terça-feira, 16 de outubro de 2007

Um til de porta

Eu não achava a menor graça em histórias de crianças. As mães e os pais orgulhosos que se vangloriavam dos ditos e feitos de seus moleques eram por mim relegados ao esquecimento. Eu desprezava os atores mirins, achava ridículos os meninos dançarinos, os pequenos prodígios que apareciam na televisão e no cinema. E achava também uma tremenda babaquice os pais desses meninos e meninas permitirem que fossem explorados em seus talentos.
Hoje penso de forma diferente. Fico bobo de ouvir sobre os prodígios da meninada alheia, me amarro em ver artista mirim e parei de recriminar os pais desses meninos e meninas. Não acho que eles são mais felizes ou infelizes que outros meninos. Não tenho a menor idéia sobre o que faria se tivesse um filho ou uma filha prodígio. E parei de ter opinião formada sobre esse e um monte de assuntos.
Depois dessa introdução, peço desculpas para contar uma história sobre o meu filho, que está com menos de cinco anos. Sou meio metido a ler histórias para ele e também gosto de incentivá-lo a desenhar. Ele aprende rápido, mas é difícil segurá-lo na frente de um papel por mais de 15 minutos. Com um laptop já é diferente. Posso ficar uma hora que ele prestará atenção. Se tiver Internet, duplico esse tempo de atenção. Pois já faz algum tempo que estou repisando as letras do nome dele. E ele aprendeu todas, inclusive o til. Volta e meia ele tenta rabiscar o próprio nome, mas a letra ainda é muito trêmula e a forma é mais uma intenção do que fato. Entretanto, posso utilizar o tipo de letra que eu quiser que ele reconhecerá as letras e as colocará na ordem certa para formar o próprio nome.
Estou realmente orgulhoso desse aprendizado rápido, pois não devo ter insistido mais do que uma semana com essa história. E até me assombra um pouco a dedicação com que ele pega uma caneta hidrocor e procura um espaço para escrever o nome. É bem verdade que esse espaço muitas vezes não é apropriado. Ele gosta das paredes, do sofá, da tela da tv e da mesa branca do computador. Eu evito correr atrás dele para uma palmada, como lembro da minha mãe ter feito. Não tomo a caneta, como também lembro de ter ocorrido comigo. E também não dou bronca, nem puxo a orelha. Só explico que o sofá está estragado e sujo. Que a parede terá de ser lavada e, talvez, repintada. E que agora ele terá de se acostumar a ver desenhos entre as letras e rabiscos da tela da tv.
Ele compreende. Mas também sugere suas próprias soluções. A começar pela substituição do item estragado pela tinta da caneta hidrocor.
_Ah pai, a gente compra outra parede.
_Ah pai, a gente compra outro sofá.
_Ah pai, a gente compra outra tevelisão(que é como ele fala tv).
Eu também explico que isso, se acontecer, só poderá ser feito assim que eu tiver muito dinheiro, o que deverá demorar um século, ou dois. E é bom, porque assim explico o que é século, lustro, biênio. Explico o que é dinheiro. Explico como é difícil ganhar dinheiro. Explico que dinheiro não dá em vídeo game. Explico que nem se você brigar na rua vão aparecer moedinhas para pegar. Pais têm que ser criativos na educação dos moleques, no enriquecimento do vocabulário. E assim vou levando, até o dia em que ele surge com uma novidade:
_Pai, a gente compra outra porta de carro...?
Esperto como eu sou, percebi logo a similaridade da construção frasal. Pensei com meus botões que mancha de caneta hidrocor deveria sair com alguma coisa. E já fazia uma retrospectiva mental para encontrar o melhor removedor de tinta quando ele terminou a pergunta:
_... azul?
Sundown. Eu lembrei. Aquele protetor solar remove até mancha de piche, que dirá uma simples...Azul. Peraí. Peraí.
_Filhote, o carro do papai é cinza.
_Eu sei. Mas a gente compra outra porta de carro azul?
E dois minutos depois, nós olhávamos para o carro azul importado do vizinho. E lá, firme e forte, estava um longo arranhão em curva na porta do motorista. Semihelicoidal, a forma seria bela, se não significasse um prejuízo. Senti as minhas orelhas começarem a ferver, o que também me lembrou dos puxões de orelhas que já recebi.
_Mas por que você arranhou o carro?, perguntei, procurando manter a calma.
_Pai, isso não é um arranhão.
_Então o que é esse risco?
_Não é risco. É um til.
_Um til?!
_Um til de porta.
Vou procurar ajuda profissional, pois num breve relance pelas portas dos carros na garagem, percebi que meu filho já domina o alfabeto.

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