segunda-feira, 21 de julho de 2008

Por dentro da bola do Niemeyer



Eu ontem não consegui escrever e postar. Eu até que escrevi. Mas achei que uma porção de palavras não constituía um post. Só consegui escrever pouco mais que a frase do título acima. Então preferi deixar passar o domingo em branco. É que ontem acabamos indo ver a fantástica exposição dos 100 anos da imigração japonesa, lá na bola do Niemeyer, na Esplanada. Chamamos o filhote, mas ele preferiu brincar com os primos. Então fomos só eu, minha filha, a Patroa, o pai da Patroa - que é nissei (como não sabe?) e uma sobrinha. É uma magnífica exposição. Objetos lindos, espadas, capacetes, palanquins, gravuras, utensílios, escrivaninhas, biombos e muitas e muitas armaduras.

Foi a primeira vez que eu entrei naquela bola.

O interior da bola do Niemeyer é interessante, você se sente como um espermatozóide sem cauda. Mas do lado de fora havia um rabo de mentira. Entramos numa fila gigantesca. Tudo que é de graça tem fila grande, já reparou? Mas eu estava tão interessado na exposição que superei a minha aversão por filas. Minha filhota também estava muito interessada. Mas bastou entrarmos para que ela quisesse sair para beber água.

E assim que eu entrei na bola, eu me senti um verme esquimó num iglu gigantesco. Se eu não estivesse com casaco, teria batido os dentes. A bola do Niemeyer, por dentro, faz você se sentir do tamanho de um cisco no olho. E o carpete amarronzado do círculo interior do piso, faz você imaginar que bate o pé na retina do gigante adormecido do Planalto Central. É o olho do seu país que se abre ali, debaixo dos seus pés. E basta olhar para cima, para a grande abóbada branca e fechada do teto, para imaginar que você está pequenino, atado ao chão, preso naquela esfera gigantesca, nas fantasias uterinas de Niemeyer.

Fiquei assim, muito tempo, bestificado por estar na barriga da baleia, no meio de mais um delírio estético de um arquiteto que plantou as coisas mais malucas do mundo no meio da terra brasilis. Do outro lado da rua, em oposição à bola, fica a pirâmide do sol, o zigurate inacabado do Teatro Nacional. Um trapézio com escamas, aquele teatro. A bola fica ao lado da Catedral, que para mim parece a coroa de espinhos do martírio, embora muitos apostem que são os dedos crispados de mãos erguidas em prece. E em seguida, vem a Esplanada e suas caixas retangulares. Parecem os CIEPs, que vieram muitos anos depois, mas com as janelas quadradas.

E depois tem os palácios, o Itamaraty mergulhado num charco pantanoso, as sereias cabeludas e um meteoro flutuam ali, entre vitórias-régias. Em frente, o Ministério da Justiça, com falsas cachoeiras, também envolto num espelho d`água. Em seguida, o Congresso, com o simbolismo do prato, do pão e de dois palitos, também mergulhados na água, antes da praça. E na Praça, de um lado, o Planalto e do outro a Justiça, com a estátua cega à frente. Hoje, o Planalto também tem um fosso de água, idéia do Collor. E o Congresso, por obra de ACM, tem espelho também à frente. É água para chafurdar à vontade.

Acho que Niemeyer nunca amou essa terra, esse cerrado. Se amou uma terra, amou o Rio, talvez Minas. Mas JK era tão gente boa que nem conseguiu perceber a ironia cortante, o desprezo incontido de Oscar pela abóboda gigantesca dos céus de Brasília. Esse horror à luz natural, que projetou uma cidade de espaços amplos e esparsos, que nos faz pequeninos, formigas envergonhadas, que precisam a todo instante se enterrar em buracos abertos no meio do planalto, se entranhar em recôncavos escuros de concreto.

Mas essas formigas adoram os canteiros e os gramados que afrontam esse sol. Aos poucos, vamos fazendo sombra, recheando de árvores os espaços abertos. Um dia, vamos conseguir preencher de abóbadas verdes o que é esparso.

Mas vai demorar. Ao sair da bola do Niemeyer procuramos um banco. Existem poucos. São retângulos de concreto grudados no chão. Duros. Desconfortáveis. Não há sombra na praça. Se chover, você não encontra abrigo. Não existe nenhum lugar por perto para tomar um café. O sanitário fica no lugar mais inacessível, no mais longínquo túnel do interior da bola. E por isso, o estacionamento cheira a urina. E lá do lado de fora, ambulantes bruxuleam no lugar, aos pés dos monumentos e dos espelhos dágua, outras bolas. Caramba! A Esplanada inteira é assim. É uma aula de geometria. É um lugar para formigas apressadas. Entre lá, corra ali, saia depressa com o seu carro ou o sol te torra. Fico imaginando o Oscar, com uma lente de aumento, fritando formigas numa maquete dessa cidade. E eu amo essa cidade. Mas pô, Oscar, que raiva você tem das formigas!

10 comentários:

Mwho disse...

O grande desafio das pessoas em Brasília é tornar habitável a alucinação criativa do Niemeyer. Cada nova obra é como um post num blog perdido no universo...

Maroto disse...

eu quase perco o CREA cada vez que digo isso, mas como não uso mesmo o benedeto, pouco me lixo - o Niemeyer nunca foi arquiteto, é um escultor que erra a escala. E erra feio.

anna disse...

talvez o bode com as formigas seja porque ele não gosta muito de sua estatura.

anna disse...

talvez o bode com as formigas seja porque ele não gosta muito de sua estatura.

Anônimo disse...

Careca, eu vou, vez ou outra, em Brasília e não consigo achar que ela seja uma cidade. Pra mim, parece uma gigantesca repartição pública. Eu estudo Geografia e em Geo Urbana, Brasília é tida como a anti-cidade. Explico: a cidade é um espaço de aglomeração de pessoas, de centralidade, lugar do encontro. Mas Brasília e suas formas, suas ruas, sua falta de bancos e de lugares onde as pessoas possam, efetivamente, se encontrar é o contrário da cidade. Um lugar em que quase não se anda a pé, praticamente, contraria o que o espírito da cidade. Claro, tem os movimentos sociais que vão protestar, mas estou falando do encontro cotidiano, de quem vive na cidade. Não sei nos bairros mais afastados, mas ali nos locais conhecidos dos turistas, a cidade não me parece cidade. E eu sou de Sampa, que é uma tremenda confusão, mas pelo menos a gente tem lugar pra encontrar os outros e anda a pé (nem todos aqui ficam parados na marginal tietê, pode acreditar). Abraços!

Careca disse...

Mwho, é mesmo um desafio, mas aí tombaram a cidade, virou patrimônio intocável. E aí colocam os monumentos no meio do nada, torrando no sol. Às vezes eu acho que o Niemeyer queria mesmo era ter feito pirâmides no Egito.

Careca disse...

Maroto, é um mito vivo e as pessoas ficam cheias de dedos. Mas foi a alegria dos fornecedores de cimento e aço (fundação em círculo consome o quádruplo), dos vendedores de lâmpadas, de quem é inimigo de padrão e baixo preço, de quem ama os bunkers, as casamatas e os subterrâneos.

Careca disse...

Anna, li em algum lugar que é fã de Napoleão, como todo baixinho.

Careca disse...

Anna, li também que ele era alvoraçado que nem o Darcy Ribeiro.

Careca disse...

Janaína, é quase isso mesmo. Existem poucos locais de juntar gente na cidade. A torre de TV é um dos mais tradicionais. Tem o Zôo, o Parque da Cidade... o resto é shopping. Nos monumentos, não tem sombra, não tem onde sentar, não tem onde comer e beber e não se pode ir ao banheiro. Você vai lá, tira uma foto e se manda. O melhor da cidade fica nas entrequadras, nos lugares pequenos, que suportam poucas pessoas. É uma cidade para experts.

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