sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Nem foi tempo perdido



Eu lembro de chegar na universidade de carona. De ir embora de carona. Eu lembro de pegar carona o tempo todo. E lembro do ponto de carona da universidade. Eu ainda tenho umas canetas nanquim, que eu comprei em São Paulo, depois de uma viagem difícil e complicada. Mas nessa eu não fui de carona.

Eu me lembro de esperar as coisas acontecer. E de ficar irritado com as coisas. Que não aconteciam. Eu lembro também que demorei a perceber as coisas direito. Demorei a sacar que ninguém tinha o poder de fazer nada acontecer para mim. E lembro também de achar um horror quando alguém vinha dar palpite. Eu não queria palpite. Eu queria só receber as coisas prontas, do jeito certinho para mim. Sem fazer nada. E aí um dia eu percebi que eu é que tinha que fazer as coisas acontecerem. E não faz muito tempo, tem o quê?, cara, isso parece que foi ontem.

Eu me lembro do tempo em que os portões do Parque da Cidade eram fechados depois das 11 horas da noite. Eu lembro de quando a gente podia andar de uma quadra para outra sem encontrar ninguém e sem ver um único automóvel passar.

Eu lembro de uma vez, quando eu descia uma rua e olhei para o lado e todas as meninas do ballet levantaram as pernas ao mesmo tempo. E que foi por isso que eu amassei o pára-choque de um carro velho, um fusca cinza, de um PM. E eu lembro que foi ali, na Rua da Igrejinha, bem no início, logo depois do balão, que eu vi um dos meus primeiros salários virar um pára-choque de fusca velho. Ainda bem que o cara aceitou dividir em três vezes. E eu adorava aquele emprego. E eu trabalhava trocentas horas semanais.

E eu lembro de olhar para a Academia de Ballet e ver todas as meninas e mocinhas fazer plié, rindo da minha falta de sorte detrás do vidro, com suas saias de tule branco. E uma das meninas eu conhecia muito bem, mas ela já não me amava mais. Hoje sou incapaz de me lembrar do rosto dela, só lembro do nome inteiro, completo. E eu me lembro quando ela me disse que eu era de outro mundo. Logo eu. Um alienígena. Ela é que era pirada, isso sim. Onde já se viu ser bailarina num país como esse? E um dia eu soube que ela dançou em companhias de toda a Europa. Que também fez cinema, teatro e TV na França, na Bélgica e no Canadá. E que mora em Paris, nunca mais vai voltar. E que até esqueceu o português. Que importa? Se eu a encontrasse amanhã, no meio da rua, eu nem a reconheceria. E se a reconhecesse, o que eu, um saturnino, diria para uma terráquea? Rá!Rá! Mas eu lembro que foi o adeus mais triste. Não. Teve um outro adeus ainda mais triste.

Eu lembro das árvores da superquadra que tinham sido plantadas e estavam cercadas por telas de arame. Eu lembro do hino da última escola pública onde eu estudei. Eu não lembro do hino da escola particular onde eu estudei um ano depois.

Eu lembro de um monte de coisa que ninguém gosta de lembrar. Eu lembro do monte de vexames que eu dei. Das minhas pisadas de bola. Dos micos que eu vivia pagando só por ser teimoso, só por achar que era eu e só eu que tinha razão. Lembro de rir de quem abaixava a cabeça. Lembro de levar na cabeça. Lembro de ter sido enganado um monte de vezes. E de ter enganado até a mim mesmo, ao dizer que isso não tinha nada a ver comigo ou com a minha maneira de ser. Lembro de quando caiu a ficha e eu percebi que eu teria que ser mais franco comigo mesmo, se quisesse que os outros também fossem francos comigo. E isso foi ontem. Foi ontem. E eu lamento ter perdido tanto tempo.

6 comentários:

Mwho disse...

Careca,
Não existe tempo perdido...
O tempo é sempre presente!
Abraço,
Mwho

leila disse...

caraca careca!!você é capricornio ou touro?

Careca disse...

Mwho, eu não sei o que você anda tomando em casa, bicho, mas esse treco é muito forte! Tem tempo perdido, sim. Tem ontem. Tem amanhã. Tem depois de amanhã. Tem sempre. Tem nunca. Tem um monte de tempo. Abç,

Careca disse...

Leila, eu sou do último dia de libra, quase escorpião. Mas a Patroa às vezes diz que eu sou uma Anta, e, quase sempre, sou obrigado a concordar... Abç,:)

Anônimo disse...

Muito bom texto, Careca, mas me deixou melancólica ao pensar nessas coisas! E eu acho que, nessa vida, a gente perde muito mais energia do que tempo... E com cada coisa besta, cruz credo! Abraços!

Careca disse...

Janaína, fica triste não,
:)

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