quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Perus selvagens passeiam


Eu costumava me sentir indignado quando os americanos me perguntavam se era verdade que os macacos e as onças criavam problemas demais em nossas cidades.
_Os macacos não atacam as pessoas?
_Não, os macacos são muito mansos. Nós os treinamos para fazer cafuné nos turistas americanos. Alguns deles só aceitam gorjetas em dólar. Mas agora o euro está mais forte...
_E as onças, como vocês fazem para fugir?
_Não há perigo. As onças só aparecem em dias de liquidação nos shoppings, ou em carros de jogadores de futebol. É muito raro e até considerado de mau gosto andar com uma onça por aí.
Eu ficava chateado quando os gringos, falo sério, perguntavam sobre os jacarés em nossas ruas.
_Mas eles não impedem o trânsito de pedestres?
_Oh não, as pessoas andam com rifles. O primeiro a acertar um jacaré tem o direito de levá-lo para casa. Nós comemos a carne e o couro é usado em sapatos para exportação.
Eu ficava fulo da vida quando os caras da terra do Tio Sam queriam saber sobre os perigos da selva. Os sujeitos que achavam que da janela de casa eu via o desmatamento da floresta amazônica me irritavam.
_Vocês não fazem nada para acabar com isso?
_Sim, é claro. Todos fazemos. É uma questão de conscientização. Lá em casa só usamos a serra elétrica aos sábados, e assim mesmo só quando fazemos um churrasco de turista, você sabe, “a tourist barbecue”. Sem carvão, não há churrascão.

Também havia os que supunham, erroneamente, que eu ou alguém da minha família era pessoalmente responsável pela extinção dos botos cor-de-rosa. Eu não desmentia nada. Ao contrário, ajudava a aumentar a fantasia.
_Sim, tenho muitas saudades do meu último boto cor-de-rosa. Criei o bicho desde que era do tamanho de um iguana. Eu teria comido ele, assado, com um abacaxi na boca, mas ele preferiu tentar a sorte num aquário em Chicago. A última vez que tive notícias, ele estava em Tijuana para tentar atravessar a fronteira com um grupo de Governador Valadares. Me mandou uma garrafa de tequila. Nunca pude pegar, por causa da taxa de importação dos correios.
Mas não eram nada tolos, os americanos. Uma vez disse para um gringo que no quintal de casa havia sido encontrada uma ossada do pássaro Dodô. Ele não acreditou.
_Os Dodôs foram extintos por causa do dia de ação de graças, seu imbecil. Não deu tempo deles chegarem à América do Sul.
_Não seja bobo, um casal deles escapou no mesmo barco do marido de Pocahontas. Aliás, cientistas brasileiros já conseguiram ver alguns Dodôs vivos, na Amazônia, com a ajuda do Google Earth, eu disse.
_Aposto como era somente um bando de araras, continuou o gringo, ainda cético.
_Duvido, as últimas araras foram vendidas para um banco de DNA na Europa. Agora elas só poderão ser vendidas se houver pagamento de royalties.
_Well done.
Eu disputava papaias com preguiças, no meu quintal. Se chovesse forte meu banheiro se tornaria um refúgio de capivaras e estranhos tipos de rãs, ainda não catalogadas pela ciência. Aranhas caranguejeiras e pedaços de jibóias também faziam parte do meu cardápio. Insetos do tamanho de tacos de beisebol eram comuns em nossos pântanos. Só conheci sapatos nos EUA. Abandonamos o canibalismo, definitivamente, depois da copa do mundo de 1970. Pelé foi um dos nossos melhores presidentes. Carmem Miranda, além de cantora, também era uma de nossas santas milagreiras. Nós usamos fósforos para acender fogo, mas preferimos fazer faíscas com pedrinhas. Alguns de nós dominam a escrita, usamos conchinhas ou trocamos mercadorias por cocos e bananas. E sim, nós falamos espanhol, mas de um jeito que só os portugueses entendem.

Hoje, não. Não ligo a mínima. Eu simplesmente invejo as aves selvagens que caminham tranqüilamente pelas cidades do primeiro mundo.


24/10/2007
http://www.uol.com.br/ - Perus selvagens são vistos com freqüência em áreas urbanas de Massachusetts (EUA); as aves, que podem pesar até 9 quilos e chegar a 1,21 m de
altura, provocam medo em moradores de Boston, Cambridge e Brookline.

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