quinta-feira, 22 de maio de 2008

Lavaria seus pés com os cabelos



É raro acontecer uma briga dos dois. A diferença de idade é inferior a dois anos e eles adoram brincar juntos. Ele tem cinco anos. E ela o ama desmedidamente. Se ela quer água, sempre carregará dois copos. Um é para o irmão. Ela pede duas balas. A outra é para o irmão. Dois doces. O outro é para o irmão.

Ela não se importa de servi-lo como a um rei. Ela quer o seu acordo em tudo. E em tudo pede a sua opinião. “Não é, irmão?”. E isso, às vezes, o cansa.

Em seu amor por ele, tão grande e inocente, ela lavaria seus pés com os cabelos cacheados. Como fazem na bíblia.

Ele também faz suas gentilezas. Não com tanta humildade. Não com esse amor explícito em cada gesto. Com essa entrega total, como se fosse um pulo do despenhadeiro.

Mas como medir amor e humildade? Isso é mensurável?

Ele às vezes abdica do que acredita ser o seu direito de primogênito. Ele a deixa escolher o vídeo que irão ver. O game que irão jogar. Ele a deixa apertar os botões do elevador. A abrir a porta. A carregar a chave. Ele permite a ela, por alguns minutos, brincar de ser o filho mais velho. Ele abre mão desse lugar e dessa função importante. Da primogenitude. Do que ele considera ser só dele, seu direito puro e legítimo. Seu "direito" de ser o primeiro a falar. De vez em quando, ele concede a ela, magnânimo, o poder de mandar em tudo, de escolher primeiro o super-herói que vai ser. De decidir qual será o vídeo. É mais do que fez Esaú. Muito mais.

E, às vezes, eu acho que eu o entendo melhor. Mas talvez seja porque acho mais fácil me projetar na sua mente. Como entrar na cabeça dela? É difícil. Como pensam as meninas de três anos de idade? Na cabeça dele, eu me projeto. É um exercício de regressão. Eu volto um pouco na minha infância. Recordo nele os meninos que fui e me imaginei. Se houver coincidência com a imagem de hoje, eu acho que o entendi. Muitas vezes não entendi, mas acho que entendi. Ao menos tenho a impressão de entendimento. Ele tenta, muitas vezes, ganhar no grito, me dobrar com choros e momos. Mas com ele tenho mais certezas, sou mais inflexível, mais duro, porque acredito que isso lhe fará bem.

Com ela, não funciona assim. Acho que ela me compreende mais rápido e me surpreende. Ela tem uma inteligência alegre, que brilha nos olhos. Há regressão e projeção, mas não com a mesma intensidade, não com os mesmos efeitos. Com ela as minhas máscaras não servem direito. Com ela tende a ser mais um esforço emocional, com uma carga de razão. E ela me desconstrói mais rápida, desmonta as minhas estratégias, esperta. Ela foge mais depressa de mim. E sorri. E, de repente, canta uma música, me dá um abraço. Ela tem mais sucesso do que ele com choramingos e fingimentos. Num instante, ondas enormes crescem e arrebentam dentro do meu peito. Com ela faço mais concessões, cedo mais nas barganhas. E tenho mais medo de errar.

Então os dois brigaram feio na natação. Até a moça da recepção ficou preocupada. E durante alguns dias, o menino voltou a fugir da sala, na escola alternativa. Mas agora já não foge mais. E a menina quer que eu tome um copo d´água com ela, todos os dias, antes de entrar na sala. E a água do filtro de barro está sempre fresquinha. E quer saber? Eu acho tudo sensacional.

Eu olho para cima e digo “Caramba! Muito obrigado!”. Digo mesmo.

5 comentários:

Anônimo disse...

pais, com esses olhos tão zelosos, não tem preço! abraço

Mwho disse...

Careca,
Percebo que você é perdidamente apaixonado por seus filhos. Legal mesmo. Mas, não se esqueça de gostar de você na mesma proporção!
Abraço,

Careca disse...

Mwho, não esqueço. Gosto muito de mim também.

Anônimo disse...

Fofo.
Acho que esse blogue é pra conquistar mulher com esse discurso de homem sensível, né não?

Careca disse...

Anna V., é sim.

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