sábado, 31 de maio de 2008

Outra reunião na escola alternativa



Ontem teve reunião na escola alternativa das crianças. O assunto era super importante. Eu não havia escrito aqui, mas no início do ano, logo antes do início das aulas, a moça que seria a professora da minha filha sofreu um acidente. Capotagem dupla com rolê. Ela se machucou. Tem que usar um colete até hoje. E por conta do acidente, os pais foram convidados a discutir a solução encontrada pela escola. Professor alternativo tampão durante um mês, depois nova professora até o final do ano. Ok? Ok.

E, no início, foi complicado. As crianças tiveram que se adaptar. Foi uma luta, menino chorando todo dia. Minha filha inventando um ritual novo, o de beber água do filtro comigo, antes de entrar na sala. E depois do professor tampão, veio a nova professora e, novamente, menino chorando todo dia. Minha filha sacramentando o ritual de beber água comigo. Aí, um belo dia, todos os choros acabam. As crianças estão felizes, começam a aprender coisas novas, evoluem, cantam. Até Alecrim Dourado elas cantam para os pais. E o ser humano aqui e a Patroa ficam super contentes.

Aí, anteontem, avisaram que ia ter reunião para discutir a situação da volta da professora capotada. A Patroa empalideceu. Eu fiquei afônico. E a Patroa disse assim: vai lá e diz que a professora substituta fica e pronto! Eu, afônico de tudo, concordei. Eu concordo muito com a Patroa! E obedeço.

Shaylalane. Esse é o nome da professora alternativa, da escola alternativa. A reunião havia sido marcada para as oito horas e quinze minutos. Como eu levei as crianças para a escola, fui mais que pontual, cheguei adiantado. Levei a minha filha para beber água comigo. A Shaylalane estava lá, do lado do filtro, de colete.Bebemos água. Coloquei minha filha dentro de sala. Dou de cara com a coordenadora pedagógica da escola alternativa. Como é o nome dessa figura? Ela me avisou que a reunião começaria pontualmente. Voltei pro carro. Enrolei um pouco, escutei o comentário do Jabor sobre a decisão do STF e as células tronco embrionárias. Aí deu oito e quinze e eu voltei para a escola alternativa.

Os pais já estavam em volta de uma mesa, junto com a coordenadora pedagógica e a Shaylalane. Todo mundo com cara de medo. Frio. Ninguém falava nada.

Aí eu viro para a moça de colete e falo assim:
_Você que é a Shaylalane, né? Ó, não leva a mal não, sei de ouvir falar que você é uma baita professora, mas nessa altura do campeonato, vamos deixar como está, tudo bem? Assim, estou me precipitando, nem abriram inscrição para falar, nem ouvi ninguém ainda, mas eu já tenho posição firme, concreto e acrílico sobre o assunto. As crianças estão super felizes, acabou a choração, estão aprendendo coisas novas, então seria ótimo ter você como professora dessa turma no ano que vem, falou?

E a Shaylalane vira para mim e fala:
_Tudo bem. Entendo perfeitamente a posição do senhor. Eu também coloco a evolução do aprendizado das crianças em primeiro lugar. Acredito que uma nova troca de professoras poderia trazer prejuízos à formação das crianças. Além disso, tendo em vista que a professora da sala ao lado sairá de licença maternidade nas próximas semanas, tenho certeza de que o meu trabalho teria um melhor aproveitamento se eu atuasse como professora substituta naquela turma ...

Superfina e elegante. E eu me lembrei de quando eu tinha cinco anos e fui apaixonado por uma freira professora do Grupo Escolar Frei André de Oliveira Quinn. Deve ter sido aquele tom de voz, o jeito de falar, o brilho entusiasmado nos olhos.


Eu me desliguei do presente e lembrei da freira. Do êxtase de aprender a ler e a escrever. De como a gente se sente iluminado e a luz começa a entrar pelos olhos e pelos ouvidos, como disse o Elias Canetti.

Como era o nome dela? Era bem mais simples que Shailalane...

Em seguida, depois de outras mães dizerem o que eu disse com mais coerência, delicadeza e assertividade(que diabos é isso?), a reunião foi encerrada pela coordenadora pedagógica. E eu nem lembrei o nome da freira.

Lá fora, quase no carro, encontro um outro pai, esbaforido.
_Mas já acabou a reunião? São só nove horas e quinze minutos!

sexta-feira, 30 de maio de 2008

O Supremo demorou três anos para dar uma dentro



Tenho vagas noções de direito. Vagas amplas, daquelas de caber caminhão. E bem remotas. Meus conhecimentos científicos podem ser taxados de “ridículos”. E, ainda por cima, acompanhei muito por alto a discussão sobre as pesquisas com células-tronco de embriões no Supremo Tribunal Federal. Tava chato pra dedéu. Sei que foi o procurador-mor que pediu para o STF arbitrar a coisa. O procurador-mor tem a convicção de que a pesquisa fere o direito à vida. Sei que o argumento dele, que não li, está de acordo com o que é defendido pela CNBB, pelo Papa e a Igreja Católica. E os ministros do Supremo ficaram num rame-rame danado para encontrar uma definição comum de onde começa a vida. Se embrião tem direito. Se isso, se aquilo. Pediram vistas, fecharam vistas, limparam óculos e escreveram um bocado.

Eu não sei se a vida começa mesmo com a existência de cérebro ou com o fio de um ligamento nervoso. Mas eu sei que se for necessário optar entre a vida da mãe e a vida do feto, todo mundo opta pela vida da mãe. Até na República do Chulé do Judas, eles permitem o aborto na situação de gravidez de risco. Isso é escolher entre duas vidas? É, sim. Você pode enrolar o que for, mas é. É uma preferência. Ó, feto, ó, mãe. Vamos ter que optar. Os médicos disfarçam, fazem uma rodinha, dão as mãos, gritam hip,hip, hurra. E depois dizem: Optamos pela mãe. Então, esse é um limite para o princípio do direito à vida. Também é um limite para o direito à proteção do Estado, porque a lei fica do lado da mãe nesse momento. Ela tem direito ao aborto. Não é o feto que tem direito à vida. Assim, o princípio tem o limite do bom senso. E se for preciso escolher, vamos escolher o que está vivo, pensante e operante, na maioria das situações. Mas isso não é lei, não precisa estar escrito, vamos usar o bom senso. Uma situação qualquer supercomplicada pode acontecer e essa regra pode furar.

Lembra do herói dos filmes de guerra? “Estou ferido, vou ficar e dar cobertura para vocês fugirem”. Escolhemos o que é, e não o vir a ser. Nós também não gostamos de jogar dados com o universo. Mas quando jogamos, escolhemos o que tem mais chances de sobreviver. E assim também acontece na vida social, no mundo acadêmico, no mundo profissional. Em geral, no limite do bom senso, a academia, o empregador, escolhe o que tem mais título, o que tem mais expertise, cancha e capacidade, de preferência, certificada.

Então, dessa maneira, eu vou no avesso do princípio. Entre eu, que estou vivo, e os embriões, eu prefiro eu mesmo. Afinal, eu estou aqui, sarado, e os embriões estão ali, congeladinhos, sem pai nem mãe, fertilizados in vitro. Entre fazer pesquisas com as células tronco deles e com as minhas, eu prefiro que façam com as deles. Não me levem a mal, embriões. Mas nessas coisas a gente tem que falar as coisas como elas são. Eu mesmo, não passo de um careca bípede. E, com todo o respeito, vocês são, no máximo, sorvetinho de gente. Picolés de humanóides. Com todo o respeito.

Eu gosto da possibilidade de pensar por mim mesmo. De tentar raciocinar por conta própria. E de preferência com historinhas, que é para eu mesmo me entender melhor. Por isso, com as desculpas já apresentadas e mais data vênia, acho que os ministros demoraram pacas, à toa. A questão nem deveria ter sido colocada. O Presidente do Supremo deveria ter falado assim: “Pô, procurador-mor, já tá cheio de limite ético aí, regulamento, biossegurança, qualé? Do futuro ninguém sabe, não proíbe pesquisa não. Pensa bem, a pesquisa com raio x feriu o direito à vida da Madame Curie, mas ela não parou por causa disso”.

Outro ministro, mais íntimo diria assim: “Pô, cara, demorou 500 anos para o sujeito que disse que a Terra rodava em torno do sol ser perdoado. E se você estiver impedindo a cura para o câncer? E se você estiver impedindo a cura pra tudo? Quem vai perdoar você? Aliás, se a ciência fosse depender da permissão do Papa, médicos ainda estariam furtando cadáveres dos cemitérios. Sacou?”

Isso é falacioso, eu sei, mas remeter a coisa ao Supremo também foi uma artimanha falaciosa. Se o princípio da defesa da vida fosse levantado pelo Careca, o Supremo teria feito “pfffttt”, reclamado de umas vírgulas mal colocadas e jogado os argumentos no lixo. “Vai estudar, ô mané Careca”, diria aquele ministro mala, com autoridade, esqueci o nome dele. Mas como foi o procurador-mor, o Supremo gastou três anos para examinar a questão e dois dias de discursos boi dorminhoco para martelar o que já estava martelado na Lei 11.105. A Lei de Biossegurança é constitucional e a ADIN do procurador-mor caiu. Minha avó, já falecida, diria com certeza : “Xô, xuá, cada macaco no seu galho.”

Aí eu tento uma parábola. Se Salomão, o mais sábio dos reis judeus, estivesse vivo, aposto que ele faria assim: “Ó, vocês cientistas católicos apostólicos fervorosos, fiquem desse lado. Vocês não querem pesquisar com embriões, não pesquisem. Mas também não mandem nos outros, tá? E vocês, seus filhos e os filhos ainda não nascidos dos seus filhos não poderão receber nenhum benefício dessas pesquisas, tá bom? E o responsável por essa decisão, no Brasil, foi o Procurador Geral da República, Fulano de Tal, homem de muita fé, tá bom? Se ele estiver errado, a alma dele só sairá do inferno daqui a 500 anos, tá? Vocês vão lá e apertem a campainha da casa dele até cansar, tá bom? Assinem aqui, carimbo, pronto”.

E aí o Salomão pegaria fôlego e continuaria: “Ò, vocês cientistas que não têm problemas com o que diz o Papa, o rabino, o guru, o pai-de-santo, etc, fiquem desse outro lado. Tá bom? Tá bom. Os resultados das pesquisas servirão apenas a vocês hindus, judeus, evangélicos, budistas, agnósticos,... céticos, pagãos e porra-loucas. Assinem aqui, carimbo, pronto. Agora, quem quer pesquisar?” Exagero meu? Lembra que o Salomão ameaçou partir uma criança no meio, no fio da espada? Isso sim é ser radical.

Pesquisas com células tronco são realizadas há anos nos Estados Unidos, na Europa e em tudo quanto é lugar onde a crença religiosa não aboliu o bom senso. Há bancos para coleta, venda e doação de esperma e óvulos espalhadas pelo mundo afora. Fertilização in vitro, congelamento de embrião e pesquisa é uma coisa corriqueira, como deve ser, e é tratada dentro dos limites da ética há anos, numa boa. Acontecem coisas horrorosas? Sim, com certeza devem acontecer. Acontecem coisas que ferem a ética? Sim. Acontecem falhas na fiscalização e controle? Sim, como acontece com qualquer atividade humana. Os infratores são processados e punidos, acredito. Tenho fé no sistema. Pouca, mas tenho.

Tenho também alguns postulados com limites claros e bem definidos. Liberdade é bom. Livre arbítrio é bom. Não arbítrio é mau, argumento de autoridade é mau. Privação da liberdade é mau, quase sempre é péssimo. (Mas é preciso ter cadeia, pô!) Eu desconfio de regulação, sempre. Eu desconfio de quem quer dizer “não” por mim. Sempre. Acho que o limite de qualquer princípio é o bom senso, está na capacidade de enxergar o mal que se está provocando com uma negativa ou uma afirmativa. E de conviver com essa escolha, com essa preferência.

Acho que lei não impede o mal que existe no coração dos homens e das mulheres. Mas acho também que uma lei pode, muito facilmente, impedir o nascimento do germe do bem, castrar a boa vontade, reduzir a liberdade. Quanto menos lei e mais bom senso, melhor. E se a lei agir contra o bom senso, contra o livre arbítrio, a lei é ruim.
Acho que o STF demorou três anos para dar uma dentro. E talvez agora, como já foi dito, inaugure uma era propositiva, ao invés de manter o histórico de sacramentar o "não pode".

Achou isso uma droga? É, tá bem fraco. Mas não gastei três anos matutando esse assunto.

quinta-feira, 29 de maio de 2008

A orelha cortada de Van Gogh



Ninguém sabe direito como os mitos começam. Até porque é difícil alguém estar ali, ao lado do mito, sabendo que aquilo é um mito nascente. Existem bons chutes sobre a origem dos mitos. E como eu também gosto de dar chutes, acho que os mitos começam com um equívoco qualquer. Uma presunção errada sobre alguma coisa desconhecida, com uma atribuição de qualidades exageradas a essa coisa. É uma invenção sobre a realidade.

Veja John Lennon, por exemplo. Lá em Liverpool. Metido a tocar guitarra, a líder de banda. Lucy, a menina mais bonita da escola não ligava a mínima para ele. O diretor da escola, Mr. Mustard, achava o Lennon insuportável. Os professores do Lennon riam dele. E o Lennon ali, numa boa, só pensando em submarino amarelo, “me aguardem”.

Quando ficou famoso, a campainha do Lennon não parava de tocar. Cheio de gente pedindo autógrafo.

_Aê, Lennon, me dá um autógrafo? – eles diziam. E isso deixava o Lennon muito puto da vida porque ele detestava dar autógrafo. Dava piti. Queria dar porrada em fotógrafo e o escambau. Tem artista que é assim, fazer o quê?

A campainha tocava e lá fora estava cheio de gente querendo música. As meninas todas querendo uma canção. E o Lennon todo zen, “I am the walrus”. Aí o Lennon foi morar nos States para ficar bem longe daquela gente atrasada. Nem adiantou a Rainha pedir para ele ficar.

Mas nos States a perseguição dos fãs continuou. O Lennon agora era de paz, não queria saber de ninguém chateando, pedindo autógrafo toda hora. Já tinha cansado de brigar com gente que queria rasgar sua roupa. Ele saía na rua e ia tirando o casaco, uma bota, a camisa, uma meia, até chegar no carro. Se o percurso fosse grande, ele chegava só de cueca no automóvel. Às vezes, menos. O motorista e a Yoko não ligavam. E foi numa dessas, depois que os Beatles acabaram, que a Yoko teve a idéia de tirar a roupa para uma capa de disco.

Os Beatles acabaram mas a aporrinhação dos pedintes de autógrafos continuava. O Lennon foi morar num hotel, onde os porteiros tinham instruções para não deixar ninguém chatear os artistas. E ali tinha artista pra dedéu, a maioria participava da filmagem de O Bebê de Rosemary. Aquela mulher do Sinatra que estrelava o filme, a Mia Farrow, tinha viajado com os Beatles para a Índia. Ela vivia torrando a paciência do Sinatra, do Lennon, da Yoko e do Roman Polansky pra eles adotarem crianças vietnamitas. Depois, isso deu no que deu.

Mark David Chapman era o mala que vivia correndo atrás de autógrafos da Mia Farrow. Os porteiros já tinham manjado o caboclo, mas tirante o revólver na cintura, ele parecia ser só um insistente inofensivo. Porteiros sabem tudo de segurança. Até que um dia, depois de uma semana atrás do autógrafo da Mia Farrow, sempre levando esnobada, o Chapman vê o Lennon de costas, na saída do hotel.

_Aê, Mia, me dá um autógrafo? – disse o Chapman. O Lennon fingiu que não ouviu e deixou o casaco cair no chão. E já ia tirar uma bota quando se virou para o Mark Chapman.
_Lennon? Me dá um autógrafo? - disse o Chapman. E deu no que deu. Foi por isso que o Chapman alegou legítima defesa no seu primeiro depoimento, destruído pela CIA e pelo FBI junto com umas fotos comprometedoras do Lennon, da Yoko e um polvo.

Quer ver outro mito que ninguém ligava a mínima? Van Gogh. Pintava que nem um doido, tinha irmão marchand e tudo, mas nada. Não vendia nem na feirinha hippie de Paris. O único que viu ali a chama do gênio foi outro gênio, o Gauguin. Mas ninguém ligava a mínima para o Gauguin também. Então ficaram os dois gênios da pintura, lado a lado, disputando para ver quem pintava mais e de um jeito mais original que o outro. No final, o Van Gogh cortou a própria orelha e deu de presente para o Gauguin. Não sei o significado disso.

Um amigo meu me disse que era um tributo do Van Gogh ao Gauguin. Mas isso só teria sentido se os dois fossem músicos, eu acho. Outro amigo meu me disse que na verdade o Van Gogh queria mesmo era ter cortado o nariz, porque o Gauguin não tomava banho. Só que achou que não ficaria bem ser doido, pintor, pobre e sem nariz.

Não dá para ter certeza. Nas histórias e biografias, essas partes fundamentais nunca são bem esclarecidas. E a cabeça da gente acaba misturando as coisas.

E qual é o significado disso? Não tenho a menor idéia. Mito, quanto mais obscuro, mais cheio de verdades.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

The Beatles, Amy Winehouse e Jessie Baylin




Outro dia eu conversei com o Cabeça sobre os Beatles e os Rolling Stones. O Cabeça gosta da banda do Mick Jagger e Keith Richards. Eu também gosto, mas sempre ouvi mais The Beatles.

Os Beatles foram visitar Elvis Presley pela primeira e única vez no dia vinte e sete de agosto do ano em que eu nasci. O Rei do Rock disse ter ficado desorientado (“bewildered”) com as músicas do grupo depois de ouvir um único disco dos rapazes de Liverpool. Não consegui descobri que disco foi, mas é provável que tenha sido “Help”. Duas semanas antes da visita a Graceland, no dia catorze de agosto, os Beatles tinham gravado a famosa apresentação no Ed Sullivan Show, aquela que virou um filme do Spielberg. Os Beatles tocaram "I Feel Fine", "I'm Down", "Act Naturally", "Ticket to Ride", "Yesterday" e "Help!".

Quando eu ouvia os Beatles, ainda menino de tudo, eu queria ter sido o Paul. Um pouco mais tarde, quando os Beatles já havia se separado, eu queria ter sido o John. Fiquei querendo ser o John um bom tempo. Eu achava que Ringo era nome de cachorro, por isso não quis ser o baterista. E o George, pô, o George não falava nada, só ficava ali atrás, rindo com modéstia. Nem dava para notar direito. E quando eu saquei qual era a do George, eu já era o velho que sou, não dava mais para brincar de ser um Beatle.

Desde os Beatles, quando eu escuto um cara cantando eu sempre faço uma tentativa de identificação, tento trocar de lugar no palco com o sujeito. É lógico que não é de verdade. Não canto nem debaixo do chuveiro. Se eu faço isso os vizinhos reclamam. Toco só uma campainha básica.

Mas com as cantoras não rola um processo de identificação. Cantora é fisgada pura e simples. É ame ou deixe de lado.

Uma vez, ou duas, eu escrevi aqui sobre a Amy Winehouse. Eu não disse antes, mas a voz daquela mulher me faz pensar coisas trágicas. Parece que está abrindo o peito e apertando o coração dela. E da gente. Ela estimula pensamentos grandiosos e tristes, gestos de grandeza. Renúncias magistrais. Suicídio por solidariedade. Coisas assim, profanas e profundas, lógicas e absurdas.

Ela é bem sereia, a Amy Winehouse. Ela prende você com a voz e faz você sentir o que ela diz que está sentindo. Você ali, feito marinheiro argonauta, flutua na melodia. Ela vai jogar você no chão e nas paredes, provocar lágrimas e sorrisos, deixar você exausto de emoções. E depois ela vai te abandonar.

Ela parece cantar exatamente do jeito que vive, uma vida dilacerada, de amores desesperados.

E eu gosto de cantoras assim. Eu gosto das divas que parecem viver de um jeito tão intenso que mexem com a gente. Gosto das estrelas que arriscam trajetórias esquisitas, como se fossem mariposas mais afoitas e brilhantes voando na direção da lâmpada.

Poucas cantoras mexem com os sentimentos de multidões de uma maneira tão intensa. Poucas se deixam enterrar vivas, se deixam consumir à vista de todos. Pouquíssimas têm essa capacidade de deixar a pele da gente arrepiada com uma frase, com uma sílaba estendida. E a Amy Winehouse tem isso. É uma super cantora. Ganhou um monte de prêmios e a trilha sonora do novo James Bond por causa disso. Agora parece que desistiu da trilha do James Bond. Uma pena.

E aí eu escutei essa moça, Jessie Baylin. Coloquei umas três músicas dela aí na Rádio Careca. A melhor dela chama "The Glitter", que eu não consegui colocar no radinho.

Ela canta música country, que não é um gênero que eu curto muito. Ela tem pouco mais de vinte anos, é linda e faz bico em todas as fotos que eu vi. Tem uma voz muito gostosa. E transmite uma vontade de tomar conta dela bem interessante.

Tem uma rouquidão de cigarro na beirada da voz, quase lá no fundo. Tem uma dicção excelente, que deixa você entender a letra da música mesmo que você só saiba dizer “hello, goodbye”. Escute aí e depois me diga o que achou.

terça-feira, 27 de maio de 2008

Um mito sobre a paixão



Um amigo meu, o Mário Rosa, uma vez me falou do Pentagrama dos Trinta Beijos. Era uma mandinga duma simpatia para fazer uma mulher ficar apaixonada por você a vida inteira. Ele dizia que funcionava. Mas tinha que renovar o Trapézio dos Trinta Beijos todo mês. Era uma operação bem complicada, esse tal de Paralelepípedo dos Trinta Beijos. Envolvia banho, massagem, óleo e vinho. E antes tinha que ter um jantar bem legal. Eu julgava que a periodicidade mensal era devida aos jantares e não a uma economia de beijos e amassos. Naquela época, nem eu e nem o Mário tínhamos dinheiro para um PF, quanto mais para óleo, vinho e jantar legal.

_Mário, você tem a cabeça cheia de merda – eu dizia para ele.
_Careca, você é imaturo. Só tem 15 anos. Quando você ficar mais velho, vai ver que eu tenho razão. E aí vai querer saber como é a Cruzeta dos Trinta Beijos – ele respondia, meio sábio, meio obscuro.
_Mário, você só não é mais bobo porque é só um – eu dizia para ele.

Depois, já na universidade, eu perguntei para o Mário como era o tal do Quadrilátero dos Trinta Beijos. O Mário estava com a namorada dele. Eu estava com a minha. E o Mário disse que não sabia de que merda eu estava falando.

No ano passado, numa viagem para a Bahia com a Patroa e as crianças, eu encontrei o Mário Rosa no aeroporto. Fazia uns dez anos que eu não via o Mário. Ele continuava igualzinho.

_Careca, você também vai pra Salvador?
_Mário Rosa, você agora virou adivinho?
_Não, sua anta, você está na sala de embarque, na entrada do vôo sem escalas para Salvador.

Colocamos a conversa em dia. Mário Rosa, hoje em dia, é especialista em imagem. Ele faz palestras no Brasil inteiro falando de imagem. Ele tem uma penca de políticos que ouve os conselhos dele. Alguns desses caras vivem nas capas dos jornais e revistas. Ele escreve livros e vende milhares de exemplares. O Paulo Coelho sempre escreve os prefácios dos livros do Mário.

Funciona mais ou menos assim. Se o povo te odeia, o Mário vai encontrar um jeito de você ficar mais amável. Se o povo te ama, então o Mário vai encontrar um jeito do povo continuar a amar você. Se o povo é indiferente, então não procure o Mário. Ele cobra uma grana preta. Ele vive disso. É a arte dele. Então, eu acho que o Mário deve saber o que está fazendo. Muita gente acredita que sim.

Aí, ainda no aeroporto, eu perguntei para o Mário se ele se lembrava do Polígono dos Trinta Beijos. Eu lembrei a ele que era um tema recorrente de nossas conversas. Ele olhou para mim e disse que não se lembrava de nenhuma conversa recorrente. E mudou de assunto. Ele me contou da viagem para encontrar o Paulo Coelho e do novo livro que estaria lançando. Foi muito interessante, mas eu só queria saber do Losango dos Trinta Beijos.

O Mário Rosa tinha razão sobre a imaturidade. Acho que eu era um esnobe terrível. E, hoje, eu tenho certeza que sou um esnobe terrível. Quanto ao resto, eu não sei, tenho cada vez mais dúvidas sobre antigas certezas. Sei apenas que não se pode deixar de dar importância ao que se recebe gratuitamente. Especialmente aquilo que nos é oferecido pelas pessoas que não querem nada em troca. Mesmo assim, como é natural, muitas vezes a gente deixa e depois tem que correr atrás do prejuízo. E, geralmente, essas coisas a gente recebe e não diz nem obrigado.

Eu não lembro mais da mandinga da simpatia. Mas se eu soubesse como era, eu acho que faria ela na minha mulher. Faria até mais vezes por mês, só para garantir. Talvez até dia sim, dia não. Talvez não funcionasse, porque eu ficaria devendo o jantar, o óleo e o vinho. Eu sou um horror preguiçoso na cozinha. Mas sou bom de beijos, banho, massagem e o resto. Lembro que não pode passar de trinta beijos. Senão tem que começar tudo de novo. Sim, senhor. Talvez a simpatia esteja toda aí, em errar um pouco a conta e começar tudo de novo, cada vez com uma geometria diferente.

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Max




Existem cães que impressionam pela esperteza. Outros pela bravura. Alguns pela fidelidade. Há os que impressionam pelas habilidades matemáticas (como aquele do blog da Franka). E há também os cães heróis, os que salvam vidas, trabalham para os bombeiros. Desarmam bombas. Detectam drogas. Mordem ladrões. Espantam onças. Há os cães que são os olhos dos cegos. E os que vigiam e protegem.

O cachorro do meu irmão não é nada disso. Max é um cão que só dá trabalho. É impressionante! É um pastor alemão até bonito, talvez um pouco magro. Deve ser magro de nervoso, pois não existe animal mais inquieto na face da terra. O Max é fogo. Não há cerca que o segure. Não há nada que não roa. Não existe nenhum cão mais desobediente, barulhento, estouvado e agourento do que aquele. Mas o meu irmão e meus sobrinhos acham aquele mamífero uma manifestação inequívoca da inteligência divina, uma dádiva dos céus, um quadrúpede para ninguém botar defeito. Eu acho que é o cão dos infernos, um presente de grego, um canino que deveria ter nascido dente.

O meu irmão adora contar vantagem do cachorro dele.

_ O Max comeu o rabo do gato do vizinho!

E não era um jogo de palavras. Eu vi o gato sem rabo, não tinha nem o cotoco.

_O Max roeu o tronco da goiabeira até derrubar a árvore, numa só noite!

E eu vi a goiabeira no chão, o tronco destroçado, as marcas de dentes.

_O Max cavou um buraco de um metro de fundura debaixo da cerca e fugiu pelo quintal do vizinho!

Eu vi o buraco. Dava até para eu passar debaixo da cerca.

_O Max roubou um bolo inteiro da cozinha de casa! Antes ele arrebentou a tela da cerca no dente! E entrou e saiu por uma janela de menos de 30 centímetros, que fica junto ao teto!

Essa eu duvidei, mas os meus sobrinhos confirmaram. Todos são fãs do Max. Até os meus filhos.

_O Max mergulhou no lago e trouxe um pneu novinho!

_Aí também, não! Assim não dá, brother! Aí você foi longe demais – eu digo, irritado com as vantagens do Max.

_Pode ir lá em casa conferir, se quiser. O pneu está tão bom que eu resolvi colocar no meu carro. Se o Max achar outro já dá para eu fazer um rodízio.

_Pô, então entrega as chaves para o cachorro e deixa ele levar o carro na oficina!

E eu olho para a beira do lago e lá está o Max, mergulhando atrás de mais pneus. Só falta uma máscara e um snorkel para ficar igual ao Bionicão. É um cachorro impressionante.

domingo, 25 de maio de 2008

Almoço aos domingos



Aqui em casa nós revezamos os avós. Se a gente vai à casa dos meus pais num domingo, no outro nós iremos para a casa dos pais da Patroa. Dessa maneira, as crianças brincam com os primos e os avós dos dois lados da família. Nós poderíamos ter encontrado outra fórmula, mas essa parece suficientemente justa e adequada. Além disso, é ótimo filar o almoço de domingo na casa dos outros.

No domingo passado, nós fomos para a casa dos meus sogros. Sogro e sogra costumam ser uma unanimidade negativa. Mas comigo é diferente. Eu gosto de ambos. E não é porque a Patroa lê o blog de vez em quando. Acho os dois legais, de verdade. E no domingo passado eu levei um filme com o Sean Connery para o meu sogro. O nome do filme é “Ver-te-ei no inferno”.

A Patroa me viu com o filme na mão e perguntou se eu estava fazendo média com o pai dela.

_Média? Com esse título ele vai pensar que eu quero é uma briga - eu disse.

Mas eu exagero, é lógico. Ele gostou do filme. Quem não gostou foi o Chicão. O Chicão é um dos dois co-cunhados, casado com a irmã mais velha da Patroa. O Chicão é gente fina. Já saiu de madrugada na rua para me ajudar com alguma coisa. Já me ajudou a trocar pneu furado em curva no final de descida em horário de rush. Eu, ele e outro co-cunhado disputamos quem é o favorito do sogro e da sogra. Por causa disso, sempre que podemos, cada um procura mostrar que é melhor, mais sabido e mais fodão que os outros. Praticamos a Lei de Gerson o máximo que podemos, procurando levar vantagem nas mínimas coisas, observando os efeitos de todas as frases e situações embaraçosas que criamos uns contra os outros.

O Chicão começou a ver o filme e disse assim:
_Esse filme é com o Sean Connery? Filme com o Sean Connery é filme gay.
_Então senta aí, Chicão. Acho que nesse filme tem nu frontal do Sean – eu falei.
_Jura? – ele perguntou.
_Juro, santa. Se você prestar atenção vai ver que ele manda uma mensagem para todos os gays do planeta quase na metade do filme, antes de tirar a roupa.
_E qual é a mensagem?
_Comam o Chicão.
_Rá, rá. Só se esse Chicão fosse careca...
_Qualé Chicão, vai me dizer que você tem preconceito?
_Preconceito? Eu não. Cada um cuida do que é seu. Eu cuido do meu...
_Pô Chicão, essa não. Essa é muito velha.

Mas é lógico que não sou eu nem o Chicão. O favorito é o outro cara, o Moacir, que nós chamamos de Moa ou de Cizinho, o primeiro genro. O Moa também é chapa da gente. Já carregou botijão de gás na chuva para a gente. Sabe aquela piada do sujeito que usa o banheiro de porta aberta? Inspirada no Cizinho. Só para você ter uma idéia do grau de preferência, o Cizinho tem uma gaveta de cerveja importada na geladeira do sogro. Enquanto eu e o Chicão disputávamos quem sacaneava o outro com frases cada vez mais xulas, o Cizinho chegou do futebol e ganhou, sem pedir, uma cerveja holandesa. Minha sogra preparou uma pururuca especial só para o dito cujo. O Cizinho virou para a gente e falou que o mandiopã estava di-vi-no mas que, infelizmente, ele havia comido tudo por recomendação médica.

As crianças correram para mostrar os desenhos para o Cizinho. As irmãs Patroa correram para as últimas instruções e recomendações inteligentes e sábias do Cizinho. E a gata da casa veio e ronronou especialmente para o Cizinho. Quando terminou de esclarecer a todos com suas fantásticas inspirações, o Cizinho virou para nós dois e perguntou qual era o filme que as bonecas estavam assistindo.

_Isso aí tá com cara de filme gay! – disse o Cizinho.

E o Cizinho nem precisou falar nada. O Sogrão levantou e deixou a poltrona Patrão para ele e tomou o Super C.R., o Super Controle Remoto, das mãos do Chicão.

_Cizinho é que é feliz – disse o Chicão.

E o Sogrão recomeçou o filme. Desde o letreiro, para que o Cizinho entendesse tudo.

Desse jeito, os domingos passam bem depressa.

sábado, 24 de maio de 2008

Um passeio até a cachoeira de Itiquira



Uma amiga convidou e achamos que seria bom para as crianças. Uma das melhores coisas de se ter filhos é que você pode usar as crianças como desculpa para o que você quer fazer. E também para o que você não quer fazer. A Patroa fez piquenique com a família naquela área ainda antes de usar o primeiro sutiã. Eu não ia para a cachoeira de Itiquira desde os tempos da universidade.

Da última vez que fui, um mosquito grande me picou na batata da perna. Fiquei com uma dor profunda vários dias. Até descobrir que uma larva de mosca, chamada berne, é que estava provocando aquelas pontadas doloridas. Tirei a larva colocando um pouco de cola branca na ferida. A cola secou e agarrada a ela ficou a tal larva. Depois disso, só vou para o mato com meio quilo de repelente ao alcance das mãos.

Então, como só tínhamos boas lembranças, queríamos ver a bela cachoeira agora, com os nossos olhos de adultos crescidos e responsáveis. E também com os olhos das crianças. Queríamos ver a cara de espanto e admiração delas na frente da queda dágua.

Combinamos sair às nove e meia e conseguimos ser bem pontuais. O feriado aliviou o trânsito e conseguimos chegar em quinze minutos no ponto de encontro, no posto da saída norte da cidade. Ali, um carro com o restante do grupo de amigos nos aguardava. Esta cidade fica a uma hora e meia de Itiquira.

Foi um passeio bem tranqüilo e agradável. A estrada está razoável e não aconteceu nenhum imprevisto. Descemos do planalto e começamos a subir uma serra. Depois descemos de novo e percorremos um largo trecho de planície até chegarmos de frente a um novo planalto.De repente, numa reta de pista, como se os engenheiros tivesse planejado oferecer a todos aquela mesma visão, nós vimos a cachoeira lá na frente. Um risco branco numa parede de pedra. As crianças gritaram no carro, mas sem muito entusiasmo. Acho que não viram a cachoeira.

Às onze horas estávamos à frente da entrada do parque onde fica a cachoeira. Deu tempo de fazer um lanche rapidíssimo. E entramos no parque. As trilhas estão todas calçadas com pedra e cimento, não é mais o barro e cascalho que eu tinha na memória. Tudo estava limpo e bem cuidado. Não havia o mar de mosquitos imaginado, mas, mesmo assim, cobrimos as crianças de repelente. Entramos no parque e um homem, educado, perguntou se estávamos levando algum alimento ou bebida em embalagem descartável. Eu menti que não. Sempre levamos bolachas nas mochilas. Eu carrego o lixo de volta para casa, na mesma mochila. Mas não abro mão das bolachas. O homem percebeu que eu estava mentindo, mas não falou nada e nós entramos.

Segurei a mão do meu filho. E a mão da minha filha. Em dez minutos de caminhada leve, despreocupada, já estávamos bem próximos da nuvem da queda dágua. As crianças olhavam para cima, boquiabertas, deslumbradas. Mas o encanto rapidamente se foi. Elas só queriam entrar na água o mais rapidamente possível. A Patroa entrou na água gelada com as crianças. Eu fiquei de fora, ocupado com a logística. Toalhas. Chinelos. Meu bloquinho de anotações. Na verdade, a única razão para que eu não entrasse na água era a ausência de calção de banho. Eu simplesmente me esqueci de levar o calção de banho.

Foi bom. Fiquei quase uma hora exercitando a arte de observar meus filhos com outros adultos, em lugar cheio de perigos, sem gritar, sem espernear, sem dar palpites e com aparente tranqüilidade. É extraordinário o número de vezes em que tive vontade de gritar “cuidado!”, de dizer “olha essa pedra!”, “isso escorrega”, “olha aí, olha aí”. Contei 86 traços no meu bloquinho de anotações. Caramba, caramba, caramba. Mesmo assim, fiquei calado quase o tempo todo. E depois que as crianças saíram da água, estavam morrendo de fome. E foi muito bom eu estar com as bolachas ali, dentro da mochila.

Foi super - legal. Ninguém se machucou. E eu só levei umas trinta picadas de mosquito na nuca. Na pressa, deve ter sido o único lugar que não passei o repelente. Agora, enquanto escrevo isso aqui, estou com a sensação estranha de que minha coluna vertebral está iniciando um processo de bifurcação. Estou com medo de ser berne.

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Não é culpa do Spielberg



Eu e a Patroa gostamos de ir ao cinema. E ontem, sem fazer força, acabamos por arrumar um jeito e fomos ver o novo Indiana Jones. É divertido. Aqui, nessa cidade, se você quiser pagar meia no cinema, tem que mostrar carteira de professor ou de estudante, carteira de identidade e uma capa de contra-cheque. Eu paguei uma inteira e a Patroa pagou meia.

Nós fomos ao shopping, compramos os ingressos para o filme e depois fomos comprar a comida numa lanchonete. Quando voltamos, já havia uma fila razoavelmente grande na frente do cinema. Tinha um sujeito aparentemente exoftálmico em último. Lembra do Marty Feldman, aquele ator de olhos gigantescos dos filmes do Mel Brooks? Dizem que era exoftalmia. Eu perguntei para o dublê de Marty se aquela era a fila para ver o novo Indiana Jones. Ele disse que achava que sim. Eu disse que muitas vezes as pessoas confundem a fila de comprar ingresso com a fila de entrar no cinema. Disse também que era por isso que eu estava perguntando, porque afinal de contas, eu já havia comprado os ingressos. E ainda disse que não havia fila nenhuma para comprar a entrada.

O sujeito parecido com o Marty Feldman olhou para mim com os olhos esbugalhados. Esticou o pescoço, deu uma olhada lá na frente. E viu com os próprios olhos que realmente não havia fila para comprar as entradas. Ele disse obrigado e saiu da fila. Eu comentei com a Patroa que muitas vezes as pessoas entram nas filas sem saber que estão na fila certa. E disse também que foram os olhos daquele sujeito que me deram a impressão de que ele não sabia realmente onde ele estava. E então a mocinha que estava à nossa frente se virou para mim. Sem encarar a moça eu disse para a Patroa que ainda bem que já estávamos com os nossos ingressos e que a fila parecia estar bem rápida. E a mocinha também saiu da fila.

Em seguida, um grupo de rapazes que olharam para o traseiro da mocinha também percebeu que estava na fila errada. E num instante já estávamos a entregar os bilhetes na entrada das salas.

A moça que recolhe os bilhetes olhou com atenção de especialista os documentos apresentados pela Patroa. Escrutinou a identidade. Virou e revirou a carteira de professor. E eu pensei que ia abrir o contra-cheque. Mas deu uma olhadela condescendente para nós dois e deixou a gente seguir. Ainda bem, porque eu estava carregando um milk-shake e um refrigerante, ambos de meio litro. E a Patroa estava ocupada com os sanduíches e a bolsa enorme que ela carrega para tudo quanto é lugar.

Ficamos em excelentes lugares. E vimos os treilers de “Nárnia , O príncipe Cáspian”, “O Incrível Hulk” e “Kung Fu Panda”. O filme do Indiana tem uma seqüência inicial ao som de Hound Dog do Elvis. Curti muito. Nessa pequena obra-prima de abertura, o Spielberg fez a câmara dar voltas e mais voltas impossíveis e só isso já teria feito valer a ida ao cinema. O filme tem um ritmo alucinante, mas não sei, não me empolguei tanto. Não sei se foi o Spielberg que exagerou na dose, ou se sou eu que estou perdendo a capacidade de imersão. Talvez tenha sido o Spielberg, porque eu lembro de ir a filmes dele em que as pessoas aplaudiam no final, extasiadas.

Saímos quase ao mesmo tempo que o Marty Feldman tupiniquim. Ele também não me pareceu que ia soltar foguetes de entusiasmo. A Patroa gostou do filme. Ela gostou de uma parte que tem cobra. O Indiana só tem medo de cobra, lembra? E eu gostei muito de uma parte que tem formiga.

Depois pensei melhor. Não é culpa do Spielberg. E o Harrisson Ford está magnífico. Acho que o problema é meu. Eu fico cada vez mais velho e chato. Daqui a pouco só gosto de mundo animal.

(Eu tinha escrito errado antes. Não era xeroftalmia que o Feldman tinha. Era exoftalmia e estrabismo. O Cabeça me corrigiu e eu fiz o remendo.)

quinta-feira, 22 de maio de 2008

Lavaria seus pés com os cabelos



É raro acontecer uma briga dos dois. A diferença de idade é inferior a dois anos e eles adoram brincar juntos. Ele tem cinco anos. E ela o ama desmedidamente. Se ela quer água, sempre carregará dois copos. Um é para o irmão. Ela pede duas balas. A outra é para o irmão. Dois doces. O outro é para o irmão.

Ela não se importa de servi-lo como a um rei. Ela quer o seu acordo em tudo. E em tudo pede a sua opinião. “Não é, irmão?”. E isso, às vezes, o cansa.

Em seu amor por ele, tão grande e inocente, ela lavaria seus pés com os cabelos cacheados. Como fazem na bíblia.

Ele também faz suas gentilezas. Não com tanta humildade. Não com esse amor explícito em cada gesto. Com essa entrega total, como se fosse um pulo do despenhadeiro.

Mas como medir amor e humildade? Isso é mensurável?

Ele às vezes abdica do que acredita ser o seu direito de primogênito. Ele a deixa escolher o vídeo que irão ver. O game que irão jogar. Ele a deixa apertar os botões do elevador. A abrir a porta. A carregar a chave. Ele permite a ela, por alguns minutos, brincar de ser o filho mais velho. Ele abre mão desse lugar e dessa função importante. Da primogenitude. Do que ele considera ser só dele, seu direito puro e legítimo. Seu "direito" de ser o primeiro a falar. De vez em quando, ele concede a ela, magnânimo, o poder de mandar em tudo, de escolher primeiro o super-herói que vai ser. De decidir qual será o vídeo. É mais do que fez Esaú. Muito mais.

E, às vezes, eu acho que eu o entendo melhor. Mas talvez seja porque acho mais fácil me projetar na sua mente. Como entrar na cabeça dela? É difícil. Como pensam as meninas de três anos de idade? Na cabeça dele, eu me projeto. É um exercício de regressão. Eu volto um pouco na minha infância. Recordo nele os meninos que fui e me imaginei. Se houver coincidência com a imagem de hoje, eu acho que o entendi. Muitas vezes não entendi, mas acho que entendi. Ao menos tenho a impressão de entendimento. Ele tenta, muitas vezes, ganhar no grito, me dobrar com choros e momos. Mas com ele tenho mais certezas, sou mais inflexível, mais duro, porque acredito que isso lhe fará bem.

Com ela, não funciona assim. Acho que ela me compreende mais rápido e me surpreende. Ela tem uma inteligência alegre, que brilha nos olhos. Há regressão e projeção, mas não com a mesma intensidade, não com os mesmos efeitos. Com ela as minhas máscaras não servem direito. Com ela tende a ser mais um esforço emocional, com uma carga de razão. E ela me desconstrói mais rápida, desmonta as minhas estratégias, esperta. Ela foge mais depressa de mim. E sorri. E, de repente, canta uma música, me dá um abraço. Ela tem mais sucesso do que ele com choramingos e fingimentos. Num instante, ondas enormes crescem e arrebentam dentro do meu peito. Com ela faço mais concessões, cedo mais nas barganhas. E tenho mais medo de errar.

Então os dois brigaram feio na natação. Até a moça da recepção ficou preocupada. E durante alguns dias, o menino voltou a fugir da sala, na escola alternativa. Mas agora já não foge mais. E a menina quer que eu tome um copo d´água com ela, todos os dias, antes de entrar na sala. E a água do filtro de barro está sempre fresquinha. E quer saber? Eu acho tudo sensacional.

Eu olho para cima e digo “Caramba! Muito obrigado!”. Digo mesmo.

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Curtas do Humberto




O Humberto gostava de fazer pergunta escrota. E gostava de ser diferente, original.
_Careca, qual é a sua maior fantasia sexual?
_Qualé, Humberto? Que papo é esse?
_A minha tem a ver com gêmeas.
_Gêmeas? Fantasia mais comum, Humberto.
_Siamesas. Trigêmeas siamesas.

O Humberto gostava de tirar sarro das pessoas. Ele implicava com o motorista da TV. Ele fazia assim:
_Ô Manuel? Ô Manuel? Ô Manuel?
_Fala Humberto. Fala Humberto. Fala Humberto.
_Quando você descobriu que é viado?
_Eu não sou viado.
_Tá bom, você não é viado. Você só gosta de homem, né?
_Eu não gosto de homem.
_Nem do seu pai?
_Do meu pai eu gosto. É o único homem que eu gosto.
_Você chama o namorado de papai?
_Vou chamar é uma porrada nessa tua orelha.
_Você ou o seu namorado? Podem vir os dois juntos.
_Humberto, não me provoca.
_Senão você solta a franga, né?
_Você está passando do limite, cara.
_É, daqui a pouco você vai virar Cinderela.
_Eu vou é quebrar a sua cara.
_E eu vou cortar a sua cabeça e colocar na minha sala, seu bambi.

Era só provocação. Só uma aporrinhação mútua para espantar o tédio. Os dois eram chapas.Mas um dia os dois realmente brigaram. E ouvi dizer que o Manuel apanhou um bocado. E ainda por cima foi demitido. Aí eu perguntei para o Humberto o que tinha acontecido.

_Aquele babaca vivia me sacaneando – ele respondeu.
_Mas Humberto, você vivia chamando o cara de viado...
_E quem disse que o mundo é justo?
_Humberto, você é doido.
_Careca, você não sabe de nada.

O Humberto gostava de fazer piada com todo mundo. Então um dia ele pediu meu telefone celular emprestado. Eu detesto emprestar o telefone. Eu detesto emprestar qualquer coisa. Livro, por exemplo, só empresto para o Cabeça. Ele cuida direito. Não amassa, não marca. Ele não devolve alguns, mas tudo bem. Sei que está com ele, bem guardado. Os que ele devolve são os que ele não gosta. Já percebi. Mas acabei por emprestar o celular para o Humberto. Ele colocou o dia do aniversário no meu telefone. E programou um lembrete para eu ligar para o número dele. Já faz uns cinco anos que não vejo o Humberto. Mas todos os anos, por causa do lembrete, eu ligo para ele pelo menos uma vez.

_Careca, é você, seu viado?
_Tá boa, santa?

Ele está bem, o canalha.

terça-feira, 20 de maio de 2008

O pior dos pecados



Os sete pecados capitais. Todos eles são mortais. Mas não é só você que morre. É você e a sua alma. Se você cometer um deles, se não for perdoado, sua alma queimará no inferno por toda a eternidade. Foi assim que eu entendi, quando me ensinaram. Talvez eu tenha entendido errado, não importa mais. Para mim é isso que vale.

Não sou muito religioso, mas procuro fazer os instintos básicos mandarem menos. Tento abrandar um pouco o futuro fogo debaixo da minha alma condenada. Não sou muito guloso. Mantenho o luxúrio dentro das calças. Sou pão-duro, mas dou minhas esmolas. Tenho raiva de agüentar muita coisa calado, mas aguento. Minha soberba é meio chinfrim, classe média. Minha preguiça tem hora certa. E a inveja, se é forte, eu procuro sufocar debaixo do chuveiro frio.

Se eu tivesse que colocar uma hierarquia de importância, começando pelos menos “nocivos”, eu deixaria nessa ordem: gula, luxúria, avareza, ira, vaidade, preguiça e inveja.

Essa é a minha ordem. Pode não ser a sua. Não fique bravo. Controle a sua ira.

Gula é uma coisa terrível para algumas pessoas. Um bom jeito de verificar se você mantém a gula sob controle é numa boca livre. Em casamentos, por exemplo. Se você ficou na sua, e não correu na hora que liberaram geral, então você está bem, cara, você está bem. Agora, se ficou na sua, mas arrependido de não ter espetado um garfo na mão de alguém, você precisa de tratamento. O melhor tratamento para Gula é comer muito. Sem mudar o guarda-roupa.

Luxúria também pode ser terrível. O remédio para ela é o mesmo indicado para Gula, sendo que o melhor é nem usar nada do guarda-roupa. E sem esconder em guarda-roupa.

Avareza, me dá uns ataques. Já tive muitos ataques de avareza. Nenhum chegou ao extremo de me deixar anoréxico, a ponto de esconder comida, mas já cheguei perto. Mas também não me preocupo muito com avareza. Tem muito profissional espalhado no mundo trabalhando com ela, fazendo a gente gastar à toa. Por exemplo, lançaram o iPod. A Sony lançou a digital reflex. Além disso, o governo já fica com 40 por cento. Então, não tem muito jeito de ser avaro hoje em dia. E aí a gente vai e provoca inflação. O melhor tratamento para Avareza é freqüentar restaurantes caros e manter um guarda-roupa fashion.

A Ira me preocupa. Sou muito irado, às vezes. Mas ando mais controlado. As pessoas me chamavam de Careca Hostil, de tão raivoso que eu era. Uma vez fizeram uma plaqueta, dessas de acrílico. Colocavam em cima da minha mesa e eu nem percebia. Estava escrito assim: Mala Raivoso. Um dia chegou uma pessoa, de repente, e mandaram falar comigo. Esqueceram de tirar a placa. A pessoa olhou para mim, olhou para a placa, virou e foi embora. Se eu estivesse no lugar dela, eu também teria ido. O tratamento para a Ira é igual ao da Gula, só que você tem que bater no guarda-roupa.

A minha Vaidade é um pouco desproposital. Sei que eu poderia ser mais modesto, mas isso simplesmente não me ocorre. Acho que vou arder muito no inferno por causa da minha Vaidade. E ainda vou ficar me gabando. Rá. Rá. Minhas chamas serão mais altas e flamejantes que as do Cabeça! O melhor tratamento para a Vaidade é entupir o guarda-roupa.

Preguiça todo mundo tem. Eu tenho, principalmente depois do almoço. Mas é só tirar um cochilo que passa. Meia hora. Depois eu estou novo. O melhor tratamento para a Preguiça é arrumar o guarda-roupa. Mas primeiro tem que esperar ele ficar muito, muito bagunçado.

E por último tem a Inveja. É o pior de todos os pecados, a Inveja. A minha então, nem se fala. Eu devo ter uma das maiores Invejas de todos os tempos. Dá até raiva de pensar nisso. E eu poderia até contar uma ou duas situações em que a minha Inveja bota pra quebrar, fazendo até strip-tease em cima de bolo de casamento, mas não vou dar esse gostinho pra ninguém. Não, senhor. O melhor tratamento para a Inveja é ter um closet. Maior do que o do Cabeça!

E eu pedi para uma grande amiga definir Inveja. Ela escreveu assim: “Inveja é uma falta sentida que você vê plenamente preenchida no outro. Aí você pensa: Como? Ele tem o que EU não tenho? Não vai ter não”!!!

Nunca vi uma pessoa entender tanto de pecado. Mais que padre. É genial, essa amiga.

Depois tentei imaginar uma cor para cada pecado. É difícil.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

A volta de Humberto



Uma vez falei aqui do Humberto. Ele é apresentador de TV e acha que ainda é boa pinta. Ele tem suas idiossincrasias. Às vezes é um bocado escroto. Todo mundo é. O único problema é que o Humberto acha que não é preciso maneirar um pouco. É o tipo do cara que você não chama para uma reunião de família, mas que faz todo mundo no boteco morrer de rir. Ele tem presença, o Humberto. É um canalha. Mas também sabe ser simpático. Já teve coleção de namoradas. Namorada da segunda. Namorada da terça. Namorada da quarta. Namorada da quinta. Sexta livre para repeteco. Sábado para a paquera desenfreada. Domingo, ninguém é de ferro, fugir de todas, ficar com a filha.Eu achava que era exagero, isso de ter uma namorada para cada dia da semana. Uma só já dava muito trabalho.

Eu e o Humberto almoçávamos sempre na mesma caverna. Aquilo era muito ruim para ser chamado de restaurante. A rigor, nem poderia ser chamado de caverna, era só um buraco. Um dia convenci o Humberto a ir para outro lugar. Aí fomos almoçar num restaurante que só servia camarão. Muito bom, aquele restaurante. Ficamos rodeando as grandes panelas de barro ferventes. Era camarão de tudo quanto é jeito. De repente, o Humberto paralisou.

_Careca, hoje é que dia mesmo? É quarta?
_Terça.
_Quarta está vindo para cá.
_Como é?
_Eu marquei de encontrar a Terça daqui a pouco. E a Quarta está aqui e já me viu.
_Pô, Humberto...
_É por isso que eu não queria trocar de restaurante. Agora você vai me ajudar a sair dessa.
_....? – nem deu tempo de falar nada e a Quarta já chegou para uma bitoca no Humberto.

Ele me apresentou. A Quarta era linda. Mais bonita que a Terça, que eu já conhecia desde a universidade. Cada um fez seu prato. Sentamos juntos. E eu sem saber o que fazer. Sem ter como combinar. E nada da Quarta ir ao banheiro. De repente, vejo Terça. Ela entra e acena para mim. O Humberto está ao lado da Quarta, de costas para Terça. Eu aceno de volta, mais para o Humberto perceber que a outra já chegou. Pensei que ele ia correr para o banheiro, sem olhar para trás. Mas nada. Continuou o almoço, numa boa. Terça veio, me cumprimentou, deu dois beijinhos. E aí virou para o Humberto.

_Oi, meu amor! Nem me dá um beijo?
_Olá, muito prazer, Humberto – formal como um político na tribuna.
_Ih, meu bem, que coisa mais boba. E quem é sua amiga? – perguntou Terça, desnorteada.
_Careca, você poderia nos apresentar sua amiga? – falou o Humberto. Todo empertigado. Terça olhava os dois, espantada. Quarta parecia estar corando.
_ Ué, pensei que vocês já se conheciam – eu disse, meio atônito. Fulana (Terça), esse é o Humberto e essa é a Beltrana(Quarta). Almoça com a gente, Fulana (Terça)?
Quarta, ou Beltrana, estava desconfiada, vermelhíssima. Terça estava furiosa.
_Humberto, você é um canalha! – ela berrou. Para uma Terça, ela berrava como se fosse a semana inteira.
_Careca, essa sua amiga é louca, hein? – disse o Humberto, frio como um atum. E eu fiquei calado como um camarão.
_Canalha! Canalha! Canalha! – Terça berrava.
_Garçom, por favor, tire essa pessoa daqui, por favor – dizia o Humberto, na maior calma.
__Canalha! Canalha! Canalha! – Terça espumava, derrubava pratos e copos e chutava o Humberto.

A coisa ia virar pancadaria. Felizmente, Beltrana (Quarta) descobriu ali, naquele dia e naquele instante, que era alérgica a camarão. Começou a ter um trelêlê tão espalhafatoso que Terça teve que parar. Como ficamos todos ocupados demais para correr para o hospital, a briga acabou adiada. Depois, inclusive, Beltrana e Fulana viraram amigas e deixaram de ser dias da semana para o Humberto. Foi a primeira vez que vi solidariedade entre traídos. É raro, mas acontece.

domingo, 18 de maio de 2008

Cuidados com a caixa de ir embora




Eu já troquei de trabalho algumas vezes. É esquisito mudar de trabalho. Existem uma série de rituais a seguir. Não é só passar no departamento de pessoal e avisar, com certa antecedência. É preciso fazer um planejamento prévio. Sua mesa, por exemplo. É preciso esvaziar a mesa aos poucos. Sem pressa. Ou então você vai levar quilos e quilos de papéis para casa que ficarão esquecidos numa gaveta funda. Ou numa caixa de papelão. Aqui em casa tem algumas assim.

É. Eu aprendi na prática. Saí muitas vezes com muita pressa de lugares bacanas, onde passei alguns anos. Aí encaixotava as minhas coisas, a papelada das minhas gavetas, toda a tralha que eu via pela frente. E quando chegava em casa nem me dava ao trabalho de olhar resmas e resmas de papel. Não valem nada. Ninguém precisa disso.

Na verdade, não tem muita coisa para levar quando você sai de um trabalho. Fotos. Molduras. Certificados, se for o caso. Certidões. Nada consta. E pronto. Cabe tudo na mão. Você acha que nem vai precisar daquelas caixas de arquivo, amarelas, de plástico.

Uma pasta L, daquelas transparentes, dá conta do recado. Um pen drive, para copiar os e-mails. Algumas coisas que a gente sempre leva de casa e esquece de pegar de volta. E uma ou duas coisas do escritório que você surrupia, só para guardar de lembrança. Um grampeador. Um porta-clips. Um apontador de lápis, dos menores, com manivela.

Pensando bem, a caixa amarela será ótima para guardar tudo. Só não vai caber aquele pôster. Como que pôster? Aquele que você sempre quis pendurar na parede mas não teve coragem. Aquela camisa do seu time autografada. A foto da praia. Aquela mensagem bacana que um dia te iluminou.

Ah, você não é disso? Tudo bem, esquece o pôster. Se você conseguiu colocar tudo na pasta amarela então já é hora de dar o fora. Não enrola na hora de sair. Nada de despedidas grudentas. Dê adeus com os olhos. Nem fale nada. Só mexa a boca, desenhando as palavras: Tchau Pessoal. Saia como aqueles caras do cinema, quando estão nessa situação.Levante a caixa na altura do peito, estique o queixo e siga a ponta do seu nariz. Tente andar em linha reta e sem tropeçar em ninguém. Dispense quem estiver te seguindo com a sua clássica olhadela de cima para baixo. É você que está indo embora. Isso é uma coisa para se fazer sozinho. Mantenha o foco na ponta do seu nariz.

Mas aperte a mão daquela moça que sempre te ajudou. Seja educado. Dê um abraço no chapa que quebrava os teus galhos. O sujeito a quem você pedia para comprar alguma coisa, de vez em quando. Minta para aquele coroa gente boa que você vai aparecer para um cafezinho. Você não vai voltar. Talvez ligue, para perguntar se acharam aquele troço que você não encontra em lugar nenhum. Mas você não vai voltar. Nunca mais.

E quando você chegar em casa, todos os seus terrores estarão instalados. Todos os seus arrependimentos estarão fazendo força para te derrubar. Entre no chuveiro e tome uma ducha. Isso passa. Amanhã será um novo dia e um dia você encontrará outro lugar. Nem que leve mais de um ano. Passa rápido como o inferno.

sábado, 17 de maio de 2008

Para as vacas magras



Vocês, eu não sei, mas aqui em casa a gente guarda um monte de coisa para mais tarde. Eu mesmo sou mestre em deixar um pedaço de mortadela, parte do recheio, aquele pouquinho de suco lá para o final da refeição. E tem todos aqueles objetos, para depois. Tem aquelas coisas banais, mas de boa qualidade. Faqueiro. Louça fina. Copo de cristal. As coisas que se colocavam naquele móvel antigo, a cristaleira, que ninguém mais tem em casa.

Tem aquelas lembranças delicadas das pessoas que amamos e morreram. A bandeja com xícaras de café, pequenas, com uma toalhinha bordada, um presente da avó.

Tem os presentes que ganhamos e achamos tão bacanas que não temos coragem de usar e viram enfeites. Um conjunto de porta temperos que um casal amigo trouxe do exterior. Um negócio de porcelana do Gaudí, que outro amigo trouxe de Barcelona. Uma chaleira japonesa que usamos para enfeitar um móvel. Coisas que fazem a gente ficar emocionado só de pegar. E que a gente deixa em lugares bem altos para as crianças não se entusiasmarem.

Tem aqueles presentes que ganhamos no casamento e deixamos ali, numa prateleira também meio inacessível. Aliás, eu e a Patroa devemos ter casado num ano de abundância de queijos e vinhos. Ganhamos um monte de aparelhos para fazer “fondue”. Naquele ano, se a gente tivesse entrado num campeonato de colecionadores de aparelhos de fondue, nós teríamos ganhado, com certeza. E eram modelos de aparelhos absolutamente iguais. Conseguimos repassar um bocado, até que os amigos começaram a chamar a gente de “casal fondue”. Aí voltamos a dar relógios de parede. Voltamos a ser “da hora”. E ainda temos um bocado de aparelhos de fondue.

Mas tem as coisas não sentimentais, que fazem parte dos excessos de outros tempos. Roupa de cama. Toalha de banho. Edredons. Essas e outras coisas ficam nos fundos dos armários, muitas vezes dentro das embalagens originais. É como se esperássemos os sete anos de vacas magras. Só pode ser isso.

Eu não sei vocês, mas aqui em casa os anos de vacas gordas passaram em alguns dias, no máximo uns meses. Foram, sem dúvida alguma, as vacas gordas mais rápidas da história. Zum. E eu só via o rabo da vaca, zarpando. Zum. E lá se foi mais uma. Ainda bem que guardamos todas essas coisas para as vacas magras. Elas são muitas, essas vacas, a gente conta com os dedos das mãos e dos pés.

Pois foi pensando nas vaquinhas, magrinhas, coitadas, que não param de chegar, que eu dormi ontem a noite. E eu sonhava assim:

_Entre Dona Vaca. Está com frio? Espere aí que eu vou pegar um edredon super bom tri-fio que guardei especialmente para essa ocasião, lá no fundo do armário. Quer água? Vou servir naquela bandeja de prata especial, naquela taça de cristal gravado em jato de areia, do meu casamento. A jarra também é do casório. Ganhei de um primo que nunca mais vi. Se quiser tomar um banho quente, tenho uma toalha para esse exato momento. E sabão. Tenho quilos de sabão especial e até sais de banho. Se bem que aqui em casa eu não tenho banheira. E quando a senhora terminar, ponha um roupão daqueles embalados e venha para a mesa. Vamos ter “fondue”.

E então eu olho para a vaquinha suar, preocupada.

_Fica assim não, boba, é “fondue” de chocolate...

sexta-feira, 16 de maio de 2008

O cuidado com as palavras




Aqui em casa é preciso cuidado com as palavras. Todo mundo se ofende facilmente.

Ele agora tem cinco anos de idade e hoje resolveu testar a minha paciência. Isso acontece muito. Ele atirou um dos brinquedos novos, do aniversário, no chão. Com toda a força. Eu avisei, mais uma vez, que o brinquedo poderia quebrar. Criança tem hora que é um saco.

Como todo mundo.

Eu respiro e conto até vinte e sete. É só o que dá tempo, porque ele jogou o brinquedo no chão, novamente.

_Pai, quebrou a perna! E agora?
_Eu avisei, agora nem adianta chorar.
_Conserta, pai!
_Esse aí não tem jeito. Não dá. Não pega cola nenhuma.

Não é má vontade. É que não pega mesmo. É um tipo de plástico que não pega super-bonder, nem cola branca, nem cola quente, nem pvc, nem cola de sapateiro, nada. Já tentei até derreter e costurar. Não dura nem um minuto. É brinquedo one-way. Um robô bacanérrimo, de um grupo de robôs super-bacanas. Mas se quebrar um pedaço, já era.

Tudo bem, acho que tem um pouco de preguiça no meio.

_Pai, não sou mais o seu amigo.
_Puxa vida, acho que já tivemos essa conversa antes, uma porção de vezes.
_É, só que agora é pra valer.
_O que vale é o nosso pacto de “amigos pra sempre”. Lembra?
_Pai, você compra outro?
_Ih, filho, você ganhou esse de presente. E aí fica ...
_Então, não sou mais o seu amigo.
_Acho que você está sendo repetitivo.
_O que é isso, pai?
_Repetitivo? É quando a gente diz a mesma coisa muitas e muitas vezes.
_Pai, você sempre diz não! Isso é muito “repetivo”!
_...!

Dei de ombros, concentrado na leitura de “Onde os velhos não têm vez”, que é excelente. Uns dez minutos depois, a minha filha, de três anos, vem chorando.
_Pai, meu irmão me xingou.
_Não precisa chorar. Conta o que aconteceu.
_A gente estava brincando de carrinho e ele me xingou.
_Do que foi que ele te xingou?
_De “repetiva”. Pai, eu sou “repetiva”? Sou? Hein, pai? Paiê?

É preciso cuidado com as palavras aqui em casa. Todo mundo é super sensível. Super.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Como se sentir miserável



Topei mais uma vez com a Keri Smith depois de mais um dia de Yak Shaving. Primeiro fiquei com medo. Sabe todos aqueles e-mails de correntes que você recebe, que estão cheios de ameaças no final? Pois é, pensei que uma daquelas pragas estava fazendo efeito. Eu achei que meu computador estava navegando em círculos e tinha voltado no tempo, para algumas semanas atrás. Mas aí me deparei com o texto abaixo, numa tradução livre.

Como se sentir um artista miserável
(Ou o que não fazer, sublinhe qualquer linha pertinente)

1.Compare-se constantemente com outros artistas.
2.Fale com a sua família sobre o que você faz com a expectativa de apoio.
3.Baseie o sucesso de sua carreira em um único projeto.
4.Fique só com o que você sabe/conhece.
5.Subestime seu conhecimento.
6.Deixe o dinheiro mandar no que você faz.
7.Curve-se para as pressões sociais.
8.Faça apenas os trabalhos que sua família amaria.
9.Faça tudo o que o cliente / freguês /dono de galeria/ investidor pedir.
10.Estabeleça metas inatingíveis / estupendas. Para serem atingidas amanhã.

Obviamente, você pode substituir a palavra “artista” por qualquer profissão. Eu substituí por “pessoa”.

Naturalmente, resolvi fazer o post de hoje sobre ela. Tem um link para o blog da Keri aí do lado, à direita. É em inglês. E no meio de um monte de coisa legal que ela tem, ela bolou um kit de sobrevivência para artista. Ou melhor, para o ser humano. Já fiz um para mim.


HOW TO FEEL MISERABLE AS AN ARTIST
(OR WHAT NO TO DO, UNDERLINE ANY THAT CURRENTLY APLY)

1. CONSTANTLY COMPARE YOURSELF TO OTHER ARTISTS.
2. TALK TO YOUR FAMILY ABOUT WHAT YOU DO AND EXPECT THEM TO CHEER YOU ON.
3. BASE THE SUCESS OS YOUR ENTIRE CAREER ON ONE PROJECT.
4. STICK WITH WHAT YOU KNOW.
5. UNDERVALUE YOUR EXPERTISE.
6. LET MONEY DICTATE WHAT YOU DO.
7. BOW TO SOCIETAL PRESSURES.
8. ONLY DO WORK THAT YOUR FAMILY WOULD LOVE.
9. DO WHATEVER THE CLIENT/CUSTOMER/GALLERY OWNER/PATRON/ INVESTORS ASKS.
10. SE UNACHIEVABLE/OVERWHELMING GOALS. TO BE ACCOMPLISHED BY TOMORROW.

(Visite a Keri em http://www.kerismith.com/ )

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Passa a bola, Pelé



Uma das coisas mais gratificantes do mundo é encontrar uma pessoa generosa. Uma pessoa que, aparentemente, não esconde o segredo do pulo do gato. Já encontrei umas duas ou três pessoas assim. Pessoas que me deram dicas honestas, legais e inteligentes. Pessoas que fizeram questão de dividir constatações livre e espontaneamente, sem rodeios, sem fazer doce. E me ensinaram coisas para a vida inteira. Coisas profissionais, coisas do coração.

E bobagens legais.

Aqui vão algumas delas, só pra vocês ficarem sabendo do que eu estou falando.

_Ó, Careca, faz assim. Respira fundo. Prende. Aí faz pressão. E sopra com força, com a ponta da língua nas beiradas dos dentes de baixo. Aí. Viu, é fácil.

Essas instruções inesquecíveis foram dadas pelo meu primo Carláile, que é da minha idade, mas já sabia assobiar muito tempo antes de mim. Eu tinha sete anos. E depois que eu aprendi passei a praticar todos os dias, dentro e fora de casa, na escola, na rua, na padaria e onde quer que eu estivesse. Assobio até hoje. Mas só para chatear os outros. E nunca ninguém me ensinou a assobiar e chupar cana ao mesmo tempo. Também, não gosto de chupar cana. No máximo, eu mastigo a cana, se ela estiver cortada em gomos. Mas gosto de assobiar.

_Ó, Careca, você pega um cabo de vassoura e um pedaço de fio de cobre bem grosso e encapado. Desencapa as duas pontas do fio, assim uns cinco, seis centímetros. Se não tiver canivete, descasca com o dente e as unhas, mesmo. Isso, agora enrola a parte encapada do fio no cabo de vassoura. Deixa as duas pontas descobertas paralelas. Isso. Está pronto.

Isso aí foi o Jô, um amigo meu, que me ensinou. Era um estourador de tomadas. Em setembro do ano em que eu completei nove anos de idade, eu e ele estouramos umas trinta tomadas dos prédios da quadra. Só paramos depois que o Jô levou um choque. Foi tão violento que uma das obturações derreteu. Bom, isso foi ele que falou, eu duvido. Eu estava do lado dele e acho que ele exagerou. Não vi fumaça nenhuma. Tive que acertar três pauladas nele para que desgrudasse do cabo de vassoura. Só isso. Se tivesse derretido aposto que ele teria continuado. Se bem que ele ficou fedendo queimado uns dois dias. Mas o Jô é doido de pedra. E eu detesto choque.

_Ó, Careca, está vendo ali, é o contra-peso. Aquele é o cabo do contra-peso. Quando o elevador passar é só dar um passo. Viu?

Mas isso eu nunca tive coragem de fazer. Elevador-alemão só não é pior que roleta russa. Mesmo assim nunca esqueci. É, foi o Jô que me ensinou a andar ali em cima. Mas quanto ao contra-peso, fiquei só na teoria. Nunca tive coragem de dar o passo. E sobrevivi. Sei de uns quatro casos de meninos que caíram.

Depois, muito depois, uma amiga me falou uma coisa muito importante.

_Olha, Careca, eu não conheço ninguém que tenha vivido duas vezes. Para mim, todo mundo desenha no escuro, sem borracha. Mas existem uma porção de bons palpites por aí. Então, o melhor é prestar atenção e caprichar.

Bacana, essa amiga. Faz anos que não vejo. Até acho que presto atenção. Mas preciso caprichar mais.

terça-feira, 13 de maio de 2008

Escrever como punição



Demorei muito a reparar que eu só gostava de livros com narrador simpático. Não tinha nada a ver com gênero. Podia ser história de terror, mistério, policial, romance, conto, poesia, até jogral. O importante era o sujeito que bancava o narrador parecer simpático. Era um tipo de narrador meio padrão. Tipo voz de comandante de avião. Você troca de avião e lá vem o comandante com a mesma entonação de voz. Está sempre de bom-humor, meio irônico, brincalhão. Todos os grandalhões do cinema se espelharam nesse sujeito, nesse tipo bambambam com modéstia e ironia.A voz é diferente, mas todos falam de um jeito parecido. Bancam os super-heróis da cabine do ônibus voador.

O Tom Wolfe, num dos livros geniais dele, diz que todos os pilotos de avião são imitadores de Charles “Chuck” Elwood Yeager. Chuck quebrou todas as barreiras da aviação, inclusive a do som, e ainda fez umas cambalhotas de lambuja. O Chuck foi o maior piloto de avião de todos os tempos.
_Chuck, sua asa direita pegou fogo!! - alguém da base ligava e falava pro Chuck.
_Roger, informe a situação da asa esquerda, Roger!
_Chuck! A asa esquerda também está em chamas!!!
_Roger, acho que vou precisar de um extintor por aqui, Roger.
_Chuck! Você vai ejetar?!
_Roger, alguém poderia fazer o favor de acalmar a mocinha do rádio, Roger.

Então o meu narrador simpático era esse cara, que transmitia segurança, ironia e conforto com as suas cordas vocais tipográficas. Podia ser até um narrador meio metido a indiferente. Sabe aquele narrador fingido, que parece não ligar para as falas da personagem? Tipo Raymond Chandler, o maior de todos os escritores durões. Ele, de repente, solta uma metáfora, vem com uma frase torta que se encaixa feito faca no peito da gente. Pois então. Eu achava que só gostava de livros com narrador assim, durão, mas com golpes certeiros no meu coração de manteiga. Na terceira pessoa. Fulano fez isso. Sicrano falou aquilo. Mas com frases líricas. Com poesia logo depois da perseguição de automóveis e da porrada comer solta. E depois que eu reparei isso, eu pensei que estava perdendo todos os outros narradores. Todas as outras histórias. Então, eu comecei a diversificar minha estante.

Passei a procurar narradores menos ortodoxos em sua simpatia. Os livros de narradores malucos. Brauntigan. Melville. Dodge. Cortazar. Eco. Moravia. E mais uma porção. Minha estante começou a ficar mais colorida de enredos, de sotaques estrangeiros. Dos nacionais também diversifiquei. Machado. José J. Veiga. Lins do Rego. Oswald. Mário. Rosa. E mais uma centena. Narradores que você até antipatiza, mas mesmo assim lê com ardor. Gente como Cèline, Proust, Auster, Fischer, Nassar, Fleming, Mann e Tolstoi. E descobri coisas magníficas. Tive revelações profanas e fantásticas. Dezenas delas. A vida é muito grande e o universo é muito vasto para a gente ter apenas uma ou duas revelações. O legal é ter dezenas.

Mas acho que ainda não tinha pensado na escrita como punição. Como tarefa a que alguém se entregue sem prazer, só puro suor do rosto. Como uma pena a se pagar, quebrar pedra com picareta. Para mim sempre foi libertação, no máximo um breve período de purgação para a redenção final, numa apoteose feliz. Mas sempre libertação. Sei que se algum dia isso se tornar pena, eu paro. Aí eu coloco uma placa no blog. “Gente, valeu, foi bom demais.” Mas por enquanto, não. Quero muito continuar.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Porrada vai comer lá fora



O Sandro era do meu tamanho. Era magro como eu. Também usava óculos.

A gente era quase da mesma força. O Sandro era meu colega de sala. E até a gente discutir, éramos bons amigos. O Sandro se sentava na carteira ao lado da minha.

Mas o Sandro havia me xingado. Eu havia xingado de volta. E não tinha mais retorno. Não sei como, a gente tinha chegado naquela situação. A gente tinha xingado a mãe. A gente ia ter que brigar. E era chata aquilo, o Sandro era um cara legal. Eu nem queria brigar mesmo, mas era inevitável.

Eu tomava muito cuidado para não xingar a mãe de ninguém. Meu irmão, dois anos mais velho e muito mais experiente em histórias de porrada, já havia me prevenido.

_Não mete a mãe no meio. Se isso acontecer é briga na certa. Xinga a tia. Diz assim: Sobrinho de uma vaca! Já ouviu falar de alguém brigar por isso? Pois então. Ninguém vai se sentir obrigado a sair na porrada se xingar a tia. Agora, mãe, não. O cara briga até se for órfão – ele disse, várias vezes. Mesmo assim, vacilei.

Meu irmão é muito bom com as palavras até hoje. E no futebol também. Meu irmão já foi craque. Se não tivessem acertado o joelho dele aos catorze anos, tenho certeza de que teria chegado à Seleção.

O joelho dele inchava muito. E ele começou a ter de fazer punções. Depois o joelho começou a inchar à tôa, por qualquer coisa. Ele teve que fazer muitas e muitas punções. Devia doer uma eternidade. Mas eu nunca vi meu irmão chorar. Levou quarenta e dois pontos e mais de oito meses no Sarah Kubitscheck para se recuperar.

Na época dessa briga, meu irmão não podia me ajudar. Tinham dito que o problema no joelho era grave. Que ele poderia até perder a perna. E ele teria que fazer uma cirurgia.

Então eu estava sozinho, no dia da briga.

Esqueça tudo o que você já ouviu falar sobre brigar na rua, na saída da escola. Não tem o menor glamour. Ainda mais quando você apanha. E eu apanhei um bocado. Acertei umas poucas pancadas. Mas não abaixei a cabeça. O Sandro também não. Tiveram de vir apartar, pois aquilo já estava ficando chato de assistir. Eu fui para um lado. O Sandro foi para o outro lado.

Cheguei em casa e a minha mãe estava feliz ao telefone, eufórica, com o sucesso da cirurgia no joelho do meu irmão. Ela nem reparou no meu nariz, no corte no lábio. Eu passei depressa por ela e fui me lavar.

No dia seguinte, eu vou para o meu lugar. O Sandro passa direto, vai sentar lá atrás. E no outro dia também. E no outro. E no outro. Nunca mais o Sandro se sentou ao meu lado. Nunca mais fomos amigos. Acho que ele também achou que havia perdido a briga. No fim, se pensar bem, perdemos os dois.

Um dia, na saída da escola, uma mulher linda veio falar comigo.

_Por que vocês brigaram? – ela perguntou.

Não tive coragem de responder. Era a mãe do Sandro. A mulher mais bonita que já vi.

No outro semestre, não vi mais o Sandro. Acho que ele mudou de escola.

Anos depois, abro o jornal e vejo um cara sorrindo, com uniforme de corrida, levantando um troféu. Era o Sandro. Xinguei ele de novo, bem devagar.

domingo, 11 de maio de 2008

O melhor de minha mãe



Minha mãe é uma mulher bonita. Nunca foi miss, de vencer concurso, mas sempre foi bonita. Tem o sorriso bonito, os dentes alinhados e brancos. Meu pai conta que os dois se apaixonaram quando trabalhavam no comércio. Meu pai trabalhava numa farmácia. Minha mãe, numa loja de tecidos. As lojas ficavam de frente uma para a outra. Uma rua estreita os separava. Os dois ficavam atrás dos respectivos balcões. Meu pai com uma farmacopéia de fundo.E minha mãe com todos os panos, de todas as cores, às suas costas. Fico imaginando meu pai a observar, ansioso e apaixonado, a vendedora da loja da frente.

Minha mãe é uma mulher forte. Tem fibra. Ela se firma na fortaleza da sua fé. Tem calos nos joelhos, de rezar todas as noites, os braços em cruz. Os dedos separam as contas do terço. Tem orgulho da sua crença em Deus, que nos quer todos santos. E trata todo mundo com franqueza. Tem uma inclinação tão forte a pensar que o ser humano é bom, por natureza, que às vezes parece ingênua. Do que não sabe, guarda silêncio. E se fala do que não conhece, confessa ignorância, com humildade. Foi minha mãe que me ensinou a não ter vergonha de perguntar. A agradecer quando alguém me ensina uma coisa nova. Embora eu ainda precise aprender sempre mais sobre gratidão.

Minha mãe me ensinou a chamar os mais velhos de Senhor e Senhora. Foi com ela que eu percebi que o respeito começa na ponta da lingua, nasce junto com a palavra.

Minha mãe trabalha sempre. Nunca vi minha mãe ociosa, na preguiça. Está sempre fazendo alguma coisa. É cozinheira de mão-cheia. Também é jardineira. Costureira. Bordadeira. Pintora. Desenhista. Doceira. E aprende rápido a fazer qualquer coisa. Quando começou a ficar complicado andar de ônibus nessa cidade, ela aprendeu a dirigir. Tinha a minha idade de hoje quando começou a auto-escola. Aprendeu a costurar e a manobrar máquinas complicadas. Overlock. Vestiu todos nós, com suas habilidades. Fez até vestido de noiva. Quando vou visitá-la, minha mãe está sempre com alguma coisa no colo. Um tricô. Um crochê. De repente se levanta e vai conferir uma panela no fogo.

Minha mãe é uma guerreira. Ela lutou contra um câncer e perdeu um seio nessa luta. Mas venceu a guerra. Faz força para não deixar que a vida que eu levo não me afaste mais, não contribua para que nos afastemos uns dos outros. Mantém controle rigoroso das datas importantes, dos aniversários que não posso esquecer, da lembrança que não posso deixar de lembrar. Ela é comandante dos meus pedidos de desculpas. É juíza dos meus conhecimentos. E me faz ligar para dizer um alô, fazer um convite e garantir a presença de alguém que eu não posso deixar de lado. Minha mãe é avalista dos meus pedidos de ajuda. Fiadora das minhas dívidas de gratidão. Muitas vezes, é ela quem agradece por mim. Ela sempre me defende das minhas mesquinharias.

Minha mãe tem o choro mais triste do mundo. E quisera não tê-la feito chorar. Mas o que está feito, está feito. Também veio dela não deixar ninguém me fazer carregar todas as culpas e bandeiras que querem me fazer carregar. Herdei ainda uma certa intolerância com a falsidade.

Minha mãe sempre foi mestra em me consolar. Mas não é super. Nunca quis ser. Recentemente, caiu e quebrou o pulso. Ficou com o braço na tipóia, algumas semanas. Mas agora já está bem, cheia de coisas no colo para terminar. Cheia de panelas para cuidar.

Mas o melhor da minha mãe é a sua coragem. Ela enfrenta os desafios com um sorriso na boca. Ela não hesita em arregaçar as mangas. E num instante está pronta para começar um novo projeto de socorro. Ele é muito boa em ajudar as pessoas. Ela é gente fina, minha mãe. Todo mundo que a conhece vira fã. E quando eu tenho uma dúvida, sobre uma coisa importante, vou até a minha mãe e peço conselho:

_Mãe, o que a Senhora acha?

E ela sorri com seus dentes bonitos. Lá no fundo dos olhos escuros brilha a resposta de uma aprovação. E se ela fecha os olhos eu sei que é não, antes dela responder. Minha mãe tem respostas modestas e sábias.

O mundo está cheio de mãe tristinha, que fica no cantinho, não incomoda ninguém. Mas a minha mãe não é assim não. Está mais para mulher valente, corajosa, de risada farta e gostosa. Sou fã da minha mãe.

sábado, 10 de maio de 2008

Um passeio vip exclusivo



Ontem eu percebi que as frutas haviam acabado. Então resolvi sair para ir à frutaria. As crianças estavam em casa. Elas já haviam feito natação e mais duas horas de brincadeiras no parquinho. Chamei os dois para ir comigo. O mais velho, de cinco anos, disse que queria mesmo era ver TV. Ao ouvir isso, a mais nova, de três anos, não conseguiu esconder um sorriso. Os olhos brilhavam quando colocou a sandália cor-de-rosa cheia de furinhos. Era a chance de um passeio exclusivo até o comércio. A Rose, a concierge-cozinheira-lavadeira-passadeira-governanta daqui de casa, ficaria com o primogênito.

Fomos a pé. Ela segurou a minha mão com orgulho de estar ao meu lado. Eu também me sinto orgulhoso da minha filha. Mas basta sair de casa e a minha paranóia começa. Na rua, sou meio exagerado em cuidados, que nem o pai do Nemo, aquele peixe-palhaço. Já percebi que falo muito “não faça isso”, “não pisa aí”, “não isso”, “não aquilo”.

Os passos da menina são pequenos e ela olha muito para o chão. Quando não olha, tropeça. Eu fico preocupado. Eu sou míope. Uso óculos desde os cinco anos. Será que ela é míope? Talvez seja esse croc. Aí chegamos na calçada e ela solta a mão. Começa a correr. Não tem nada de errado com seus passos. Ainda bem que não falei nada. Esse é um passeio vip exclusivo, eu digo, para mim mesmo.

E aí ela começa a olhar para o chão novamente. Mas está tudo bem. Está inventando histórias, falando sozinha. Está no mundo da lua, ao meu lado. Tem hora que o universo fora da sua cabeça é só um lugar cheio de acessórios para ajudar a fantasia. Ela brinca o tempo todo. E canta, desenvolta. Já passa um pouco das seis e encontramos uma porção de cachorros e donas de cachorro no caminho. Gozado. Não vejo donos de cachorros. Os homens que passam pela calçada fazem jogging. Parecem procurar um fôlego, uma centelha de poder mais. Alguns parecem encontrar. Outros parecem ficar à beira da morte súbita.

Minha filha quer colocar todos os cachorrinhos no seu conto-de-fadas. Faz carinho, passa a mão. Eu penso em anti-germes, pulgas, mata-piolhos. Percebo que estou impaciente. Mas é um passeio vip exclusivo com a minha princesa. Não posso deixar ela na mão. Contenho a minha vontade de contenção. Os cachorrinhos parecem perceber isso, porque os animais começaram a ficar abusados. Um mais afoito acerta uma grande lambida no rosto da minha princesa. Ela dá risada. Depois recua e pede para que eu limpe. É lógico que eu não tenho um lenço no bolso. Eu me agacho e ela esfrega o rosto na minha camiseta mesmo.

_Olha, pai, um Flóide! Olha, pai, olha – ela grita, tomando nome por raça. É um schnáuzer igual ao que um casal de amigos possui. “Com apenas três anos e já fazendo anáforas e sinédoques” – eu penso, para contar vantagem. Ela nasceu no mesmo dia, apenas dez minutos depois que um primo. Eu e meu irmão disputamos para ver quem conta mais vantagem sobre os filhotes, que fazem aniversários juntos. Direi que a minha filha é muito boa com figuras de linguagem. Tem amplo domínio de sinédoques e anáforas. Quero ver o filho dele ganhar dessa.

No caminho, passamos pela quadra de esportes, repleta de babás e outras crianças. Minha filha quer iniciar um circuito de ginástica em todos os equipamentos. Eu acompanho. A minha chegada parece ter lembrado a todas as babás que já não é hora de ficar ali embaixo, na fofoca e paquera, com as crianças no sereno. Todas fogem em disparada. São 18 horas e vinte minutos. Minha filha termina o circuito, rápida. Fez duas abdominais sem a minha ajuda. Mais uma para contar vantagem. “Minha filha é recordista de abdominais, na faixa etária dela, lá no parquinho!”.

Depois fomos à frutaria, que é de um japonês. Aqui nessa cidade tem muita frutaria de japonês. São ótimas. E ela escolhe bananas-maçãs e mexiricas. E depois, na volta, ela quis sentar no banco de pedra, perto de onde ficam os equipamentos de ginástica. E quis comer uma mexirica. Já era noite. Mas eu não disse “não. E enquanto a gente comia a mexirica, ela cantou a música do Alecrim Dourado só para mim. “Essa é imbatível”, eu direi para o meu irmão. E é mesmo.


Preciso fazer mais desses passeios sem dizer “não”. Vips exclusivos.


Alecrim, Alecrim dourado
Que nasceu no campo
Sem ser semeado
Alecrim, Alecrim dourado
Que nasceu no campo
Sem ser semeado

Foi meu amor
Que me disse assim
Que a flor do campo é o alecrim
Foi meu amor
Que me disse assim
Que a flor do campo é o alecrim

Alecrim, Alecrim dourado
Que nasceu no campo
Sem ser semeado
Alecrim, Alecrim dourado
Que nasceu no campo
Sem ser semeado

sexta-feira, 9 de maio de 2008

A fantástica máquina de bobagens do Careca



Um dia, algumas pessoas vão me perguntar como é que eu conseguia escrever essas bobagens. Eu inventarei uma mentira. Direi que é difícil. E ao mesmo tempo vou pensar assim: “É nada, escrever bobagem é mais fácil que soltar pipa”. Direi que é preciso um esforço hercúleo para juntar uma porção de polissílabos e depois torcer para aquela massa de palavras fazer algum sentido e, com um pouco de sorte, ser engraçado. “Mentira da grossa, hein, xará!” - pensarei. Direi que eu passava horas em profunda meditação para descobrir uma bobagem nova para escrever. “Não abusa que um raio cai na sua cabeça, hein, malandro!”. Será uma maneira tosca de valorizar essas mal traçadas.
Só vocês, da minha Kombi de leitores, saberão a verdade. Como eu me comprometi a só dizer la verité, nada mais que la verité nesse blog, tenho de confessar que tenho uma fantástica máquina de ditar bobagens. Quer dizer, às vezes ela é mais uma máquina de criticar bobagens do que de ditar bobagens.
Comprei essa máquina numa feirinha hippie aqui perto de casa. A moça que me vendeu falou que ela estava com defeito, que aquilo era do marido dela, que nem poderia vender. Era uma moça pequena, cheia de tatuagens e piercings. Tinha mais argolas de metal numa só narina do que o símbolo das olimpíadas. E mais buracos na orelha do que um dedal. Era tanto anzol que ela poderia abastecer um pesque-pague só com o que tinha no rosto. Aliás, se ela enfiasse o rosto num aquário pegava pelo menos uns cinco peixes no arrastão.
_Tantos piercings no nariz eu nunca tinha visto – eu falei, só para ser simpático.
_São catorze – ela comentou, orgulhosa.
_Caramba, deve ser um horror quando você espirra, não é não?
_Na verdade, nem era para essa máquina estar aqui, misturada com as outras engenhocas – ela disse, mudando de assunto. Ela perguntou se eu não queria levar um anel de caveira no lugar daquela maquininha. Ou um duende, ou um sapo, feito de durepóxi. Uma marica, em formato de dragão? As pedras dos olhos do dragão eram vermelhas e brilhavam um bocado.
_Quanto é? – eu perguntei, pronto para barganhar o preço. Em feira hippie eu sempre ofereço metade do preço estipulado e acabo pagando três quartos do valor inicial. Ou uma vez e meia. Na maior parte das vezes é uma vez e meia. Tá bom. Sou um péssimo negociante. Geralmente pago o dobro do que a coisa custa. Mas só percebo isso depois de pagar.
_O dragão? O sapo? Ele é muito doido, esse sapo, ó – insistiu a moça. Acho que ela realmente acreditava que aquilo era artesanato.
_Não, essa engenhoca de puxar corda – eu disse, tentando fazer a coisa funcionar. Eu puxei a corda até o negócio estalar.
_Isso aí tá quebrado, moço. E não está à venda – ela disse, meio com raiva. Mas eu não poderia desistir daquele troço. Era um treco besta, desengonçado.Eu quase podia ouvir as primeiras bobagens sendo sussurradas.
_Moça, dou cinco reaus nesse tropeço – falei, sacudindo aquele troço como se fosse um barman.
_Ô Careca, isso vale, no mí-ni-mo, 50 reais – ela resmungou.
“Olha só! Basta não ter cabelo que até a Moby Dick anoréxica da feira hippie quer tirar vantagem” – eu pensei. Mas decidi me manter fiel ao plano de barganha.
_Pago quinze reaus nesse barato e quero o anel de caveira de brinde - eu disse, puxando a corda mais um pouco. “Rapaz, essa mulher tem mais buraco de agulha do que bola de beisebol”.
_Se tu quebrar a cordinha vai pagar 50 reais – ela rosnou.
Foi só falar. Tléc. Morri em 50 reais e ainda paguei mais cinco pelo anel de caveira. Caramba! Todo mundo quer ficar milionário às minhas custas.
O marido da moça, um hippie do tamanho de um paquiderme dos grandes, chegou quando eu estava numa outra banquinha, falando com uma hippie menos fisgada, uns dez metros de distância. Sou ruim à beça para fazer leitura labial, mas percebi quando a hippie porta-anzol apontou o indicador cheio de anéis de caveira na minha direção. Eu só tinha três opções: 1- usar o meu extraordinário poder de persuasão; 2 – ficar parado e macio feito um bife; 3- correr feito louco. Decidi correr feito um louco alucinado. Em tudo na vida a gente tem que dar upgrade. Até na saída pela direita.
Foi assim, então, que eu consegui uma engenhoca de ditar bobagens para mim. Eu só preciso puxar a cordinha, que eu remendei naquele dia mesmo, e ouvir a minha máquina. Eu escrevo um pouco e puxo a cordinha. Quanto mais eu puxo, mais bobagens eu escuto. Aparentemente, esse saco de risadas não tem fundos.

Frase do dia