segunda-feira, 28 de abril de 2014

Os preços malucos daqui

O último apagão levou o interfone e o Apple TV. O primeiro ganhei de presente, tinha câmera de vídeo em preto e branco e funcionou muito bem durante uns 3 anos. O Apple TV também foi presente de Natal, acho que ainda está na garantia. Seja como for, já desisti do interfone. O conserto custa mais de dois terços de um aparelho novo, com tela colorida. O interfone que pifou era preto e branco, já não fabricam mais. O valor do aparelho que o técnico tenta me empurrar é equivalente ao preço de uma TV de alta definição de 32 polegadas, ou o mesmo que duas onças mais um salário mínimo.

Estamos de volta aos tempos dos preços malucos para produtos e serviços. As pessoas simplesmente falam o primeiro valor que lhes dá na telha. Se colar, colou. Outros tipos te examinam de alto a baixo e quase dá para perceber os estalidos da máquina registradora dos caras, os olhos brilhando de vontade de te depenar. É cansativo.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

A idade do Careca

Muitas pessoas acreditam que depois de um certo tempo, não importa quantos anos você faça, a sua idade interior é a que conta. Alguns felizardos com esse raciocínio se gabam de ter uma idade próxima dos trinta anos, ou seja, nem muito jovem e inexperiente e nem velho e cansado de dar com a cara na parede. Eu costumava pensar da mesma maneira. Eu achava que tinha estacionado por volta dos 33, 34 anos, era essa a idade da minha auto-imagem. Eu acreditava. Que burrice.

Antes dos 35, eu acreditava que uma série de conquistas ainda estavam alinhadas à minha frente, eu só precisaria esticar o braço com um pouco mais de vontade para alcançar tudo e agarrar o que achasse melhor. Não que eu ainda não tivesse experimentado fracassos e desacertos. Não, senhor. Não, senhora. Eu já tinha sido feito de bobo, traído, chutado, enganado e menosprezado várias e várias vezes antes de chegar a essa tenra idade. Também tinha conseguido uns sucessos bestas, uma consolação ali, outra acolá. Mesmo assim eu me achava. Mesmo assim eu fazia a conta nos dedos e acreditava que os bônus sobrepujavam os ônus, os reveses e as porradas. O mundo estava logo após a soleira, eu só precisava apertar o passo para entrar na classe executiva, acelerar um pouco e colar na primeira classe, pertinho da porta da cabine do piloto e de olho no decote da aeromoça.

Então, outro dia eu fiquei examinando umas fotos antigas que colocaram no Facebook, do tempo da faculdade. Ali estava eu, com cara de menino, uns óculos redondos de imitação de aro de tartaruga. Tenho eles até hoje, não jogo fora nem garrafa de Gatorade. Tentei entrar na minha cabeça de antigamente e consegui, sem muito esforço. Eu era um lunático sonhador. Um maluco sortudo que conseguiu sobreviver a excessos com cigarros e birita, um pouco covarde, arrogante e muito, muito limitado. Naqueles dias, eu acreditava que minhas chances eram reduzidas no mundo competitivo e cada vez mais agressivo que eu avistava. Eu teria que andar com o bumbum encostado na parede e pensar muito antes de cada passo no campo minado. Com um pouco de sorte eu poderia conquistar algumas coisas, mas elas seriam bem efêmeras. Seria bom manter a cabeça e o tom de voz mais baixo e aproveitar todas as oportunidades que surgissem, porque seriam as únicas. Tudo o que eu deixasse passar, babau, nunca mais veria. Espere aí, eu disse. Esse sou eu até hoje!

quarta-feira, 16 de abril de 2014

Inglória

A minha existência é uma luta inglória para conseguir salvar a minha identidade de forças esmagadoras. É sério? Não, claro que não. Mas achei essa frase do balacobaco na orelha do livro "No Sufoco", de Chuck Palahniuk. Que nunca li, por sinal. Estou arrumando a estante dos livros não lidos no escritório. Isso nunca é fácil porque interrompo a arrumação o tempo inteiro para folhear livros que não li, livros que já li e gostei, livros que li e não gostei mas que agora começam a se mostrar interessantes, livros que li pela metade e que releio algumas partes, livros que definitivamente não voltarei a ler, livros que amo intensamente e que sempre me capturam e livros que esqueci que eu tinha. Esse do Chuck cai no último caso.

Não me lembrava de tê-lo comprado. Deve ter sido na esteira do entusiasmo da leitura do genial "Clube da Luta". A capa mostra um desenho anatômico dos músculos do corpo humano. A orelha do livro não é muito inspiradora, mas essa frase salta aos olhos. Já fui um sujeito muito mais pretensioso do que sou hoje, mas nem naqueles hiperbólicos dias conseguiria bolar uma frase tão gloriosamente empolada de empáfia. É preciso um mínimo de talento e autoconsciência para se cometer o pecado da soberba. Não existe arrogância sem que haja também um excesso de benevolência na auto-avaliação, um erro crasso de julgamento, uma indulgência permissiva com as nossas enormes limitações. Por outro lado, nem sempre a humildade é sinal de um rigoroso exercício de caráter e moral, de um disciplinado e inteligente trabalho do cérebro e do reconhecimento de que é sempre possível aprender alguma coisa. Não. Às vezes a humildade é só uma expressão resignada de nossa incapacidade de ação.

Folheando o livro descubro que algumas páginas estão coladas. Isso me chateia profundamente. Verifico novamente e percebo que não é o velho problema das páginas que não foram recortadas direito. Foi algo mais sério. O livro foi molhado em algum momento de sua história e pelo menos quatro páginas ficaram irremediavelmente coladas. Agora, portanto, acabo de descobrir que sou o proprietário há vários anos de um livro que não li e que, se algum dia tiver a intenção de lê-lo será melhor garantir que as páginas 245, 246, 247 e 248 estejam descoladas.

segunda-feira, 14 de abril de 2014

Mudança significativa

Eu me entedio rapidamente. Para algumas coisas, não preciso mais do que dois ou três minutos para fugir acelerado. Faço tudo para não sucumbir ao mais tenebroso tédio. Declarações oficiais de autoridades públicas me entediam profundamente. Esse fenômeno se intensificou nos últimos dez anos. Em alguns casos, o fulano poderoso já me enche de tédio ao abrir a boca, nem é preciso dizer alguma coisa.

_Defenderei... - diz a pessoa e já estou bocejando.

_Nunca antes...- e estou dobrando a esquina, procurando um lugar onde possa beber café, guaraná e fanta, qualquer coisa para não escutar uma lenga-lenga soporífera.

Um bom amigo me disse recentemente que parou de assistir telejornal há muitos anos.

_Assisti regularmente durante uns vinte anos. Nada mudou de forma significativa. E depois eu perdi a esperança de toda e qualquer esperança de mudança significativa - ele disse.

Eu não concordo com esse ponto de vista , mas respeito. A vida é curta. O caminho que escolhemos para gastar nosso tempo define a nossa filosofia e modela o nosso estado de espírito. Algumas pessoas não querem continuar a investir tempo em programas destinados a documentar o nosso fracasso social, político e econômico. Outros não querem dedicar preciosos minutos ouvindo uma arenga de amenidades e mentiras sobre o nosso infindável progresso rumo ao primeiro mundo, enquanto amarga o pesadelo de um engarrafamento monstro. Eu entendo. E também achei a frase ótima, deveria estar nos aeroportos e nas placas de fronteira, como se fosse uma paródia de Dante Alighieri: vós que aqui entrais, abandonai qualquer esperança de mudança significativa.

Não que eu assista telejornal. Parei de fazer isso há muito tempo, mas não sou um radical puritano anti-telejornal. Se por acaso estou na frente da TV na hora de um telejornal, o que raramente acontece, assisto numa boa. Depois fico com raiva, porque o telejornal parece novela ruim, já vimos tudo isso acontecer antes. Sem tanta intensidade, é verdade, mas não há esperança de mudança significativa à vista. Não, senhor.

Por isso é que eu tenho fé no poder do esquecimento.



quarta-feira, 9 de abril de 2014

A semana inteira

A Democracia apanhou a semana inteira. Leva surra todos os dias. Pobre Democracia. Onde está a classe média? Onde estão os defensores das minorias? Onde estão as feministas? Onde estão os gays? Onde estão os amigos dos índios? Onde estão os defensores dos direitos humanos? Onde estão os caras que sabem de cor a lei de proteção dos animais? Chamem os bombeiros, ajudem!

Eu queria ver todos eles agora, ao lado da pobrezinha da Democracia, coitada, que apanha todos os dias sem que ninguém a proteja. Bom , tem uns caras que tentam, mas a maioria esmagadora não deixa eles nem chegarem perto da Democracia. De joelhos, ela implora aos homens de bem para que as leis sejam respeitadas, para que não seja oprimida. Mas até mesmo os caras de toga estão virando as suas costas, dizem que alguns querem se vingar de maus-tratos passados, derrotas acadêmicas, recalques reprimidos. Outros são caras-de-pau, mal conseguem esconder o apreço que possuem pela Tirania. Não se cansam da bajulação, dos rapapés e salamaleques para os poderosos e injustos. Eles têm os olhos insanos, esses caras. Fingem não perceber que estão a permitir que a Democracia seja ferida de morte todos os dias, a semana inteira.

E hoje eu vi, nem consigo escrever direito com tanta coisa acontecendo, que mais uma semana dessas e a Democracia não aguenta, vai falecer.

segunda-feira, 7 de abril de 2014

Bernini e Ceschiatti

Gosto muito de esculturas. Minha fascinação por estátuas começou ainda menino, olhando para os anjos de Ceschiatti pendurados em cabos de aço, fazendo rapel sem as mãos, direto do teto da Catedral de Brasília sobre a minha cabeça. São lindos e impressionantes, assim como os profetas do lado de fora. Ah, os profetas. Todo mundo que passou um pedaço da infância em Brasília tem uma foto ao pé de algum profeta, pendurado num dedo gigantesco, sentado sobre pés de bronze verde escuro. E todo mundo tem ainda uma foto em frente à cópia da Pietá, de Michelangelo, em exposição permanente também na Catedral. Todas as vezes que vou lá acabo com torcicolo, de tanto esticar o pescoço para ver os anjos, de tanto forçar a vista para engolir os detalhes da Pietá com os olhos. Também eu insisto com as crianças para que façam poses perto dos profetas e lá vão eles se encostar numa das estátuas gigantes. Desde pequeno, portanto, escultores para mim eram dois: Michelangelo e Ceschiatti.

Isso só durou até o dia em que vi uma fotografia do Davi, de Bernini. O magnífico Davi de Michelangelo é uma estátua perfeita do herói em repouso. O Davi de Bernini é o herói no exato momento em que morde o lábio e ajeita a pedra na funda, com o corpo a ponto de romper a tensão que o fará acertar a testa do gigante Golias. Michelangelo é um mestre, um colosso. Mas Bernini fez o mármore se metamorfosear em árvore, folha, pena, escama, carne, água, pele e no êxtase de Santa Teresa. Bernini foi até onde ninguém mais será capaz de ir. Ele extrapolou todos os limites e alcançou a total maestria.

Agora estou procurando uma boa biografia ilustrada de Bernini e não encontro boas referências de nenhuma. O escultor e arquiteto responsável pela praça da basílica de São Pedro, com suas colunas e estátuas, não tem uma biografia consolidada, pairam muitas dúvidas sobre diversos aspectos de sua vida. De qualquer maneira, não existe questionamento sobre a sua arte. Era um escultor genial, que trabalhava em ritmo frenético, com uma produtividade fenomenal.

Também não encontrei uma boa biografia sobre Ceschiatti. Depois de uma busca na internet eu li uma história da Vera Brant que falava um pouco sobre Ceschiatti, o gênio que os pais inicialmente pensaram que fosse retardado.


sexta-feira, 4 de abril de 2014

Pássaros - republicação

(Texto publicado neste blog em novembro de 2007)

Eu nunca gostei de caçar. Nada. Nem passarinho. Mas uma vez saí com meu irmão e dois primos para caçar passarinho. Fomos para a periferia da cidade onde nascemos, em Goiás. Ainda existiam alguns pedaços de mato. E ainda existiam pequenas fazendas em volta da cidade. Andamos um bocado e escolhemos alvos diversos no caminho. Calangos, romãs, goiabas, latas, garrafas, mamão, uma porção de coisas. Só sei que gastamos um chumbo danado. Quase no final, só havia um chumbinho para cada um.

Aí nós chegamos numa fazendinha muito legal, com uma bela cerca de arame coberta de maracujás. Além da cerca, havia um enorme quintal coberto de palha de arroz. No centro, uma única árvore, uma mangueira. Nessa árvore, milhares de pássaros se amontoavam.
Ficamos bem quietos e vimos algumas dezenas deles mergulhar na palha de arroz. Um pequeno movimento e flop! Os pássaros voltavam para a árvore. E depois de um breve silêncio, a algazarra que os bichos faziam poderia ser ouvida a um quilômetro de distância. Aliás, foi por isso que encontramos a fazendinha.

Aí meu irmão, que era o mais velho, disse que não ia atirar. Disse que atirar em tantos bichos de uma vez era covardia. Disse que era melhor deixar os passarinhos vivos e contentes. Disse que o covarde que atirasse não tinha chance de errar. Disse que o covarde que atirasse podia esquecer que era amigo dele. E disse para irmos embora.

Mas os primos queriam pelo menos atirar. Eu também. Ivo foi o primeiro, mirando sem capricho em um pássaro no chão, quase ao pé da mangueira. Um alvo fácil. Facílimo.Pum. Passou perto, mas só o que fez foi provocar uma ligeira debandada de pássaros. Ivo era o melhor atirador do grupo. Era óbvio que havia errado de propósito.

Continuávamos escondidos e quietos. Logo os bichos voltaram. Foi a vez do Carlaile. Acho que também mirou com preguiça, num passarinho no chão. Alvo próximo e fácil. Errou. Carlaile, quando queria, atirava melhor do que meu irmão, que era o segundo melhor atirador do grupo. Nova debandada. Nova espera em silêncio. E era a minha vez.

Olhei para o meu irmão. Ele voltou a dizer que atirar naqueles bichos era covardia. E também voltou a dizer que o covarde que atirasse naqueles passarinhos podia esquecer que era amigo dele. Olhei para os primos. E sem dizer nada, apontei com cuidado para o centro da mangueira. A mira daquela espingarda de chumbo era meio torta, você tinha que dar um pequeno desconto para a direita. O gatilho era leve. Bastava um puxão do indicador. Mirei e mirei. Podia sentir os olhos do meu irmão queimando a minha nuca. No final, fechei os olhos e atirei. Pum!

Abri os olhos e vi um pássaro cair da árvore. Centenas deles voaram imediatamente para outro lugar. No silêncio que se seguiu, só o que eu conseguia escutar era o bater de asas do pássaro que eu havia acertado. O bicho se debatia sobre a palha de arroz. O barulho era o mesmo de uma borboleta batendo as asas perto do seu ouvido.

_Mas por quê você fez isso? – gritou o meu irmão.

E a verdade é que eu não sabia. Ainda não.

_Agora vai lá e pega o passarinho – ordenou.

Eu obedeci. Quando peguei o pardal, sua cabeça pendia mole, já não havia movimento nenhum.

Meu irmão ficou o resto da semana sem falar comigo. Nunca mais caçamos nada.

Mas até hoje, quando olho para o meu irmão, percebo em seu olhar uma tristeza, um senão, como se eu tivesse acabado de matar um passarinho.

quinta-feira, 3 de abril de 2014

O nebulímico estupor bajulatório

De acordo com um velho ditado, reunião de mais de três é comício. Isso é uma grande verdade. Só que agora não existe reunião de mais de três sem que haja pelo menos um ativista. Falta um tempão para a eleição, mas está difícil até conversar potoca na frente da escola sem que apareça um ou mais militantes prontos para ensaiar uma argumentação pró-governista, uma esculhambação da imprensa, ou uma ironia com a nossa combalida oposição, que de tão pequena e frágil, a gente, com dó, chama de oposicinha.

Desta vez eu estava numa boa ouvindo outros pais a reclamar da infra-estrutura, do transporte público, da falta de segurança, dos hospitais, da inflação, da roubalheira e da corrupção, que está demais - ninguém merece, quando chegou a pessoa ativista. Reconhecer uma pessoa dessas é mole. Ela entra no meio da conversa já pautada, com os argumentos recém-adquiridos na ponta da língua, em geral já devidamente redigidos por uma das milhares de penas de aluguel do babaovismo que impera nesta e em outras cidades. Em Brasília, o nível do puxa-saquismo é bem mais elevado do que em outras cidades, o que atrapalha um pouco as percepções. Aqui as tendências são mais complicadas e, como em qualquer corte e centro de poder, o alto teor de cinismo dos interlocutores prejudica uma interlocução franca. No popular, aqui todo mundo está acostumado a encostar o bumbum na parede e tirar da reta. Numa cidade administrativa, onde a maior parte das pessoas trabalha para o governo federal ou para o governo local, dizer amém para as autoridades é muitas vezes condição de sobrevivência. Seja como for, a ativista militante chegou para arrebentar.

_Vocês viram aquela avaliação sobre o aprendizado de matemática? - disse a militante. E passou a defender com unhas e dentes as nossas crianças. De acordo com ela, nossos querubins foram extremamente mal avaliadas no último match internacional de raciocínio lógico e matemático.

_As perguntas falam de MP3, de bilhete de metrô, de ticket de trens, de horários de ônibus. Ora, as nossas crianças não vivem essa realidade, não sabem lidar com isso. Foi por isso que não souberam responder as perguntas.

Eu e os outros pais não-alinhados apenas nos olhamos. O não-alinhamento, como todo mundo sabe, consiste em não ficar ao lado do que é repulsivo e ofensivo ao bom-senso e aos bons costumes nos dias de hoje. Há também quem seja mais tolerante e flexível, aceitando como não-alinhado todo aquele que não concorde em ficar de quatro e babar a cada bobagem dita pela infinidade de bacanas que ocupam posições de poder espalhadas na gigantesca máquina inoperante e sanguessuga da nossa burocracia. Mas eu não sou desses. O não-alinhado é qualquer pessoa que desconfie que está sendo enganado ou que pode vir a ser enganado pelos bacanas poderosos e também pelos coitados presumidos, que são tão enganadores quanto os poderosos. Ou seja, o nível de paranóia entre os não-alinhados é bem elevado, mas é bem melhor do que o nebulímico estupor bajulatório em que se encontra uma porção de gente.

Nós nos olhamos e deixamos o ativista militante falar. Eles são incansáveis e irredutíveis quando encontram alguma resistência, mas se calam rapidinho quando ninguém abre o bico. Provavelmente iríamos ficar em silêncio mais tempo, mas felizmente o ônibus chegou com as crianças e toda aquela coisa sem sentido foi esquecida rapidamente.

terça-feira, 1 de abril de 2014

Não existe fada dos dentes

Estávamos conversando como sempre fazemos durante o jantar. Todo mundo falando ao mesmo tempo e com pressa para contar a história primeiro. De alguma maneira, alguém sempre consegue prevalecer e em geral todos protagonizam uma fala pelo menos uma vez, mas é sempre uma algazarra. Já tentei impor alguma ordem na balbúrdia, mas isso foi interpretado como abuso da autoridade paterna, então não me meto a besta de querer ordenar a coisa. Trato de esperar um pouco para encaixar a minha voz numa das pausas para respiração de alguém e também eu contar a minha história. O que eu sei é que já haviam sido repassados pelo menos três assuntos, sendo o principal deles a queixa do meu filho quanto à acusação infundada, feita por mim, de que estaria trancado no banheiro fingindo tomar banho enquanto jogava video-game com o Ipad.

_Não é verdade! - ele disse. Eu estava fazendo o número dois e aproveitei o tempo livre para jogar um pouquinho.

_Por quê você sempre arruma um jeito de falar de número dois na hora da refeição? - disse a minha mulher.

_E por quê o chuveiro estava ligado? - eu disse.

_Eu tinha acabado de terminar de jogar e ligado o chuveiro - ele disse.

_Não colou - eu disse.

_É preciso acreditar no que ele está dizendo - disse a minha mulher.

_É, paiê, é preciso acreditar - disse a minha filha.

_Viu? - disse o meu filho.

_Por quê eu estou sempre em minoria total e absoluta? - eu disse, mas ninguém ouviu.

Eles agora falavam sobre o que tinha acontecido na escola e fora de casa. E meu filho contava que outro dente-de-leite tinha finalmente caído. Foi o pretexto para uma nova balbúrdia com uma disputa de assuntos e temas correlatos, com todo mundo aumentando o tom de voz e querendo falar mais do que o vizinho. Mas bem no meio, de repente, exatamente quando o alarido tinha chegado ao ápice, veio o silêncio.

_O quê? - disse a minha filha.

_Não existe Fada dos Dentes, filha - disse a minha mulher.

_Como assim? - disse a menina.

_Não existe Papai-Noel, não existe Coelhinho da Páscoa e não existe Fada dos Dentes, filha. Você sabe disso. Já conversamos. E você tem nove anos - disse a minha mulher.

Subitamente eu tive certeza absoluta de que se eu tivesse dito a mesma coisa trinta segundos antes eu teria levado pelo menos uns cinco chutes na canela e um beliscão. No mínimo. Mas agora minha mulher olhava para mim como quem busca solidariedade, eu não poderia deixá-la na mão. Mas confesso que curti durante alguns segundos ver aquele ar de "putz, dei mancada" no rosto de outra pessoa. Em geral, as mancadas são todas minhas.

_Fantasma, assombração, mula sem-cabeça, saci, nada disso existe, filha. Papai Noel não existe, mas existe o Espírito de Natal, que é acreditar e ter esperança de que as coisas boas aconteçam. Quando acontecem, as coisas boas são transformadoras e maravilhosas, deixam as ruins no chinelo - eu disse.

Ela parou de choramingar por um instante e depois voltou.

_O Coelhinho também não existe, mas o Espírito da Páscoa está aí, está bem próximo. Eu aprendi que Páscoa significa passagem. A origem da palavra está ligada à história da fuga dos judeus escravizados do Egito, que passaram pelo meio do Mar Vermelho nessa época do ano. Então, para os judeus, a Páscoa significa a passagem para a liberdade, para um tempo de felicidade. Para os cristãos, a Páscoa é a ressurreição de Cristo, é o renascimento da esperança de uma vida melhor...

_E onde entra o chocolate? - disse o meu filho.


_Os judeus faziam chocolate no Egito? - disse a minha filha.


_Não, sua boba, os judeus comiam coelhos, eu vi na TV - disse o meu filho.


_Eles comiam coelhos de chocolate? - disse a menina.

Em alguns segundos eu levaria mais um chute na canela.

Frase do dia