domingo, 4 de maio de 2008

Um doido ruim

Existem poucas pessoas que conseguem unanimidade. O Jarbalino era considerado um mala por 90 por cento dos estudantes. Dez por cento não opinavam ou tinham medo demais dele para falar alguma coisa. O Jarbalino era conhecido de todo mundo. Tinha gente que desviava. Tinha gente que encarava. Tinha gente que empurrava. Mas depois se arrependia. Houve um tempo em que eu só prendia a respiração. Ninguém ficava indiferente ao Jarbalino. No mínimo, desviava o olho, mudava de calçada. O Jarba, como a gente chamava, era terrível. Estava sempre biritum, chapado e fedido. Eu não gostava do Jarba, para mim, ele era do mal.
Ele até que não perturbava muito no campus. Mas o desgraçado tinha uma memória fantástica para as pessoas que não eram agressivas com ele. Eu nunca fui. Minha agressividade é verbal. Se essa coisa existir, tenho uma espécie de princípio fraco de Síndrome de Tourette. Ou seja, sou estourado, grosso e seco. Mas não sou de esbravejar. Sou mais de resmungar. Se eu esbravejar, fico só nisso. O Jarba, não. Com o Jarba, agressividade era porrada pra valer, medida em pontos e injeções anti-rábicas.
Na minha época de universitário, todo mundo sabia de pelo menos uma história do Jarba. Ele tinha ameaçado um colega. Tinha comido caco de vidro. Tinha engolido sabão. Tinha quebrado uma janela. Furtado alguma coisa. Tinha corte de faca. Tinha sido preso. Tinha estuprado alguém. Tinha sido estuprado por alguém. Tinha AIDs. Tinha dado porrada em fulano. Tinha levado porrada de beltrano. Tinha sido jubilado, mas ninguém tirava ele do alojamento estudantil.
Eu sabia duas histórias do Jarba. Uma vez, uma turma da pesada cercou ele antes do bandejão. Deram banho no Jarba ali mesmo, no espelho dágua, com escovas de limpeza. Ele berrou, babou, lutou, mas acabou sendo lavado. Era a turma do pólo aquático. Os caras não eram muito gentis. Acho que quebraram uns dentes do Jarba daquela vez. Eu vi de longe. Esperava uma namorada para o almoço. E eu vi que o Jarba me viu. E o pior. Eu ouvi quando ele gritou para todo mundo: vocês vão pagar! Vocês vão pagar! E quando a namorada chegou eu disse que ela havia demorado um bocado. Eu estava morrendo de fome.
Numa outra vez, eu estava no boteco que todo mundo da universidade freqüentava. Se eu fizer as contas direitinho, acho que perdi mais tempo naquele boteco do que nas salas de aula. Pois eu estava sentado, tomando uma cerveja, sozinho. Era cedo, ainda. A noite mal começava. Eu havia marcado um encontro com uma namorada naquela mesa, para dali a uns dez minutos. Estava de guarda baixa, bem longe do campus. Olhei para o lado e gelei. Era o Jarba. O Jarba era mau. Sacou que eu estava sozinho. Veio andando na minha direção. Confesso que pensei em levantar e ir para o balcão. Mas resolvi encarar.
_E aí, brother? Paga uma cerva? – o Jarba tinha os dentes mais feios que já vi.
_Nem vai dar, Jarba. Estou com a grana contada.
_Então me arruma um copo?
_Sem problema – e servi a cerveja no copo descartável que o Jarba esticou.
Quando o Jarba estava a dois passos de distância vi um dos garçons do boteco chegar por trás. O copo de cerveja voou longe. Com poucos golpes, ele deixou o Jarbalino no chão, se contorcendo, em silêncio sufocado. Era o Moisés, o garçom mais velho e mais gentil do boteco.
_Ontem esse mala encheu o saco a noite inteira – ele explicou.
Troquei de mesa antes da namorada chegar. Eu não queria ver o Jarba se contorcer e babar no gramado. A namorada chegou e perguntou se eu tinha alguma novidade. Mas não tinha acontecido nada. E eu estava morrendo de fome.
Eu nunca soube qual era o curso do Jarbalino. Mas sabia que ele morava no dormitório dos estudantes, no centro olímpico. Soube que ele tinha morrido uma noite, naquele mesmo bar. Dizem que no meio de uma festa no campus, uns malucos subiram no telhado do dormitório do centro olímpico. Ficaram ensaiando passos de vôo, de imitação de pássaros. De repente, um maluco bateu asas da cobertura e se estatalou no chão. Foi o Jarba. A última coisa que fez foi estragar uma festa. Todo mundo já tinha ido embora quando a polícia chegou. Era ruim, o Jarba.

6 comentários:

Simone Gois :) CotidiAmo :} disse...

Caro cara Careca,

Acho seu blog show!
Seu texto é muito bacana
E sua vida bem agitada pelo visto,
ou melhor, acho que você é do tipo
que sabe curtir a vida, consegue extrair maravilhas de cenas que outros, nem aí. Parabéns
Sempre dou uma espiada, por aqui
abraços,
simone

Unknown disse...

Acho que foi a melhor coisa que ele fez.

Careca disse...

Simone,
muito obrigado, quem dera soubesse tudo isso.
Abraços,

Careca disse...

Cunhaclau,
talvez tenha sido mesmo.

Mwho disse...

Careca,
Acho que todo mundo conhece um Jarba... Não sei nem se eles são reais, mas o medo, esse sim, tenho certeza...
Abraço,

Careca disse...

Mwho,
como sempre, um comentário super perspicaz.
Abraço,

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