sábado, 27 de outubro de 2007

A indesejada das gentes




Quando a indesejada das gentes chegar/ Talvez eu tenha medo./Talvez eu sorria, ou diga: - o meu dia foi bom pode descer.(poema Consoada de Manuel Bandeira)


A morte mais bonita que eu já vi no cinema foi a Jessica Lange, em “All That Jazz”, filme dirigido por Bob Fosse em 1979, e apelidado no Brasil de “O Show deve continuar” (Deve sim, mas poderiam ter inventado um nome melhor). Jéssica fazia o papel de morte e cantava sedutoramente o dançarino/coreógrafo que vivia o personagem principal. “Está na hora. Agora vamos”, ela diz, quase no final, com um lindo sorriso. E dava vontade de levantar da poltrona e ir embora com ela. Jéssica Lange personificou uma morte belíssima, charmosa, sensual e até alegre. No telão do cinema, era alguém a quem você se entregaria, se não de alma, pelo menos de corpo.
Depois disso, não lembro de ter visto morte bonita no cinema. Fizeram um filme com o Brad Pitt, em que ele encarnava a “indesejada das gentes”. Morte masculina. Rum. E ele ainda traçava uma belezura antes de rebocar o Antônio “Silêncio dos Inocentes” Hopkins para o além, o além. Lembrei também de ter visto “Uma Janela para o Céu”, em diferentes versões. Em todas não existe morte personificada, mas uma espécie de mensageiro/mordomo que vai levar o personagem para cima, num lugar azul e branco cheio de nuvens, ou para baixo, lugar enfumaçado com chamas e muito vermelho.
Aí eu comecei a pensar na minha própria morte. Em como ela seria se fosse personificada. Na verdade, de tanto pensar em como ela seria foi que a vi, em pé, quietinha, os braços esticados colados ao corpo nu, no canto do meu quarto. Estava bem ali, meio espremida entre a estante, o criado-mudo e a parede. Era rápida como uma sombra e não me deixava ver o rosto. Ficava mexendo os cabelos, ou melhor, os cabelos se mexiam como cobras, pequenas serpentes escuras. Olhei melhor e percebi que eram mesmo serpentes. Uma quase me acertou o bote. Cada serpente soltava uma risadinha que parecia uma guitarra com delay.
A minha morte era do tipo calada, que evitava olhares diretos. Tinha calos nos joelhos de tanto me observar em minhas quedas nas sarjetas. E usava um par de óculos escuros e estranhos. A minha morte, com dentes de agulha, haveria de costurar vermes em minhas entranhas. Tinha as cicatrizes enormes dos corações despedaçados. A minha morte, e já a enganei muitas vezes, estava mais esperta, usava um anel esquisito. Tinha as olheiras das noites insones, dos exames dos fracassados. A minha morte não tinha cheiro de coisa alguma que eu conhecia. E esse odor estrangeiro me tresandava a medo. A minha morte tinha um terço entre os dedos e agora jogava dados contra as minhas vontades.
Percebi, pelo tom solene, que eu não a enganaria. Percebi, pelas tentativas de ritmos sem rimas, que ela sairia daquele canto e que eu estaria perdido. Percebi, portanto, que a minha morte não tinha vindo fazer só uma visita. E nem era hora para aquilo. Aliás, já devia ser tarde para baralho. Cadê aquela coisa? E senti seu bafo cálido na ponta do lóbulo esquerdo.
Belisquei o braço. Se eu estivesse dormindo, nessa hora eu acordaria. Mas não senti nada, só um gemido abafado. Belisquei de novo. E aí a patroa gemeu alto e me acertou uma cotovelada, com força. Com a cabeça no travesseiro, eu lembrei do poema do Bandeira. Tenho de parar de ler poesia antes de ir dormir.
A segunda morte mais bonita que vi no cinema foi a da Sigourney Weaver, em Alien 4...

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