sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

A Arma Zeta 28 de fevereiro



Nenhum homem é uma ilha. Quem não tem conexões, não sobrevive. É correto, é justo. Mas aqui é diferente. Não há como vencer sem o compadrio. Quem não é da panela, se ferra. A civilidade só existe entre os camaradas. Eu precisava de alguém no Detran. E teria que ser uma pessoa que fosse uma pessoa estúpida o bastante para acreditar na história que ia inventar. E além disso, essa pessoa teria que me passar nome completo e endereço do proprietário do grande veículo preto. Essa pessoa era o meu primo Vinícius, que todo mundo chamava de Vini.

Eu disse a Vini que esse cara tinha me fechado e eu quase tinha caído de moto.

_ E o que você quer com ele? – disse Vini.

_Riscar o carrão, Vini. Vou usar uma chave-de-fenda pequena que eu tenho. Dá pra fazer um risco fino, mas bem profundo. Risquei tão fundo o capô do último babaca que me fechou que ele teve que trocar o tampo e as portas – eu disse.

Vini é um cara que entende as paixões primárias e os instintos selvagens dos seres humanos. Na verdade, ele é movido por todas elas. Quando entrou no Detran, Vini desenvolveu um método para transferir as multas de alguns infratores escolhidos para vizinhos e desafetos acumulados durante sua vida atribulada. Foram muitas multas. Os vizinhos foram estimulados a saber que ele trabalhava no Detran e que poderia fazer alguns favores em troca de uma módica compensação. Ele se tornou um quebra-galho discreto na vizinhança. Era um tipo boa praça. Todo mundo gostava do Vini. Eu também. O mais legal de tudo era que em casos assim, de pura vingança envolvendo um familiar, o Vini não cobrava nada.

_Se você quiser, eu te ajudo. Nunca risquei um carrão importado antes. Mas uma vez derramei ácido muriático no teto de uma Mercedez – ele disse, antes de soletrar o endereço e o nome do proprietário do carro.

_Mon-de-go - disse Vini.

Eu anotei tudo com cuidado. E descobri que o primeiro nome de Alencar era Rosalvo.
Quando cheguei à frente da mansão, por volta do meio-dia, parecia não haver ninguém em casa. Fiquei olhando através do portão, examinando o gigantesco jardim. Dava pra ver uma pontinha do lago desta cidade.

_Em que posso ajudá-lo? – disse Manoela, a menos de três metros do portão.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

A Arma Zeta 27 de fevereiro

Há virtude em se assumir erros e enganos. A percepção dos próprios desatinos é uma condição para superá-los. O arrependimento é o início da volta por cima, da recuperação da normalidade. Tudo isso pode acontecer, mas não é regra. Embusteiros de alto calibre muitas vezes não dão o braço a torcer e acabam seus dias curtindo praias fantásticas no Caribe, acompanhados de fêmeas pneumáticas de beleza estonteante, de parar o trânsito. Pessoas completamente sem noção podem ser eleitas para altos cargos públicos simplesmente porque são atraentes ou porque possuem uma aptidão natural para serem testas-de-ferro. Criminosos pegos com a mão na botija muitas vezes dizem que o mais importante de tudo é não confessar, não confessar, não confessar.

Essas coisas atravessavam a minha mente quando vi Alencar e a filha sentados à sombra, no parque desta cidade. Eu precisava de tempo para entender o quadro que começava a se formar, mas ao mesmo tempo não poderia correr o risco de perder a dupla e a arma Zeta de vista. Eu estava de boné, óculos escuros e camiseta tentando iniciar um programa de corridas. Os dois não me reconheceriam jamais, eu pensei. Por isso resolvi me sentar um pouco, numa mesa onde pudesse ficar de olho sem chamar a atenção. Eu acreditava que permanecendo discretamente atrás dos óculos escuros e observando com cuidado teria uma boa chance de estudá-los à distância e descobrir alguma coisa antes de abordá-los. E foi o que tentei fazer.

Mas antes que eu dissesse abracadabra a dupla se levantou e começou a se misturar com a multidão. Tive que sair correndo justo quando chegou a minha água-de-coco, é sempre difícil. Aqui iniciamos uma perseguição esquisita, os dois se afastando rapidamente e eu tentando acompanhá-los em meio a uma multidão de ciclistas, skatistas, patinadores, corredores e vendedores com seus carrinhos refrigerados. De repente, sumiram. E foi por pura sorte que os vi lá na frente, entrando num grande veículo preto. Consegui correr até conseguir ver todas as letras e números da placa. Agora eu só precisava de um amigo no Detran para descobrir um nome e um endereço relacionado ao veículo.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

A Arma Zeta 26 de Fevereiro

Não existem muitas certezas sobre o amor. Há quem diga que ele tem início, meio e fim. Mas existem os que juram que se existe fim, então não se trata do verdadeiro amor. E como saber onde o infinito se inicia, ou se está perto ou longe da metade? - eles perguntam. Segundo uma outra corrente, o amor seria infinito como os números que existem entre 1 e 2. Para esses poetas matemáticos, o amor é infinitesimal e de um certo limite não passa. Gosto dessa definição, mas sei que é melhor não falar disso ao pé do ouvido de ninguém.

Por outro lado, não existem muitas dúvidas quanto ao ódio. Em geral, a maioria das pessoas consegue estabelecer a origem do ódio que devotam a um indivíduo ou a um grupo deles. São pequenas coisas – dizem. É verdade. O mundo é formado de uma infinidade de pequenas coisas. Mesmo assim, não existe um ódio pela metade. Os ódios são inteiros, grandes ou pequenos, mas inteiros. Também não existem dúvidas quanto ao fim do ódio. Ele coincide com o fim da pessoa ou coisa odiada, é simples.

Seja como for, eu estava convencido de que amava Manoela. E até o dia em que ela desapareceu, eu acreditava que era recíproco. Talvez seja verdade que até a primeira decepção quase sempre acreditamos que o amor é via de mão dupla, que ele nos alimenta se o alimentarmos com a entrega absoluta do coração. Depois de um coração partido, senão antes, muitos acabam convencidos de que esta é uma trilha solitária no deserto e que só alguns sortudos doidos conseguirão escapar da solidão. Outros terminam seus dias convictos de que tudo isso é bobagem, é melhor procurar um outro hobby.

Quando reencontrei Manoela, eu queria ter falado de amor e do quanto eu sentira sua falta. Eu queria ter falado de quantas vezes toquei a campainha, das dezenas de tardes que bati à sua porta, das poesias que eu escrevera, dos pedidos e promessas que fiz para que ela voltasse. Mas alguma coisa me proibiu de falar nisso, porque antes de abrir a boca eu percebi que ela não me reconhecera. Ela apenas sorria. De algum modo, era o mesmo sorriso estúpido que vi durante meses no rosto de Brigite.

Fiquei congelado na calçada, a poucos metros de Manoela. Ela estava sentada à sombra de um guapuruvu, no parque desta cidade. À sua frente, um homem mais velho, alguém que parecia familiar. Eu me aproximei devagar, no meio de um pelotão de atletas de fim-de-semana do parque, estudando a fisionomia de Manoela, tentando descobrir um sinal de reconhecimento e ao mesmo tempo tentando me lembrar quem era a pessoa à sua frente. Quem estava conseguindo fazê-la sorrir?

_Alencar – eu disse para mim mesmo, assim que passei pela mesa dos dois.

Manoela não sorria para o pai, mas para o brilhante objeto sobre a mesa que encantava ambos. Era a arma Zeta.







terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

A Arma Zeta 25 de fevereiro


Eu esperava encontrar respostas para as perguntas que fiz durante meses para Manoela. Por quê Brigite havia visitado Roberto meses antes? Ela estava com a arma Zeta ou a tirou de mim? Por quê a família Mondego viera morar no mesmo apartamento que fora de Roberto? Por quê fomos atacados? Onde estava Alencar? Por quê Caleb havia atirado em Manoela? Como ele enlouquecera Brigite? Por quê haviam sumido sem me dizer o motivo? Eu tinha só uma certeza: a resposta de todas elas envolvia a arma Zeta de alguma maneira.

Mas ao invés de uma carta recheada de explicações, dentro havia apenas um outro pequeno envelope contendo uma chave. Não havia nada escrito, nem mesmo uma pequena palavra. E Manoela não havia mencionado nenhuma porta, cofre ou qualquer coisa que precisasse de chave. Não que eu me lembrasse. Era apenas uma chavinha, parecia de brinquedo, ou daquelas chaves de dar corda em brinquedos de mola. Ou talvez fosse de um diário.

Durante algumas semanas mantive os envelopes cuidadosamente encerrados numa gaveta, relembrando aquele dia de carnaval e as conversas posteriores com Manoela, já que Brigite nunca mais dissera uma palavra, apenas sorria. O problema é que as memórias também se desgastam e se esgotam, depois de algum tempo eu já não sabia dizer com certeza se algumas coisas haviam sido realmente ditas. Decidi anotar tudo o que vinha à mente, mas o mesmo processo de desgaste aconteceu. Eu começava a descobrir detalhes que talvez estivessem sendo colocados pela minha imaginação em minhas lembranças. Outras coisas que realmente aconteceram começaram a parecer inverossímeis, como o meu providencial desmaio no carnaval, ou todos aqueles disparos de Zeta na minha fantasia de padre.

Como conseqüência, comecei a duvidar de mim mesmo e das minhas próprias lembranças. Foi como alguns sonhos que se repetem muitas e muitas vezes. Por um período é possível acreditar que tudo realmente aconteceu. Mas por quanto tempo é possível se convencer de que um sonho é real? Além disso, a ilusão duradoura não é um sinal evidente de loucura? Eu não queria ser louco. Nem mesmo um louco eternamente feliz, como Brigite.

Um dia, alguns meses depois, joguei fora os envelopes, coloquei a chave num cordão e pendurei no pescoço, junto com uma figa pequena. Eu havia conseguido entrar numa universidade e tinha muito em que pensar. Na verdade, com tanta coisa acontecendo, não havia lugar para a arma Zeta na minha cabeça, embora gostasse da lembrança de Manoela.

Logo que sumiram, eu ansiava por encontrá-la na rua, ao atravessar uma rua, no meio da multidão no shopping, num ponto de ônibus ou no parque. Mas depois desejei o contrário, que jamais voltasse a ver qualquer das duas, ou Caleb, ou a arma Zeta. Então, depois de algum tempo, guardei a chave numa gaveta, fiquei só com a figa no pescoço. Nesses dias, eu não me lembrava de nada.

Talvez seja sempre assim. Já ouvi muitas histórias de pessoas que passaram anos sem se encontrar. Irmãos, filhos, pais, esposas passam anos procurando uns aos outros sem sucesso e um dia descobrem que são praticamente vizinhos. Quando não desejamos mais surpresas, elas acontecem. Na véspera do carnaval do ano seguinte, eu reencontrei Manoela.

domingo, 23 de fevereiro de 2014

A Arma Zeta 23 fevereiro

Manoela sobreviveu, disseram que foi um milagre. Mas Brigitte nunca se recuperou do estado de felicidade permanente. Jamais soube o que teria acontecido a Alencar. Durante pouco tempo, eu e minha família encontramos uma maneira de ajudar as vizinhas. E depois que teve alta, Manoela tratou de suplantar as dificuldades financeiras com suas habilidades: era exímia artesã, uma ourives de tirar o chapéu. Dizia que tinha aprendido tudo com o pai, agora desaparecido. Copiava, recuperava e embelezava todos os tipos de jóias e também criava peças magníficas com rapidez e qualidade. Sua fama se espalhou rapidamente e em breve, as duas deixariam de ser minhas vizinhas.

Durante muitos meses, no entanto, tentei obter de Manoela explicações sobre o que realmente havia acontecido naquele carnaval. O grande problema é que ela não conseguia se lembrar de muita coisa e qualquer esforço nesse sentido a deixava se sentindo muito mal. Ela nunca mais falaria sobre Caleb, ou contaria qualquer história da família Mondego. Ao mencionar as coisas de que me recordava, Manoela simplesmente se calava. Insistir a levava às lágrimas, era uma tormenta mental que se manifestava fisicamente. A arma Zeta e tudo o que se referia a ela era simplesmente um assunto doloroso.

Obviamente, eu jamais havia dito a qualquer pessoa uma palavra sequer sobre a arma Zeta. Ninguém acreditaria em mim. Aliás, eu também comecei a duvidar de mim mesmo na quarta-feira de cinzas, quando Manoela ainda estava no hospital e eu ainda tentava construir uma história convincente para contar aos meus pais e convencê-los a ajudar as vizinhas: a filha ferida na barriga e a mãe enlouquecida. Isso se mostrou desnecessário porque estamos tão habituados a testemunhar violências horrorosas e absurdas que toda e qualquer história é plausível. Desse modo, minha família acreditou que os vizinhos tinham sido vítimas de um terrível assalto a mão armada e tentado buscar ajuda no apartamento em frente. Versão esta que ficou registrada no boletim de ocorrência e seria repetida por mim à exaustão durante um pretenso processo investigativo. Se descobriram alguma coisa nunca me contaram, nem mesmo durante uma tarde em que fui interrogado duramente, o que me deu a certeza de que a polícia me considerava o principal suspeito do que havia acontecido com Manoela. Mas isso durou pouco tempo, um assalto parecido com o que contei aconteceu no prédio ao lado, e também em outro, e numa porção de bairros da cidade. Nenhuma das investigações sobre esses crimes, que eu saiba, produziu sequer uma única prisão.

Eu seguia com a minha vida, era o tempo de grandes mudanças. Estudos, vestibular, provas, provas e mais provas. A arma Zeta também se tornou para mim um tema incômodo para acalentar na cabeça. Num belo dia no final daquele ano, atravessei o corredor para uma rápida e tradicional visita para a família Mondego, mas não havia mais ninguém lá. Soube pelo porteiro que eles haviam se mudado do prédio naquela manhã. Fiquei entristecido, achava que merecia pelo menos uma breve despedida. Já estava chegando ao elevador quando o porteiro avisou que ela havia deixado uma correspondência na caixa de correio.

Subi as escadas correndo com a carta na mão. Entrei voando no meu quarto e me preparei para a leitura. Mais uma vez, eu pensava, agora era hora de uma boa música de background.



sábado, 22 de fevereiro de 2014

A Arma Zeta 22 de fevereiro

Tudo o que disseram que acontece quando você sente que está prestes a morrer é verdade. Você vê mesmo o tal filme da sua vida em câmera lenta em velocidade acelerada, mas que a imensa quantidade de adrenalina na sua cabeça faz com que você entenda tudo perfeitamente. Anos de sua vida são comprimidos nos poucos segundos que o instinto vital avisa que restam, e os segundos na sua mente se transformam em minutos e horas. Eu sei porque vi meu próprio filme.

No entanto, não sei se é verdade que algumas vezes a alma se liberta do corpo nos instantes finais, e que é possível olhar para si mesmo e ver o próprio corpo soltar o último suspiro. Existem centenas de relatos de pessoas que juram ter flutuado sobre o corpo inerte e depois disparado rumo ao céu, em direção a uma forte luz, chegando mesmo a vislumbrar a ínfima ponta das vestes de criaturas celestiais. Eu não cheguei a tanto, juro. Embora sempre tenha achado estranho que as pessoas só disparem para cima, nunca vi relato de gente que se sente condenada e mergulhou para baixo, em direção ao inferno. Mas disso nada sei. Só sei que fui deixado ali, com o corpo de Manoela ensanguentado e Brigitte, enlouquecida de felicidade.

Caleb se afastou calmamente, sem pressa, examinando a sala.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

A Arma Zeta 11

É possível amar quem nunca tocamos? Impossível, dirá alguém apressado, se esquecendo do que sentiu quando percebeu que ali, contra a pele de uma barriga de mãe, era possível distinguir um braço ou um pé e vislumbrar um futuro maravilhoso e feliz. Impossível, dirá algum afoito, que já se esqueceu de todos os amores porque só ama a si mesmo. E todos os amores são possíveis porque é impossível não querer amar, ainda que seja apenas por alguns minutos. Eu divagava e por isso, naquele instante em que Manoela morria, eu tinha certeza de que alguém havia colocado alguma coisa na minha bebida. Manoela estendia a arma Zeta e me dizia alguma coisa. Ao tentar ajudá-la meus joelhos na fantasia de frade ficaram encharcados de sangue.

_Quem fez isso? Quem atirou em você?

_Caleb - disse Manoela, com os olhos agora paralisados.

A porta explodiu à minha frente. Eu empunhava a arma Zeta como vira Manoela fazer, mas com a absoluta certeza de não saberia fazê-la funcionar. Roberto entrou em casa, arrastando Brigitte. Ele apontava um revólver para a cabeça.

_Não se mexa, garoto. Coloque isso no chão. Minha briga não é com você, é com os Mondego - ele disse.


Eu tentava me concentrar na leitura labial, mas aquilo era muito difícil. Brigitte estava me dizendo alguma coisa que eu não conseguia entender de jeito nenhum.

_O quê? Gente? Pente? Sente? - eu pensava. Brigitte se desesperava.

_Pense?

Então pensei em explodir Caleb, mas apenas senti a arma Zeta fazer aquele "blop" inofensivo. Não aconteceu mais nada. Brigitte gritava de desespero e Caleb mirava cuidadosamente. Ele deveria estar quase sem balas.

_Flechas! Eu pensei em flechas atingindo seus braços e pernas - eu disse. Mas não aconteceu nada.

Então Roberto, ou Caleb se aproximou e bateu com força na minha cabeça com a coronha do revólver. Eu deveria ter apagado, então fingi. Caleb puxou raivosamente a arma Zeta da minha mão e disparou contra Brigitte. Ela ficou estranhamente calma e sorridente. Alguém que a visse naquele instante poderia jurar que ali estava uma pessoa feliz, muito feliz.



quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

A Arma Zeta X


_Os melhores mitômanos são os que acreditam nas próprias lorotas - eu disse.

_Não são lorotas. Existem documentos, fotos e filmes que provam tudo o que estou dizendo - disse Manoela.

_Ótimo. Gostaria de ver - eu disse.

_Infelizmente isso não vai ser possível. Quando Caleb desapareceu, ele levou tudo, inclusive o restante do ouro. Mas o que há de errado com você, Sam? Você não acabou de ver o que a arma Zeta pode fazer?

_E se eu estiver hipnotizado? E se eu estiver drogado de alguma maneira? E se você for uma ilusionista? Afinal, está tudo praticamente como antes. Uma vez li em algum lugar que os etíopes mascam uma espécie de cipó alucinógeno o tempo todo, o peyote. O consumo intenso acaba levando alguns desses caras a imaginar coisas e a acreditar que elas são reais. O que lembro dessa história é que de alguma forma, muitos etíopes acabam convencidos de que é possível roubar o pênis de um homem enquanto ele está dormindo. E o mais incrível é que muitos deles acordam num dia qualquer convencidos de que alguém lhes roubou o miguel. Quando isso acontece, os caras piram e saem pelas ruas das cidadezinhas etíopes à caça do homem que lhes roubou o pinto. Não é engraçado. Eles realmente acreditam nisso. E quando encontram o que acham que lhes pertence, eles castram os infelizes ainda vivos - eu disse.

Então Manoela apontou a arma Zeta para o sofá e ele virou pó.

_Já vi esse truque no cinema - eu disse.

Ela apontou para a mesinha e ela se transformou em gelo e depois em água.

_Manjadíssimo.

_Estou me sentindo um pouco etíope, agora. Abra as pernas - disse Manoela.

_Espere. Eu acredito. Sinceramente - eu disse.

Mas ela não parecia estar de brincadeira. Manoela se levantou rapidamente e correu para a porta. Olhou pelo olho mágico e reprimiu um grito, tapando a própria boca.
Quando se voltou para mim, estendeu a arma Zeta, antes de cair pesadamente sobre o tapete. Uma enorme poça de sangue se formou sob Manoela.

_Ajude-me, estou morrendo - disse Manoela.










quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

A Arma Zeta IX


_Eu não fico bem de smoking cor-de-rosa - eu disse.

Isso era a mais pura verdade.

Naquele dia conversamos horas e horas. Manoela me contou das suspeitas do trisavô sobre a origem da Arma Zeta. Ela acreditava que o artefato tinha sido mantido por indígenas paraguaios durante centenas de anos até ser encontrado pelo seu parente na prisão, erguida sobre as antigas ruínas de um templo qualquer.

_Meu trisavô escondeu o objeto por achar que era valioso e que poderia ser usado para comprar uma fuga ou algum privilégio na prisão. Mas uma noite, tal como aconteceu com a lâmpada de Aladim, ele descobriu como a arma funcionava. Ele esperou com paciência, treinando o uso da arma todas as noites, sozinho em sua cela. Numa noite de lua cheia, com a ajuda da arma ele construiu um túnel e escapou. Ficou meses perdido na floresta, mas a arma Zeta lhe garantia tudo o que precisava, comida e abrigo, segurança e proteção. Tornou-se amigo de uma tribo de índios esquecidos pelo tempo, que se escondiam numa grande pirâmide escondida na floresta de um pantanal. Virou xamã, mágico e curandeiro, dono de uma grande riqueza em ouro só com os presentes ofertados pelos índios agradecidos. Mas era um homem obcecado pela vingança da traição sofrida dos compatriotas, que o entregaram aos paraguaios só porque o invejavam. Tinha estudado na França e lido "O Conde de Monte Cristo". Planejou a desforra durante anos e quando voltou à Província de São Paulo havia adotado o nome de Edmundo Mondego, porque seria ardiloso como o primeiro e crudelíssimo como o segundo.

_Ué, pensei que seu nome também fosse Alencar - eu disse.

_É Alencar Mondego - ela disse.

Manoela contou como o velho antepassado envolveu almirantes, marechais, coronéis e figuras de patentes menores numa trama que culminou com um terrível massacre oculto da história oficial. Os traidores de Mondego foram degolados por índios fiéis ao xamã durante o último baile da Ilha Fiscal. Depois, sem mencionar como sua trisavó tinha entrado na história, Manoela diz que o trisavô foi brutalmente assassinado por um dos índios, que acabou fugindo para a Europa. Nesse meio tempo, a família perdeu o rastro da arma Zeta, que só foi reencontrada anos depois pelo tio-avô no Monte Castello.

_Depois de três meses de batalha, quando o general Cordeiro de Farias comandou o ataque final, meu tio-avô participou de um grande tiroteio com subordinados do tenente-general von Gablenz no cume do monte, onde havia um ninho de metralhadoras. Um dos alemães estava moribundo, já havia sido atingido diversas vezes, mas continuava a resistir bravamente. As baixas do batalhão brasileiro tinham sido terríveis e continuavam a aumentar. Os homens do pelotão tiraram a sorte e meu tio-avô foi escolhido para seguir sozinho até o atirador numa espécie de missão suicida, para detonar o ninho de metralhadoras. Eles amarraram explosivos em seu peito e o mandaram correr até lá. Meu tio-avô não teve escolha. Mas teve sorte. Ao invés de explodir no meio do caminho, encontrou o ninho de metralhadoras abandonado, com apenas um único alemão, terrivelmente ferido - ela disse.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

A Arma Zeta VIII - A história de Manoela


Ela respirou fundo e disparou. Eu agora usava um smoking.

_ O artefato Zeta foi encontrado pelo meu trisavô durante a Guerra do Paraguai – disse Manoela.

_Ah, conta outra, vai – eu disse.

_Meu tio-avô trouxe da Itália, depois de lutar em Monte Castelo – ela disse.

_Essa foi péssima – eu disse.

_Minha mãe roubou esse troço de um velho alemão nazista. Ela achava que era de prata e tinha algum valor, mas não sabia que era uma arma. Então ela se casou com um argentino chamado Victor Caled, que se dizia imortal e lhe ensinou tudo sobre a Zeta. Eles se separaram e Victor desapareceu. Minha mãe se casou novamente, dessa vez com meu pai, que você conheceu. Ele tiveram uma filha, eu, a quem minha mãe contou tudo o que sabia sobre a arma Zeta durante vinte anos.

Eu me lembrava das iniciais do anel. Talvez eu ainda o tivesse guardado em alguma gaveta.

_Melhorou bastante. Mas não explica como vocês reencontraram a geringonça – eu disse.

_Seu vizinho...

_Roberto?

_Não é Roberto. O nome dele é Victor Caled – disse Manoela.

_E onde ele está?

_Agora eu não sei. Mas ele estava disparando contra nós dois não faz muito tempo.

_Como vou saber se você está dizendo a verdade? – eu disse.

_Não tem como saber. Mas isso também não tem a menor importância.

_Espere aí, então existe uma outra arma Zeta nessa história? – eu disse.

_É claro, existem muitas. Minha mãe diz que existem pelo menos vinte. Foi o que o velho alemão disse para ela.

_Então existiu mesmo um velho alemão?

_Claro, ele estava em Monte Castelo, mas perdeu.
_Entendi. Ele também perdeu na Guerra do Paraguai, eu presumo – eu disse.

_Não, ele estava do lado vencedor. Mesmo assim o prenderam.

_E por quê ele não usou a arma Zeta? – eu disse.

_Porque ele disse que encontrou a arma escondida na cela da prisão. Foi graças a ela que escapou.

_Ah, fala sério! Isso é inacreditável.

_Você gosta de smoking cor-de-rosa?




segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Pausa na Arma Zeta

Peço licença à minha kombi de leitores para fazer uma pausa na Arma Zeta. O fim do horário de verão foi bem comemorado aqui em casa, mas ninguém se adaptou ainda. Eu não deveria estar sonolento, mas estou.

domingo, 16 de fevereiro de 2014

A Arma Zeta VII

Nunca tive problemas com a nudez. Ainda mais no Carnaval. Depois de algum tempo vendo tantos corpos descobertos, a gente acaba anestesiado. Mas é diferente quando você está fantasiado de frade e, sem mais nem menos, a sua roupa desaparece. Manoela ria, ainda apontando a Arma Zeta na minha direção. Eu tentava cobrir algumas partes, mas tinha a sensação de que estava vestido, embora não estivesse vendo as minhas roupas. No momento seguinte, minha fantasia voltara, colorida de rosa choque. Em seguida, eu estava vestido de índio, depois de lagosta, martelo, vaca, cachorro, gato, galinha, bode e tubarão.

_Espere aí, eu também quero brincar com isso - eu disse.

Manoela parou de rir e me encarou muito séria.

_Isto não é um brinquedo. Levei muito tempo para aprender a mexer com uma Arma Zeta. Além disso, só eu posso usar esta aqui. Ela é minha - disse Manoela.

_Moça, você está de brincadeira. Eu achei essa coisa tem uns 10 anos, não pode ser sua - eu disse.

_Foram 9 anos, onze meses e treze dias.

_Tudo bem. Tudo bem. Eu não quero brincar com essa coisa. Mas se ela é sua, por quê demorou tanto para pegar de volta?

_É uma longa história - ela disse.

_Eu tenho tempo, desde que você me devolva a minha fantasia de frade - eu disse.

A troca aconteceu num piscar de olhos. Ela esperou eu me sentar antes de começar a me contar o que havia acontecido 9 anos, onze meses e treze dias antes que eu tocasse pela primeira vez na Arma Zeta.

sábado, 15 de fevereiro de 2014

A Arma Zeta VI

Eu estava de rosto colado ao chão. O que aconteceu não durou mais que alguns segundos e eu ainda não conseguira entender tudo. Não houve explosão e nem barulho, a única coisa que senti foi uma vibração e no instante seguinte eu estava do outro lado da sala, como se uma onda tivesse se arrebentado nas minhas costas. Ainda deitado olhei para os lados esperando ver a sala destroçada, mas aparentemente tudo estava como antes.

_O que está acontecendo? - eu disse, olhando para os calcanhares de Manoela, à minha frente. De alguma maneira, eu havia sido atirado para trás de onde ela estava.

_Não sei ainda, fique quieto - disse Manoela.

Eu respirei fundo e fiz uma verificação rápida da situação. Eu não sentia dores, conseguia mexer os dedos, tinha a boca seca e não estava tonto. Estava com tremedeira de tanto medo e provavelmente precisaria tirar aquela fantasia de padre, trocar de roupa, mas não havia sangue e nem sinal de ferimentos.

_Caramba! Teve um tsunami nas minhas costas e você não viu? - eu disse.

_Quieto, eles estão em algum lugar à nossa frente - ela disse.

_Quem são eles? Só vejo calcanhares - eu disse.

Uma nova onda se quebrou à minha frente e desta vez eu senti como se alguma coisa se quebrasse atrás dos meus olhos. Parecia que milhares de pequenas fagulhas estavam fritando a minha cabeça por dentro, meus olhos ardiam. Quando os abri, tudo estava como sempre foi. Não havia nada pegando fogo, ninguém gritava, o silêncio imperava. A mesa, o sofá, tudo estava exatamente como antes. Subitamente eu percebi o que havia de errado: eu não via os calcanhares de Manoela.

_Eles já foram – disse ela, sentada calmamente na poltrona ao meu lado.

_Quem são eles? – eu disse.

_As pessoas que acabaram de tentar nos destruir – disse Manoela, ainda empunhando o velho enfeite de mesa como se fosse mesmo uma arma.

_E por quê alguém tentaria me destruir? Eu não sou ninguém – eu disse, lembrando de dois ou três filmes onde essa pergunta também é feita.

_Mas você tem uma dessas – ela disse, brandindo o velho brinquedo.

_Um revólver de brinquedo? Querem me destruir por um pedaço de lixo?

_Este “lixo” é a arma de todas as armas. É a Arma Zeta! – disse Manoela, os olhos brilhando.

Tive que rir. E teria gargalhado muito mais se, de repente, sem que eu soubesse como, minha fantasia não tivesse desaparecido.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

A Arma Zeta V

Era Manoela. Ela não estava mais fantasiada e mesmo examinando-a criteriosamente eu não sentia vontade de desmaiar. Ela continuava linda de camiseta branca e jeans, mas eu não sentia nenhuma vertigem. Ao invés de paixão, talvez tenha sido apenas um problema glicêmico qualquer, eu pensei. Abri a porta e ela me estendeu o enfeite de mesa.

_Oi. Está melhor? Esqueceu seu brinquedo lá em casa - ela disse, estendendo o que eu ainda não sabia que era a Arma Zeta.

_Ué, como isso foi parar lá? - eu disse.

_Estava com você, minha mãe encontrou no bolso da sua fantasia de padre - disse Manoela.

Eu disse bacana, ok, muito obrigado, você me ajudaram muito, enquanto eu verificava mais uma vez, só para ter certeza, de que não havia mesmo nenhum bolso na minha fantasia de Fradim. Manoela já havia dado uma volta completa na sala e iniciara uma revista pela cozinha e quartos.

_Você está sozinho? - ela disse.

_Estou. Meus pais foram passar o Carnaval na praia, eles não gostam mais de bagunça.

_Meu pai também não gosta. Mas a minha mãe é bem foliã, acho que ela gosta mais do que eu.

_Vocês estão saindo juntas?

_Não. Ela tem a turma dela e eu tenho a minha. A turma dela é meio barra pesada, os caras piram - ela disse.

_Como assim?

_São uns coroas muito malucos, eles se acabam - disse Manoela.

Eu tentei imaginar um bando de coroas pulando o carnaval, sem muito sucesso. Eu não tenho a menor idéia de como eles se divertem.

_Estou brincando, ela também fica em casa - ela disse.

_Onde você comprou? - ela apontou para o brinquedo na minha mão.

_Não comprei. Encontrei esse troço quando era menino. Parece uma daquelas armas de filme de ficção científica, não é?

_Você sabe como funciona?

_Não tem gatilho. Acho que nunca teve.

_Não precisa de gatilho - disse Manoela.

Mais uma vez, é preciso encontrar um jeito de introduzir música incidental em cenas da vida real. Naquele instante, eu deveria ter escutado o barulho do meu coração, tambores e cordas agudas, um violino vibrando bem alto, como acontece nas cenas em que subitamente aparece um tubarão, ou que o mergulhador percebe a existência de uma moréia. Manoela estava com o brinquedo na mão direita, mas ele agora parecia estranhamente metálico e sólido. A única diferença é que um pequeno orifício havia surgido na ponta do cano, bop.

_É melhor você se abaixar - disse Manoela.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

A Arma Zeta V

Ao voltar pra casa, fiquei pensando alto. Vejamos. A Arma Zeta havia desaparecido. Não, eu não pensei isso, porque a Arma Zeta não significava nada para mim, eu ainda não sabia que aquele enfeite de mesa poderia disparar raios desintegradores. Eu não sabia de nada e era Carnaval. Então se eu não tivesse visto Manoela eu não teria desmaiado. E se eu não tivesse desmaiado, não teria sido levado até o sofá do apartamento do meu vizinho e visto um enfeite de mesa idêntico ao meu na mesa da sala dele. Também não teria visto a mãe de Manoela e reconhecido a mulher que me visitara por engano alguns meses antes, enquanto procurava Roberto, meu antigo vizinho.

Esse raciocínio me deixou com duas grandes dúvidas na cabeça. Por quê o meu enfeite de mesa estava no apartamento do vizinho? Quando poderia ver Manoela novamente? Eram perguntas não poderiam ser deixadas suspensas na retórica. Especialmente a segunda. Enquanto eu pensava nisso, eu vasculhava a sala em busca do enfeite de mesa, sem sucesso. Mas para minha surpresa, a campainha tocou e corri para atender a porta. Mas antes, é claro, olhei pelo olho mágico.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

A Arma Zeta IV

Naquele Carnaval eu estava fantasiado de Baixim, o Fradinho baixo, sádico e sarcástico criado pelo Henfil. Claro, na rua ninguém sabia disso, só achavam que eu estava com uma roupa muito quente. E era mesmo muito quente, mas não foi por isso que eu desmaiei. Desfaleci pela visão da bela Manoela, coisa que naquele instante não era conveniente admitir.

_Então, o que aconteceu? - perguntou a mãe de Manoela.

_Quando?

_Agora. Encontramos você caído no corredor e tivemos um enorme trabalho para arrastá-lo até o sofá. O mínimo que você poderia fazer é nos dizer o que aconteceu. Você é cardíaco? Diabético? Sofreu uma insolação? - disse a mulher.

Uma pessoa bonita pode parecer ser mais antipática que uma pessoa com quem não esperamos criar algum tipo de empatia. As pessoas com boa aparência estão acostumadas a presumir que receberão mais atenção e consideração do que uma pessoa desprovida desses atributos. Naquele dia eu deveria estar um pouco grogue, porque apenas agradeci e pedi desculpas pelo trabalho e voltei rapidamente para casa. Mas antes, é claro, apertei a mão do Seu Alencar e me apresentei para a família.

_Antônio. Obrigado, mais uma vez e desculpas novamente pelo trabalhão.

Assim que entrei em casa fui até a mesa onde o brinquedo costumava ficar e, para minha surpresa, descobri que a Arma Zeta havia desaparecido.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

A Arma Zeta III

Roberto havia sumido mas eu ainda não tinha como saber disso. Não éramos amigos e eu o via raramente. Ele costumava passar longos períodos fora do apartamento, em viagens a trabalho. E eu não sabia nada sobre o que ele fazia. Na verdade, nunca havíamos trocado mais do que alguns cumprimentos na portaria, ao entrar e sair do elevador. Assim, eu só fui perceber que ele havia mesmo desaparecido alguns meses depois, quando voltava de um baile de Carnaval e vi outras pessoas no seu apartamento. Mais especificamente, vi Manoela vestida de índia, de tomara-que-caia e tanga de penas, cocar, arco, flechas, colares e pulseiras. Estava animada, dava pulinhos com os braços para cima. A-lá-lá-ô!

Aquele sorriso. Ver Manoela fez soar címbalos, tambores africanos, o grito original de Johnny Weissmuller, chocalhos, trombetas e um clarim em meus ouvidos. Era uma experiência multissensorial, sinestésica, dava água na boca e um aperto no coração. Naquele instante eu percebi que a paixão à primeira vista é um fenômeno que jamais poderá ser compreendido em sua plena magnitude e que nunca poderá ser induzida em laboratório, mesmo que se consigam estabelecer condições ideais de temperatura e pressão. A paixão à primeira vista só pode ser sentida. É uma epifania. É como acordar de madrugada em estado de pura alegria pelo simples fato de estar vivo. É o sentimento que estará sempre além de qualquer palavra, mesmo as engenhosamente organizadas em poemas sussurrados por anjos. É um raio. É pau. É pedra. É o fim do caminho. Manoela brilhava envolta em confete e serpentina e ao vê-la assim tão linda, desmaiei.

Um observador malicioso poderia dizer que eu desmaiei de forma calculada. Mas se isso aconteceu, foi o meu inconsciente que fez todos os cálculos e planejou tudo sozinho. Eu acordei sem saber de nada no sofá da sala do antigo apartamento do Roberto, que depois eu viria a saber que era da família de Manoela. E essa pessoa que agora tentava me afogar com um copo d´água, sem noção do que estava fazendo, eu viria a saber que era o seu Alencar, pai de Manoela.

_Está vivo, não disse? Se esbaldou no carnaval e veio desmaiar na porta de casa - ele disse, triunfante, para a filha. Eu sorri também, ainda grogue, para Manoela.

_Como é o seu nome? Onde você mora? Está sentindo alguma coisa? - disse Manoela.

Eu sorri novamente tentando lembrar qual tinha sido a primeira pergunta e organizando as respostas na ordem correta, mas quando abri a boca eu me confundi todo.

_Sinto muito. Aqui mesmo, no final do corredor - eu disse, apontando para o coração e depois para a porta aberta. Um reflexo forte me chamou a atenção. Ali, bem na frente do meu nariz sobre a mesa da sala do apartamento, brilhava uma coisa muito parecida com o meu velho revólver de brinquedo achado na rua. Minha surpresa foi ainda maior quando, vindo da cozinha, surgiu a mulher que meses antes havia procurado pelo Roberto.

_Não falei, Alencar? Eu te disse, Manoela! É o nosso vizinho que mora no outro lado do corredor.











segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

A Arma Zeta II

A Arma Zeta teria permanecido mais alguns anos como sendo apenas um enfeite de mesa em minha casa se não fosse por uma estranha visita que recebi, quando eu estava perto de completar 18 anos. Daquela vez parecia mesmo que uma coisa especial estava acontecendo. Chovia e fazia sol, ventava forte e havia redemoinhos por todos os lados. Os cachorros latiam nas ruas, pássaros voavam em todas as direções, meu peixinho dourado pulou para fora do aquário. Por algum motivo, eu estava sozinho naquela tarde. Quando a campainha soou eu acabava de devolver o peixe para o aquário e corri para atender a porta. Mas antes, olhei pelo olho mágico e vi uma das mulheres mais bonitas que eu já vi em toda a minha vida.

_Nossa Senhora! - eu disse, em voz alta.

_Não, sou eu, Brigite - disse a mulher.

Ventava uma barbaridade, embora ela estivesse no corredor do prédio de apartamentos. Abri a porta rapidamente para que Brigite entrasse, mesmo depois de ter feito uma rebobinada rápida na memória e ter certeza de que não conhecia Brigite nenhuma.

_Obrigada, muito obrigada. Você deve ser o ... - ela disse, enquanto estendia a mão como se estivesse acostumada com que a beijassem, com reverência.

_Sim, eu sou o ... - e me inclinei para beijar aquela mão, que era mesmo muito beijável, enquanto tentava imaginar uma maneira de prolongar ao máximo aquele encontro improvável com uma mulher bonita.

Aqui eu tenho que fazer uma pausa e explicar que eu sou um cara feio. Sim, existem diversos graus de feiúra e certamente não sou o sujeito mais feio do mundo. Mas estou lá na rabeira da fila de pessoas aquinhoadas com alguma forma de beleza. Sempre soube que as mulheres muito bonitas, com raras exceções, também são muito vaidosas e não gostam da companhia de homens feios. A não ser, é claro, que o feio em questão tenha alguma forma de satisfazer a vaidade da bela mulher vaidosa, seja com sua inteligência, riqueza, poder, força, virilidade infalível ou tudo isso junto. Infelizmente, eu não tinha nenhuma dessas qualidades, mas Brigite continuava a me olhar como se eu fosse uma espécie de escolhido.

_Você é o Roberto, não é? - disse Brigite.

Roberto era o meu vizinho. Aquilo vivia acontecendo. Eu morava no 506 e o Roberto era um coroa que morava no 509, que ficava no outro lado do corredor. Um engraçadinho havia arrancado os números finais dos apartamentos e as confusões e enganos ocorriam com muita frequência.

_Não, infelizmente eu não sou o Roberto. Somos vizinhos. O apartamento dele fica em frente, no final do corredor - eu disse, começando a explicar que alguém havia roubado os números e que muita gente se confundia.

Brigite não escondeu a decepção. Ela fechou o sorriso e retirou a mão que eu ainda segurava tolamente, pensando em francês aquelas coisas que o gambá Pepe LeBeau diria com sotaque e muita classe. Eu ainda tentei oferecer alguma coisa para que ela ficasse mais alguns segundos, mas ela saiu rapidamente se desculpando. Quando fechei a porta e olhei pelo olho mágico aquela bela criatura se movimentando pelo corredor, vi que ela remexia a bolsa, de onde retirou um objeto que me pareceu familiar. Roberto a convidou para entrar rapidamente e antes que fechasse a porta olhou para o corredor com cuidado, como para se certificar de que não havia ninguém por perto a vigiar. Eu era o único, mas não havia como ele saber disso. Seja como for, aquela foi a última vez que eu vi Roberto.



sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

A Arma Zeta


Durante dez anos a Arma Zeta ficou na mesa da sala de casa servindo apenas como enfeite de mesa. Era pequena, cabia na palma da minha mão. Era mesmo bem parecida com um revólver, mas não tinha gatilho e nem um buraco para que as balas saíssem. Não havia motivo para considerá-la perigosa. Parecia mesmo bem inofensiva. Tinha gente que pensava que era um velho isqueiro.

Não me lembro de como estava o dia quando a encontrei. Deveria haver algum tipo de aviso, como no cinema, quando as coisas especiais acontecessem. Deveria haver uma música incidental que subisse de repente, uma imagem estranha acelerada, um efeito visual, lobos uivando, corujas no ar, qualquer coisa, mas não me lembro de nada disso acontecendo quando encontrei a Arma Zeta. Não me lembro nem qual era o dia da semana. Acho que foi num dia qualquer em setembro, mas pode ter sido em outubro ou novembro. Talvez estivesse ventando, mas onde eu moro as ventanias são comuns. Não chegam a formar tornados, só uns redemoinhos meio chinfrins. Mesmo assim, acho que não estava ventando muito forte quando a encontrei.

Na verdade, eu ainda nem a chamava de Arma Zeta. Parecia mais um velho revólver de brinquedo com defeito. Era colorido como aquelas armas de Flash Gordon que a gente vê nas revistas antigas e talvez por isso eu a tenha guardado. Achei que podia valer alguma coisa. Naquele tempo eu estava sempre atrás de dinheiro e procurando um jeito de arrumar uns trocados. Não é que fôssemos pobres. A grana era curta, contada. As pequenas sobras eram poupadas em cofrinhos, potes ou vasilhas de louça insuspeitos que nunca iam à mesa.

Eu estava andando na calçada e praticamente tropecei naquilo. Eu a encontrei sobre uma sacola, no meio da calçada da rua perto de onde morávamos, junto a peças de roupas que poderiam ser de qualquer pessoa(jeans, camiseta, um par de óculos, meias e tênis). Não me lembro se havia roupas íntimas, acho que não, ou isso certamente teria me levado a algum juízo sobre o sexo da última pessoa portadora da pistola de raios. Havia também uma aliança, com as iniciais VC gravadas. Se eu soubesse que era a Arma Zeta, capaz de fazer desaparecer um ser vivo, talvez tivesse intuído que o antigo proprietário teria se auto-desintegrado em plena rua. Mas só fui pensar nisso anos mais tarde, quando achei que já era tarde demais.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Apalpados

Os personagens são praticamente os mesmos. As nacionalidades é que são um pouco diferentes. Dizem que naquele país, que vamos chamar de Bolívia, o governo estava muito preocupado com a falta de médicos no interior, que também não tinha laboratórios, clínicas e nem hospitais com equipamentos do século XX. O presidento(sim, é esquisito, mas o cara encasquetou) resolveu então acabar de uma vez por todas com aquela precariedade e decidiu importar médicos norte-americanos.

_Norte-americanos? Isso é parte do projeto de doutrinação capitalista internacional! Pô! Aqueles caras não sabem falar português, digo, boliviano! Os gringos não vão entender o que os pacientes estão dizendo. Os laboratórios e farmácias não vão entender as receitas prescritas pelos gringos, eles não entendem nem as dos nosso médico bra... bolivianos! - esbravejou algum parlamentar da oposicinha - assim chamada porque era meio mauricinha, gostava de tomar tapa na cara e ainda frequentava enterro de terrorista na companhia de impichados, picaretados e não-sei-de-nadas.

Ninguém ligou a mínima porque falta tudo no interior, menos promessa. O principal problema, aliás, é promessa não cumprida. Mas o interior não seria o interior se não acreditasse em promessa e coisa besta. E como no interior não tem laboratório, clínica e nem hospital decente, só uma ambulância com gasolina racionada pela prefeitura, a galera achou que estava saindo no lucro e ganhando um doutor. Gringo, mas doutor.

_E ele é um médico que apalpa! - disse o presidento. O que é verdade, os gringos apalpam, mas confesso que não saquei a ênfase do presidento.

Os médicos bolivianos tentaram protestar, dizendo que os norte-americanos não tinham formação adequada porque estavam há anos vivendo em estado de penúria imposta pelo bloqueio dos porcos chauvinistas, dos portos capitalistas ou das duas coisas juntas. Para passar o tempo, disseram os médicos bolivianos, os norte-americanos haviam se especializado em revoluções e viviam da exportação de charutos, guerrilheiros, escravos de jaleco, cana e muamba chinesa. Eles também disseram que os norte-americanos só poderiam vir se passassem num provão de cinco perguntas de marcar certo ou mais ou menos. A idéia foi ridicularizada pela base governista boliviana, que é tão larga quanto a aprovação de emendas parlamentares.

Os primeiros médicos norte-americanos foram recepcionados por uma comissão de frente de escola de samba, colares, miçangas e pitangas, com o melhor do nosso carnaval. Mentira. Doutores bolivianos ofenderam e humilharam os gringos de jaleco e todos os bolivianos ficaram chateados com aquela péssima recepção. De modo que o presidento e seus 39 ministros deram um baita rolezinho na opinião pública e daí a pouco milhares de gringos norte-americanos de jaleco começaram a pipocar em toda Bolívia, até mesmo onde já havia equipes de médicos bolivianos contratados e trabalhando. Esses caras nacionais foram despedidos, bye, bye, so long. Olé!

O programa boliviano prosseguiu sem maiores sobressaltos até que uma médica norte-americana se refugiou no congresso e pediu asilo ao governo boliviano. Ela disse que já não aguentava mais as condições de trabalho na cidadezinha boliviana em que estava. Também falou que o salário que recebia não lhe permitia o sustento, pois não chegava a 500 dólares. Por isso, ela viajou milhares de quilômetros e resolveu se esconder no gabinete do parlamentar mais er... simpático e cheio de perdigotos do congresso boliviano. E quando menos se esperava ela sacou o contrato de trabalho do fundo da bolsa e mostrou que não ganhava 10 mil dólares, e que, pelas contas já feitas e repetidas, ela só arredava o pé dali se recebesse o que tinha direito e asilo. Somando tudo não dava um mensalinho, disseram os especialistas.

No dia seguinte, sicários de New York fizeram publicar na imprensa boliviana que ela já havia pedido asilo na embaixada de Cuba, onde seu marido se refestelava com medicina de primeira qualidade, um porto maravilhoso financiado pelo BNDES, produtos de alta tecnologia, e doses maciças de liberdade. Será que a Bolívia concederá asilo? E Cuba, lançará? Ou a gringa será deportada para o antro capitalista? Nosso presidento dirá que a médica gringa não apalpa? Outros gringos a seguirão? Haverá grana pra tanta indenização trabalhista? Quem sabe? Alguém entendeu aquela história do médico que apalpa?




quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Filminho no Facebook

Existem dois tipos de seres humanos: os que têm e os que não têm filminho no Facebook. Sou do segundo grupo. Minha retrospectiva não passou de meras seis fotinhas, sem musiquinha. Não deu nem para um powerpoint com musiquinha, quanto mais um Prezi caprichado, com trilha sonora de piano clássico, imersões, volteios e loopings. É lógico que fiquei despeitado.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

Inocentes

Meu filho saiu da pequena escola nem tão alternativa assim, que fica a apenas dois minutos e meio daqui de casa. Mas minha filha continua lá. Às seis e meia da manhã, eu e meu filho partimos em missão atravessando a cidade até o Maristinha. São trinta e cinco minutos de percurso com todos os semáforos verdes. Quase sempre pegamos dois sinais fechados, o que aumenta o tempo em cinco minutos. Às sete e dez ainda é possível escolher um lugar para estacionar e acompanhar o menino até o grande portão da escola. Às sete e doze é impossível. Quinhentos automóveis chegam praticamente juntos por volta das sete e quinze, na marca do pênalti para o primeiro sinal. Depois do segundo, nenhuma criança entra em sala de aula. No caminho ultrapassamos e somos ultrapassados por dezenas de automóveis na mesma situação: pais e filhos voando baixo para não chegarem atrasados, desviando de buracos e sacolejando sobre uma pista multi-remendada. O sol está raiando quando estamos na altura do Iate Clube e dos Fuzileiros Navais, olhando para Esplanada dos Ministérios. O céu está sempre esplendoroso e magnífico, com aquarelas inimitáveis, estupefaciantes. Amanhã levarei a câmera para uma foto durante o trajeto.

É lógico que seria muito mais fácil e confortável manter o menino na escola nem tão alternativa assim, mas resolvemos vencer a inércia e decidimos apostar numa escola tradicional, com uma boa estrutura e que tem a fama de possuir e cultivar um bom quadro de professores. Até agora vem dando certo, o menino gostou da mudança e está entusiasmado com o novo colégio. Minha filha, no entanto, resistiu e continua avessa à idéia de mudar de escola. Todos os dias, agora é a mãe que a leva à escolinha. Eu busco. Quando apareço, os antigos colegas de sala do meu filho se juntam no portão da escola para saber notícias do amigo.

_Ele foi pra qual escola?

_Ele está gostando?

_Aposto que ele não está gostando - diz um menino gordinho.

_Ele pode ir lá em casa?

_Aposto que ele não pode mais ir lá em casa.

_Ele ainda lembra de mim?

_Aposto que ele não lembra mais de ninguém.

_Nós estamos torcendo por ele. Tenho certeza de que ele mudou para uma escola legal e que ele deve estar feliz. Eu também estou feliz por ele. Diga que todos nós estamos torcendo por ele.

É lógico que tive que prestar atenção neste último. É um garoto tímido e um pouco franzino, que sempre suspeitei ser possuidor de uma condição especial. Em seus olhos claros é possível ver a inocência em seu estado mais puro. É como Pinóquio pedindo do fundo do coração que a Fada Azul o transforme em menino.

_Aposto que ele deve estar bem infeliz - diz o gordinho.

Eu respondo a um monte de perguntas e levo a minha filha para casa. Somente vinte minutos depois estaremos juntos para a refeição. É uma nova rotina, mas já estamos praticamente adaptados.



segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

A coleção de marcadores artísticos de livros do Careca

Peguei um resfriado forte e também perdi a cabeça com a promoção de livros da CosacNaif na Cultura. Resultado: 5 livros novos para ler e dor de cabeça. Segue a lista.

1 - As aventuras de Pinóquio - Carlo Collodi.
2 - A contadora de filmes - Hernan Rivera.
3 - Malagueta, Perus e Bacanaço - João Antônio .
4 - Foras da Lei, Barulhentos - Nick Hornby, Clement Freud e outros.
5 - Histórias Fantásticas - Adolfo Bioy Casares.

Estou em dúvida sobre qual livro escolher para começar. Talvez comece pelo João Antônio, o que acham?

Só agora reparei que os marcadores de livros da Cultura já foram mais interessantes e bonitos. Agora é só uma filipeta com propaganda, dando destaque para os descontos nas compras à vista. Por quê eu me preocupo tanto com essas besteiras e efemérides? Será que algum dia verei uma exposição de marcadores de livros geniais? Onde está a minha enorme coleção de marcadores artísticos de livros? Sim, um dia tive a idéia genial de criar uma coleção de marcadores de livros desenhada à mão. Está em algum arquivo de computador ou DVD de dados. Bom, se eu encontrar eu posto aqui.



Frase do dia