quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Fio dental antes de dormir



Ultimamente tenho sido assombrado por algumas lembranças de infância. Isso deve ter algum significado profundo. Mas como eu sou um dos caras mais superficiais que eu conheço, o significado deve ter a profundidade de um pires. Hoje eu me lembrei do meu irmão mais velho novamente. Dividimos o mesmo quarto durante uns dezoito anos, mas só agora essas lembranças começam a me assaltar. E são assaltos quase literais. É como se uma porção de minhas lembranças chegasse pé-ante-pé atrás de mim e gritasse “Mãos ao alto”! Eu dou um pulo e levanto os braços. Sou assaltado e sobressaltado o tempo inteiro por essas lembranças, não há o que fazer. Eu me rendo à gangue da memória. Eu me entrego para essas pilantras, essas trambiqueiras marginais que ficam fugindo pelas beiradas dos pensamentos.

Eu me lembrei de como o meu irmão conseguia me irritar com fio dental. É uma coisa muito higiênica, fio dental. E em casa sempre fomos incentivados a usar fio dental. Desde pequenos. E nós todos sempre fomos muito obedientes e escrupulosos quanto ao uso do fio dental. Meu irmão também. O único problema é que meu irmão usava o fio dental fora do banheiro. Todos nós, inclusive meus pais, usávamos o fio no banheiro, logo depois da escovação, de preferência de olho no espelho. Meu irmão, não. Ele saía do banheiro, já de pijamas, com aproximadamente meio metro de fio dental esticado entre as mãos, sem contar o que já havia enrolado nos dedos das mãos. Ele utilizava uns dois metros de fio por noite.

Geralmente eu já estava deitado e cochilando. De repente, eu começava a escutar aquele barulhinho. Tic. Tic. Tictéim. Tic. Téim. Tictéim. Era o meu irmão e seu fio dental. Ele usava tanto fio e esticava tão forte que aquilo produzia um extraordinário som no contato com os dentes. E a boca ajudava o som a encorpar. Téim. Era terrível. E eu tentava me controlar, mas não havia jeito. Ele ficaria a noite inteira tocando a terrível musikatz até que eu me levantasse. E eu me levantava. Nas primeiras vezes, discutimos como pessoas civilizadas. Mas desistimos dos berros porque as punições sobravam para nós dois. Depois partimos para as pequenas agressões com travesseiros. Mas rapidamente desistimos delas, porque os travesseiros destruídos não foram substituídos “para aprendermos o que é bom para a tosse”.

Eu tentei apelar para o célebre algodão no ouvido, mas aquilo me impedia de ouvir o despertador na manhã seguinte. Tentei usar o fio fora do banheiro, junto com ele, mas esse não era eu. Era ele. Tentei fazer outra coisa, palavras cruzadas, enquanto ele fiodentava. Tentei ler a Bíblia. Tentei eletrocutá-lo. Nada funcionava. Durante umas três semanas, o meu irmão realmente se divertiu ao me perceber agoniado para arrumar uma solução para aquele barulho irritante. E eu não conseguia.

Até que eu o vi sair do banheiro com um pequeno pedaço de fio dental. Durante o dia, eu sabotara todos os fios dentais que encontrei em casa. Usei um estilete para picotar os fios em vários lugares, para impedir a possibilidade de se tirar um pedaço maior do que quinze centímetros. Cortei o mal pela raiz, nos novelos. E durante uns dez dias, fiquei em paz, dormi sem escutar o Téim, Tictéim.

Mas uma noite, quando eu menos esperava, entreabri os olhos no travesseiro ao perceber a presença do meu irmão. E lá estava ele, com um enorme sorriso no rosto, sentado no colchão ortopédico. Com uma das mãos, segurava um copo. E no instante seguinte, ele começou o gargarejo.

4 comentários:

Rodrigo Carreiro disse...

Porra Careca hahahaa
Gargarejo é a pior coisa que existe. Eu odeio fio dental, parece que a pessoa vai arrancar o dente com esse "tein, tic, tictein". Horrível!

Anônimo disse...

Pergunta a você, guru Careca: seu irmão era mais peste do que você? Entendi isso nas entrelinhas. Você era um pestinha, ele uma peste bubônica... rsrsrs Abs!

Careca disse...

Rodrigo, é uma canseira, esse barulho. Outro dia fui num restaurante e no banheiro, ao lado do toalheiro, tinha um treco de fio dental. Foi lá que eu lembrei desse hábito do meu irmão...

Careca disse...

Janaína, é verdade, meu irmão é um dos maiores sacanas brincalhões que já vi! Tem um excelente senso de humor e é um gênio! Adoro ele. Um abração,

Frase do dia