terça-feira, 13 de maio de 2008

Escrever como punição



Demorei muito a reparar que eu só gostava de livros com narrador simpático. Não tinha nada a ver com gênero. Podia ser história de terror, mistério, policial, romance, conto, poesia, até jogral. O importante era o sujeito que bancava o narrador parecer simpático. Era um tipo de narrador meio padrão. Tipo voz de comandante de avião. Você troca de avião e lá vem o comandante com a mesma entonação de voz. Está sempre de bom-humor, meio irônico, brincalhão. Todos os grandalhões do cinema se espelharam nesse sujeito, nesse tipo bambambam com modéstia e ironia.A voz é diferente, mas todos falam de um jeito parecido. Bancam os super-heróis da cabine do ônibus voador.

O Tom Wolfe, num dos livros geniais dele, diz que todos os pilotos de avião são imitadores de Charles “Chuck” Elwood Yeager. Chuck quebrou todas as barreiras da aviação, inclusive a do som, e ainda fez umas cambalhotas de lambuja. O Chuck foi o maior piloto de avião de todos os tempos.
_Chuck, sua asa direita pegou fogo!! - alguém da base ligava e falava pro Chuck.
_Roger, informe a situação da asa esquerda, Roger!
_Chuck! A asa esquerda também está em chamas!!!
_Roger, acho que vou precisar de um extintor por aqui, Roger.
_Chuck! Você vai ejetar?!
_Roger, alguém poderia fazer o favor de acalmar a mocinha do rádio, Roger.

Então o meu narrador simpático era esse cara, que transmitia segurança, ironia e conforto com as suas cordas vocais tipográficas. Podia ser até um narrador meio metido a indiferente. Sabe aquele narrador fingido, que parece não ligar para as falas da personagem? Tipo Raymond Chandler, o maior de todos os escritores durões. Ele, de repente, solta uma metáfora, vem com uma frase torta que se encaixa feito faca no peito da gente. Pois então. Eu achava que só gostava de livros com narrador assim, durão, mas com golpes certeiros no meu coração de manteiga. Na terceira pessoa. Fulano fez isso. Sicrano falou aquilo. Mas com frases líricas. Com poesia logo depois da perseguição de automóveis e da porrada comer solta. E depois que eu reparei isso, eu pensei que estava perdendo todos os outros narradores. Todas as outras histórias. Então, eu comecei a diversificar minha estante.

Passei a procurar narradores menos ortodoxos em sua simpatia. Os livros de narradores malucos. Brauntigan. Melville. Dodge. Cortazar. Eco. Moravia. E mais uma porção. Minha estante começou a ficar mais colorida de enredos, de sotaques estrangeiros. Dos nacionais também diversifiquei. Machado. José J. Veiga. Lins do Rego. Oswald. Mário. Rosa. E mais uma centena. Narradores que você até antipatiza, mas mesmo assim lê com ardor. Gente como Cèline, Proust, Auster, Fischer, Nassar, Fleming, Mann e Tolstoi. E descobri coisas magníficas. Tive revelações profanas e fantásticas. Dezenas delas. A vida é muito grande e o universo é muito vasto para a gente ter apenas uma ou duas revelações. O legal é ter dezenas.

Mas acho que ainda não tinha pensado na escrita como punição. Como tarefa a que alguém se entregue sem prazer, só puro suor do rosto. Como uma pena a se pagar, quebrar pedra com picareta. Para mim sempre foi libertação, no máximo um breve período de purgação para a redenção final, numa apoteose feliz. Mas sempre libertação. Sei que se algum dia isso se tornar pena, eu paro. Aí eu coloco uma placa no blog. “Gente, valeu, foi bom demais.” Mas por enquanto, não. Quero muito continuar.

10 comentários:

Anônimo disse...

você é um narrador super simpático, careca.

Careca disse...

Franka, você também é simpática até tocando prato e fazendo positivo, positivo, prato...

Paulo Bono disse...

entendo o que vc quer dizer.
mas acho que não ligo pro narrador.
me empolga ou me chateia o personagem principal. se for invencível, intocável e infalível, não gosto.

abraço, Careca

Careca disse...

Paulo, abraço.

Mwho disse...

Careca,
Já li muita coisa, mas me esqueci de quase tudo... Será que é porque não tenho coragem de riscar os livros... Bem, se você escreve para pagar alguma pena, não ligo. Gosto do que você escreve.
Abraço,

Careca disse...

Mwho, também esqueço quase tudo. Aí tenho que reler. Releio à beça.

Anônimo disse...

careca, no dia do teu aniversário eu vou de dar um prato, já que você gostou tanto dessa história.
beijo e positivo, prato, positivo, prato, positivo...

Careca disse...

Franka, positivo, positivo, prato.

Anônimo disse...

Este é o verdadeiro blog da Alopécia Androgênica

Careca disse...

RR, sim, este é o verdadeiro blog do Careca.

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