sexta-feira, 30 de maio de 2008

O Supremo demorou três anos para dar uma dentro



Tenho vagas noções de direito. Vagas amplas, daquelas de caber caminhão. E bem remotas. Meus conhecimentos científicos podem ser taxados de “ridículos”. E, ainda por cima, acompanhei muito por alto a discussão sobre as pesquisas com células-tronco de embriões no Supremo Tribunal Federal. Tava chato pra dedéu. Sei que foi o procurador-mor que pediu para o STF arbitrar a coisa. O procurador-mor tem a convicção de que a pesquisa fere o direito à vida. Sei que o argumento dele, que não li, está de acordo com o que é defendido pela CNBB, pelo Papa e a Igreja Católica. E os ministros do Supremo ficaram num rame-rame danado para encontrar uma definição comum de onde começa a vida. Se embrião tem direito. Se isso, se aquilo. Pediram vistas, fecharam vistas, limparam óculos e escreveram um bocado.

Eu não sei se a vida começa mesmo com a existência de cérebro ou com o fio de um ligamento nervoso. Mas eu sei que se for necessário optar entre a vida da mãe e a vida do feto, todo mundo opta pela vida da mãe. Até na República do Chulé do Judas, eles permitem o aborto na situação de gravidez de risco. Isso é escolher entre duas vidas? É, sim. Você pode enrolar o que for, mas é. É uma preferência. Ó, feto, ó, mãe. Vamos ter que optar. Os médicos disfarçam, fazem uma rodinha, dão as mãos, gritam hip,hip, hurra. E depois dizem: Optamos pela mãe. Então, esse é um limite para o princípio do direito à vida. Também é um limite para o direito à proteção do Estado, porque a lei fica do lado da mãe nesse momento. Ela tem direito ao aborto. Não é o feto que tem direito à vida. Assim, o princípio tem o limite do bom senso. E se for preciso escolher, vamos escolher o que está vivo, pensante e operante, na maioria das situações. Mas isso não é lei, não precisa estar escrito, vamos usar o bom senso. Uma situação qualquer supercomplicada pode acontecer e essa regra pode furar.

Lembra do herói dos filmes de guerra? “Estou ferido, vou ficar e dar cobertura para vocês fugirem”. Escolhemos o que é, e não o vir a ser. Nós também não gostamos de jogar dados com o universo. Mas quando jogamos, escolhemos o que tem mais chances de sobreviver. E assim também acontece na vida social, no mundo acadêmico, no mundo profissional. Em geral, no limite do bom senso, a academia, o empregador, escolhe o que tem mais título, o que tem mais expertise, cancha e capacidade, de preferência, certificada.

Então, dessa maneira, eu vou no avesso do princípio. Entre eu, que estou vivo, e os embriões, eu prefiro eu mesmo. Afinal, eu estou aqui, sarado, e os embriões estão ali, congeladinhos, sem pai nem mãe, fertilizados in vitro. Entre fazer pesquisas com as células tronco deles e com as minhas, eu prefiro que façam com as deles. Não me levem a mal, embriões. Mas nessas coisas a gente tem que falar as coisas como elas são. Eu mesmo, não passo de um careca bípede. E, com todo o respeito, vocês são, no máximo, sorvetinho de gente. Picolés de humanóides. Com todo o respeito.

Eu gosto da possibilidade de pensar por mim mesmo. De tentar raciocinar por conta própria. E de preferência com historinhas, que é para eu mesmo me entender melhor. Por isso, com as desculpas já apresentadas e mais data vênia, acho que os ministros demoraram pacas, à toa. A questão nem deveria ter sido colocada. O Presidente do Supremo deveria ter falado assim: “Pô, procurador-mor, já tá cheio de limite ético aí, regulamento, biossegurança, qualé? Do futuro ninguém sabe, não proíbe pesquisa não. Pensa bem, a pesquisa com raio x feriu o direito à vida da Madame Curie, mas ela não parou por causa disso”.

Outro ministro, mais íntimo diria assim: “Pô, cara, demorou 500 anos para o sujeito que disse que a Terra rodava em torno do sol ser perdoado. E se você estiver impedindo a cura para o câncer? E se você estiver impedindo a cura pra tudo? Quem vai perdoar você? Aliás, se a ciência fosse depender da permissão do Papa, médicos ainda estariam furtando cadáveres dos cemitérios. Sacou?”

Isso é falacioso, eu sei, mas remeter a coisa ao Supremo também foi uma artimanha falaciosa. Se o princípio da defesa da vida fosse levantado pelo Careca, o Supremo teria feito “pfffttt”, reclamado de umas vírgulas mal colocadas e jogado os argumentos no lixo. “Vai estudar, ô mané Careca”, diria aquele ministro mala, com autoridade, esqueci o nome dele. Mas como foi o procurador-mor, o Supremo gastou três anos para examinar a questão e dois dias de discursos boi dorminhoco para martelar o que já estava martelado na Lei 11.105. A Lei de Biossegurança é constitucional e a ADIN do procurador-mor caiu. Minha avó, já falecida, diria com certeza : “Xô, xuá, cada macaco no seu galho.”

Aí eu tento uma parábola. Se Salomão, o mais sábio dos reis judeus, estivesse vivo, aposto que ele faria assim: “Ó, vocês cientistas católicos apostólicos fervorosos, fiquem desse lado. Vocês não querem pesquisar com embriões, não pesquisem. Mas também não mandem nos outros, tá? E vocês, seus filhos e os filhos ainda não nascidos dos seus filhos não poderão receber nenhum benefício dessas pesquisas, tá bom? E o responsável por essa decisão, no Brasil, foi o Procurador Geral da República, Fulano de Tal, homem de muita fé, tá bom? Se ele estiver errado, a alma dele só sairá do inferno daqui a 500 anos, tá? Vocês vão lá e apertem a campainha da casa dele até cansar, tá bom? Assinem aqui, carimbo, pronto”.

E aí o Salomão pegaria fôlego e continuaria: “Ò, vocês cientistas que não têm problemas com o que diz o Papa, o rabino, o guru, o pai-de-santo, etc, fiquem desse outro lado. Tá bom? Tá bom. Os resultados das pesquisas servirão apenas a vocês hindus, judeus, evangélicos, budistas, agnósticos,... céticos, pagãos e porra-loucas. Assinem aqui, carimbo, pronto. Agora, quem quer pesquisar?” Exagero meu? Lembra que o Salomão ameaçou partir uma criança no meio, no fio da espada? Isso sim é ser radical.

Pesquisas com células tronco são realizadas há anos nos Estados Unidos, na Europa e em tudo quanto é lugar onde a crença religiosa não aboliu o bom senso. Há bancos para coleta, venda e doação de esperma e óvulos espalhadas pelo mundo afora. Fertilização in vitro, congelamento de embrião e pesquisa é uma coisa corriqueira, como deve ser, e é tratada dentro dos limites da ética há anos, numa boa. Acontecem coisas horrorosas? Sim, com certeza devem acontecer. Acontecem coisas que ferem a ética? Sim. Acontecem falhas na fiscalização e controle? Sim, como acontece com qualquer atividade humana. Os infratores são processados e punidos, acredito. Tenho fé no sistema. Pouca, mas tenho.

Tenho também alguns postulados com limites claros e bem definidos. Liberdade é bom. Livre arbítrio é bom. Não arbítrio é mau, argumento de autoridade é mau. Privação da liberdade é mau, quase sempre é péssimo. (Mas é preciso ter cadeia, pô!) Eu desconfio de regulação, sempre. Eu desconfio de quem quer dizer “não” por mim. Sempre. Acho que o limite de qualquer princípio é o bom senso, está na capacidade de enxergar o mal que se está provocando com uma negativa ou uma afirmativa. E de conviver com essa escolha, com essa preferência.

Acho que lei não impede o mal que existe no coração dos homens e das mulheres. Mas acho também que uma lei pode, muito facilmente, impedir o nascimento do germe do bem, castrar a boa vontade, reduzir a liberdade. Quanto menos lei e mais bom senso, melhor. E se a lei agir contra o bom senso, contra o livre arbítrio, a lei é ruim.
Acho que o STF demorou três anos para dar uma dentro. E talvez agora, como já foi dito, inaugure uma era propositiva, ao invés de manter o histórico de sacramentar o "não pode".

Achou isso uma droga? É, tá bem fraco. Mas não gastei três anos matutando esse assunto.

6 comentários:

Anônimo disse...

Bom senso pra não causar danos cruéis a toda e qualquer espécie. É, o bom senso evitaria muita crueldade. Esperarei até o dia em que todo homem nascerá com seu gene do bom senso. Polêmico quando "perdemos" alguém que essas células poderiam salvar. Fracasso quando somos nós mesmos os pacientes que esperamos por elas. A gente caminha consertando a máquina, não é mesmo? "Sim, espero por elas, essas tais "tronco".Mas continuarei vivendo, e talvez o meu filho, "puxando" por mim, não terá as restrições que tenho com a ajuda delas". Muito obrigada, Careca. Abração

Anônimo disse...

Assim caminha a humanidade, trocando alguns parafusos, apertando outros, sem precisar trocar toda a máquina, né. É assim ou sonhar com a possibilidade de encontrar uma uaia, naquela loja lá de gente, genes perfeitos, 0 km, vida útil satisfatória, funcionando perfeitamente, sem complicações, sem restrições e que faça mergulho em oceano (Deus me livre!). abração

Careca disse...

Uai, escutei hoje um comentário legal do Jabor sobre o tema. Confira. Um abração,

Anônimo disse...

nos minutos em que um dos meus órgãos leu comigo seu texto e agora mesmo ouviu o Jabor, ele ficou muito entusiasmado e feliz.

Mwho disse...

Careca,
Dizem que o Estado Brasileiro é laico e democrático. Se assim é, a pluralidade moral deveria ser respeitada. Entretanto, entre os que julgam e decidem, existem religiosos fervorosos que, na minha opinião, nem deveriam estar lá, pois são parciais; ou deveriam se declarar impedidos... Não sei se lobby de igreja é menos nocivo do que de fábrica de refrigerante...
Abraço,

Careca disse...

Mwho, se declarar impedido é uma forma de usar o bom senso. Abraço,

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