tinha jogadores que jogavam em clubes brasileiros. E os nomes dos craques até hoje quase todos nós sabemos de cor: goleiros, Félix (Fluminense), Leão (Palmeiras) e Ado (Corinthians); zagueiros, Carlos Alberto, Joel (ambos do Santos), Brito (Flamengo), Piazza, Fontana (ambos do Cruzeiro), Everaldo (Grêmio), Zé Maria (Corinthians), Baldocchi (Palmeiras) e Marco Antônio (Fluminense); meio-campistas, Clodoaldo (Santos), Gérson (São Paulo) e Rivelino (Corinthians); atacantes, Jairzinho, Paulo Cesar Lima, Roberto (todos do Botafogo), Tostão (Cruzeiro), Pelé, Edu (ambos do Santos) e Dario (Atlético Mineiro).
Esses craques fizeram com que, durante a década de setenta e até meados da década de oitenta, em todo o país, os meninos da minha idade, os mocinhos, os rapazes, os velhos e qualquer pessoa que fizesse xixi em pé só pensasse em futebol. E nessa cidade, futebol e Graminha estavam associados. Onde houvesse um pedaço de terra, havia grama, mudas de árvores e meninos querendo aproveitar aquele espaço para jogar futebol. Invariavelmente, as mudas que restavam numa área mais ou menos quadrangular estavam servindo de traves para os gols. A secura transformava a grama em pedaços de palha seca sobre a terra vermelha esturricada. Depois de uma hora com dez meninos correndo por cima, sobrava pouca coisa para se chamar de gramado. Por isso, os homens do DPJ e os porteiros dos edifícios onde morávamos formavam uma extensa rede de informações para evitar o prejuízo. A área estragada teria que ser replantada, pois sempre havia um militar ou amigo de militar fazendo pressão sobre o DPJ e seus funcionários. Portanto, para não ter que fazer tudo de novo e também para evitar o saco cheio, esses homens corriam atrás de nós e das nossas bolas. O que me obriga a fazer um novo parêntese.
Naquele tempo, meus caros, aprendíamos desde cedo a engolir sapos. Para começar, bola e dólar não davam em árvores. Poucas crianças possuíam uma bola de cobertão oficial. Quem tinha, não emprestava. Uma bola significava presença garantida no time e nas partidas, independentemente da qualidade do seu futebol. Os donos da bola eram orgulhosos e imponentes. Eram meninos de quem sabíamos até os sobrenomes. Eram malas sem alça que tratavam as bolas com o melhor sebo que pudessem conseguir de graça no açougue. Mas eram invejados e bajulados. Eram chatos metidos a besta. É que sem a bola, não há como jogar futebol. Devido a esse fato intransponível, o dono da bola era o ser humano imprestável que tínhamos que aturar para brincar como Pelé e Rivelino. E nós aturávamos.
Isso posto e bem colocado, posso voltar aos Graminhas. Eles apareciam em kombis. (Ah, não, Kombi você sabe o que é!) Onde eu morava, havia um esplêndido gramado, circundado por vários edifícios. Bastava um mero chute na bola para que, em 120 segundos dezenas de meninos saíssem das janelas e aparecessem para uma partida. As escalações eram rigorosas. Os capitães eram craques respeitados pela habilidade e capacidade de liderança. O mundo funcionava de acordo com as regras perfeitas do mérito. Não havia espaço nem lugar para nada errado, a não ser, é claro, para o dono da bola.

quarta-feira, 3 de outubro de 2007

O que fazer quando o seu filho apanha na escola

Eu não sei. Essa pergunta eu venho me fazendo há alguns dias. Meu filho tem apenas quatro anos e estuda numa escola meio alternativa. Os professores parecem ter chegado de Woodstock a pé, embora estejam na faixa entre 25 e 30 anos. Minha mulher fez questão de matriculá-lo nessa escola porque um dos primos estudava ali. O primo agora já saiu. Meu filho continua lá. E eu quero que ele saia. Mas na queda de braço com a mãe eu perco.
Escolas alternativas são ótimas, mas dão um trabalho danado para os pais. Por mais que você se julgue moderninho e capaz de se adaptar rapidamente, uma escola alternativa coloca seus planos e convicções no chinelo. Para início de conversa, seu filho começa a saber e falar mais gírias do que você. Ele vai usar expressões que você sequer imaginou existir com expertise e naturalidade. Deixará você de boca aberta. E olha que você sempre foi um tarado por gírias. “Tá maluco”, “É doido” e “Irado, véio” se tornarão rapidamente pedaços indissociáveis de qualquer exposição verbal que ele fizer. Até na hora de escovar os dentes. “Escova irada, essa, maluco, ó!”.
Além disso, seu filho apresentará algumas diferenças físicas fundamentais em relação aos meninos que freqüentam escolas tradicionais, a começar das solas dos pés. As solas dos pés dos meninos das escolas alternativas são mais grossas, duras e encardidas do que o couro velho da parte de baixo dos cachorros flatulentos. As mãos desses meninos também são mais esfoladas, arranhadas e calejadas do que as dos meninos acostumados a ficar grudados na televisão e no vídeo-game. O meu filho também gruda na tv, mas as mãos dele são ferramentas de trabalho experimentadas em texturas diversas. Nunca encontrei uma unha limpa e inteira. Meninos de escolas alternativas são mais despojados, rijos, estouvados e brutos. Costumam resolver as diferenças na hora, com grande rapidez de raciocínio e articulação de argumentos. Se nada disso der certo, resolvem na base do tapa e da porrada pura e simples, sem crueldade.
Professores, na visão desses meninos, são seres que os auxiliam a descobrir as potencialidades adjacentes aos seus pequenos organismos e proximidades. Os professores também são vistos como aqueles cabeludos e cabeludas de roupas coloridas e chinelos que saem da escola, depois do portão, para fumar uns cigarros no intervalo. Aliás, eles não entendem bem o que é intervalo, pois as atividades na sala são tão divertidas quanto as de fora da sala de aula. Quando você pergunta se eles aprenderam alguma coisa naquele dia, eles respondem que se divertiram bastante. E aprenderam também, é verdade, dou o braço a torcer.
Os meninos de escolas alternativas geralmente têm uma mãe fixa e pais sobressalentes. Os sobressalentes se revezam para levar as crianças à escola e a volta costuma ser por conta das mães. Talvez por isso, autoridade seja uma coisa tão difícil de ser exercida sobre os meninos dessas escolas. Eles começam a acreditar que são seres que vieram ao planeta para tornar a vida dos seus pais mais prazerosa e bela, que eles são as únicas coisas que realmente importam para esses sujeitos, que o aprendizado deles é para que sejam mais humanos e compreensivos e não pequenas máquinas de ler e calcular e que portanto, poderão fazer qualquer coisa que a mamãe e o papai de plantão vão aceitar. Isso não está muito longe da verdade, mas você perde pontos se não fizer eles duvidarem dessas coisas pelo menos algumas vezes por dia. Sobretudo, você deve deixar bem claro que os vizinhos, o síndico, os outros pais e o resto da humanidade não vão aceitar nada disso. Por isso, dê logo um peteleco na orelha dele para que ele se comporte.
Os meninos de escolas alternativas são mais bagunceiros, arteiros e não conseguem ficar de sapato, tênis ou chinelos entre quatro paredes ou longe delas. Calçados, para esses pequenos índios, são itens de uso restrito a emergências, que devem ser mantidos nos cantos das salas. Ainda assim, os meninos de escolas alternativas me parecem ser mais felizes e também me fazem lembrar melhor de quando eu ia para a escola e não havia tanta regra para seguir. Eu vejo os outros pobrezinhos, indo para a escola cabisbaixos, desmanchando os sorrisos em uniformes apertados, curvando os pés para dentro dos sapatos e meias. Meias. Meninos de escolas alternativas não usam. Só usam cuecas quando as sungas estão molhadas. Esses meninos são valentes e costumam rosnar para os cachorros chatos dos vizinhos. São curiosos e têm ouvido de tuberculosos. Eles se recordam de diálogos inteiros dos desenhos favoritos, incluindo aí as onomatopéias e sons de ambientação. Pau!Tèeeem!Créu! Não brigue com a patroa na frente dos meninos . Haverá sempre um para dizer “Relaxa, véio, abrace e beije ela. Faça amor, não faça a guerra.”

Mas nada disso responde a pergunta. O que fazer quando seu filho apanha na escola?(continua)

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Concurso TCU

Sábado e domingo foram dias de prova do concurso para o TCU. Milhares de pessoas fizeram as provas organizadas pelo CESPE-UnB. É difícil saber se você foi bem ou foi mal nas questões objetivas. As questões são capciosas, cheias de pequenos detalhes que modificam inteiramente o sentido do que está sendo dito. Encontrei uma porção de conhecidos e todos estavam otimistas quanto ao resultado. Mas não existem vagas para todos. Esse país é muito esquisito. Todos detestam e reclamam dos serviços públicos. Mas os concursos atraem multidões cada vez maiores. Os servidores reclamam à beça dos salários que recebem, e quem não tem emprego público considera um absurdo que essa gente receba tanto dinheiro. Voltando ao concurso, acho que fui bem mais ou menos, quase quem sabe, talvez.

Frase do dia