sábado, 30 de agosto de 2008
Sem baixas
Eu demoro a conseguir contar as coisas. Eu me enrolo muito para contar as coisas. Dou voltas e pulos e sobressaltos para contar as coisas. E meu filho é igual a mim.E hoje, neste sábado, eu fui pegá-lo na hora do almoço, na casa de um amigo. Eu ando antenado, ultimamente. Fico ligado nas vibrações. Fico procurando pelo em ovo. E com isso acho que percebo que alguma coisa está errada. Hoje, ao chegar na casa do amigo do meu filho, eu percebi que havia alguma coisa errada. Um silêncio grande demais. Meninos de cinco anos fazem muito barulho. A não ser que estejam perto de videogame. Não existe nada mais silencioso que menino com videogame. Os videogames é que são barulhentos. Mas não era o caso. Não havia barulho de videogame em lugar nenhum. Ainda no portão, vi o meu filho e o amigo se aproximando. Meu coração parou de dar pulos no peito. O meu sentido de alerta começou a emitir sinais de tranqüilidade.
Tem hora em que eu imagino que tenho um olho de scanner computadorizado. Com um mero piscar de olho eu faço um close e escrutino o alvo. Num instante, meu olhar já havia renderizado o meu filho em três dimensões e não havia nada de errado com ele. Ainda assim, percebi que havia alguma coisa estranha no ar.
_E aí, filhote? Tudo beleza? – eu perguntei. Às vezes eu acho que estou vivendo um filme da década de setenta, quando eu era menino como as minhas crianças.
_Tudo OK – ele respondeu. Acho legal ele falar OK. Zero Killed. Sem baixas. A gíria que se espalhou pelo mundo inteiro depois da primeira guerra mundial.
E num instante a mãe do amigo do meu filho já chegou, com a mochila do meu filho na mão. Ela estava com pressa, a moça. Foi gentil e tudo, mas estava com pressa de que eu fosse embora. Eu sou paranóico. Eu sou estressado. Eu antecipo problemas. Eu sou exagerado.Eu tenho um monte de defeitos. E eu sei entender quando estão com pressa. Especialmente quando as pessoas estendem a bochecha para se despedir e vão, delicadamente, colocando a gente para “fuera”. “Tranquilla, senora, jo soy tranquillo”, eu pensei. E no meio das despedidas rápidas ouvi meu filho falar alguma coisa sobre vidro quebrado. Meu sentido de alerta emitiu sinais fortes. Puxei o assunto, com jeitinho.
_ Ele quebrou alguma coisa? Por favor, se ele provocou algum prejuízo teria o maior prazer em ressarcir imediatamente. Gostaria muito que você não fizesse cerimônia com isso e me dissesse, na lata, o que foi quebrado e como eu poderia diminuir o dissabor provocado...
E por aí afora. Quando eu fico preocupado ou eu emudeço ou dano a falar que nem o homem da cobra. Acho que falei uns três parágrafos médios e ainda falaria mais se a moça mãe do amigo do meu filho não tivesse me atalhado.
_Não, deixa disso, assim você me ofende – a moça falou.
E aí eu disse mais uns dois ou três parágrafos de “veja bem” e “não se trata disso”, mas ela estava mesmo com pressa, me guiou até o carro, me ajudou a colocar o filhote na cadeirinha de criança e até bateu, de leve, a minha porta do carro. Talvez tenha batido antes que eu estivesse realmente sentado, mas a intenção foi boa. E no caminho de volta para casa, descobri, com tristeza, que meu filho havia deixado um vaso de vidro cair. Depois, com um pouco mais de conversa, descortinei, para meu horror, que ao invés de acidental, a queda do vaso de vidro havia sido proposital. Ou seja, o filhote havia jogado o vaso no chão. Com um pouco mais de conversa, percebi que ele havia destruído o vaso alheio depois de brigar, a socos e pontapés, com o amigo. E com outro pouco mais de conversa, entendi que ele voltou a brigar mesmo depois da briga ter sido apartada e dada como encerrada pela juíza, mãe do amigo. E com um pouco mais de conversa, comecei a desconfiar que alguma coisa do videogame havia sido quebrada. E conversa vai, conversa vem, confirmei as minhas suspeitas. Um disco de videogame foi efetivamente quebrado. E meu filho disse que foi a mãe do amigo. Não consegui entender o motivo.
Repassando a conversa, várias vezes, ficou claro que;
1. os dois jogavam videogame;
2. os dois brigaram por causa do videogame;
3. a briga foi apartada e dada como acabada, sem vitorioso;
4. insatisfeito com o resultado, meu filho retomou os ataques;
5. novo aparte e encerramento veemente, com o juiz perdendo as estribeiras e quebrando um disco de videogame em meio a ameaças obscuras;
6. em retaliação, meu filho vai até onde existe um vaso bonito, de vidro, e o atira no chão;
7. a juíza escuta o barulho e corre até onde está o meu filho e, felizmente, o pestinha não está ferido;
8. todas as providências são tomadas para que ninguém se machuque;
9. as crianças são instruídas a manter distância uma da outra;
10. eu buzino na chegada e todos sorriem amarelo ao me ver.
Bom, eu e a Patroa vamos conversar sobre o assunto e decidir o que fazer. Acho que o melhor é evitar que ele fique sem supervisão materna ou paterna por um tempinho. Coisa de dois ou três anos. Expliquei para ele, ainda no carro, que não é legal destruir as coisas dos outros. Também expliquei que a maioria dos acidentes é desculpável. Mas quando destruímos, de propósito, as coisas dos outros, é muito difícil sermos perdoados. E depois, em silêncio, eu fiquei pensando na montanha de prejuízos, no Everest de perdas e danos que a gente acumula na vida.
E depois pensei que as minhas conversas de adulto mais profundas são com o meu filho de cinco anos.
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4 comentários:
Confesso que acho legítima a idéia do pequeno. Sei que é difícil sermos perdoados no caso de vingança. Mas em qualquer idade, infelizmente,a gente sempre tem esse comichão de dar o troco. Ela correu o risco quando tomou a atitude infantil de quebrar o disco.Acho que a visita acabou empatada.E ela (a juíza) também deve ter aprendido alguma coisa.
Obs.: também confesso que caí na risada quando li sobre o vaso bonito de vidro jogado no chão.
abração
Uai, ainda não tive chance de conversar com a moça mãe do amigo do meu filho. Mas acho que ela fez uma aposta alta demais e aí teve que manter o blefe e quebrar o disco. De qualquer modo, não deu certo. Um abração,
Careca,
Seu filho é normal!!!
Mwho, é verdade, isso também me deixa espantado! Eu achava que a minha influência seria nefasta demais, mas ainda bem que sou super insignificante.
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