segunda-feira, 14 de julho de 2008

“Drummond”



Teve uma época em que eu vivia dando topada com o meu dedão do pé esquerdo. Tou! Era o meu dedão, batendo numa pedra, quicando numa quina. Aliás, meu dedão era muito bom de quina. Nunca foi muito bonito esse dedão, mas sempre teve um ar meio distraído, desligado de mim. Tenho quase certeza de que meu dedão esquerdo, se tivesse nascido sozinho, seria um poeta. Daqueles, de versos esparsos, de rimas impensáveis, meio chegado a absurdos. Ou então seria açougueiro. Meu dedão do pé não é muito chegado a sutilezas. Se pudesse, seria aquele dedo que se colocaria nas feridas. Mala.

Um dia, desses sem sol e sem nuvens, que mesmo assim são nevoentos e embaçados, eu tropecei numa pedra, indo para a biblioteca da universidade. Era a única pedra numa calçada que devia ter pelo menos uns novecentos metros de comprimento. Aliás, era a única pedra que havia num raio de dois quilômetros. Como não poderia deixar de ser, meu dedão fez questão de não perder essa oportunidade única e “Tou!”, mandou-lhe uma topada! Desde aquele dia, eu chamo o meu dedão de “Drummond”.

Doía à beça, essa expertise do “Drummond”, essa habilidade de encontrar pedra doída para topar. Meu dedão era tão bom em autoflagelação que uma vez eu até perdi uma unha do pé. Fiquei um mês andando só com um sapato, o dedão de chinelo, protegido sob uma espécie de capa protetora, que não podia tocar no local da unha. Foi um mês terrível, cheio de agulhadas no dedão. Quantos anos eu tinha? Não lembro mais. Mas seguramente eu não tinha vinte anos. Eu era um jovem meio maluco, sem unha no dedão do pé, com raiva do mundo. Cara, como eu tinha raiva! Nem sei mais porque eu era tão enfezado e impaciente. Ainda bem que isso mudou. Um por cento. Talvez dois por cento. Mas mudou. Hoje já não dou tanta topada. E não perco unha do pé já tem pelo menos dez anos.

É verdade que tenho que usar diversos artifícios para impedir o “Drummond” de se machucar todo. Faço isso porque eu amo o “Drummond” como se ele fosse parte de mim mesmo. É a mais pura verdade. Embora eu saiba que o “Drummond” não ligue a mínima para o Careca que vos fala. Ele pensa que tem vida própria, desatrelada do meu pé, com sua unha encravada ordinária e exclusiva. E, por causa dessa unha encravada, às vezes, eu confesso, gostaria mesmo que ele se desatrelasse. Mas não dá para ser egoísta com o seu próprio dedão. Tenho que ser sábio e deixar ele se acomodar. As unhas passam, como diz aquele velho ditado ãhn, nórdico. Mas... eu me enrolo.

Eu uso sapatos de bico quadrado, retos, um número a mais. É mais confortável e impede o sujeito aqui de andar depressa. Ando longe de parede. Fujo de quinas. Não pulo amarelinha. Não chuto bola. Quando vejo pedra, mudo de calçada. Não fico balançando o pé. Não fico sacudindo a perna. Aliás, tenho a maior agonia de ver gente sacudindo a perna, balançando o pé. Eu procuro ficar quieto. E no cúbi (é pequeno demais para se chamar cubículo) não dá para ficar chacoalhando. Aqui em casa, então, procuro ficar ainda mais quieto que é para não enviar estímulos enganosos para as crianças.

Mas o “Drummond” é o contrário, às vezes é tão pirracento que parece o inverso daquele poeta mineiro. Ele fica se coçando para entrar numa bagunça. Emitindo falsos sinais alertas de chuva. Mas eu não acredito nele, nunca ouvi falar de dedão meteorologista. Quem sabe de chuva é o meu joelho ruim, o direito.

Fico pensando se eu não deveria ter batizado o dedão com outro nome. Talvez Rimbaud, ou Mallarmé.Bandeira. Mário Quintana. Ou poderia ter batizado com nome de poetisa. Existem algumas poetisas tão boas que o meu dedão ficaria orgulhoso de levar o nome. Hilda Hilst. Cecília Meirelles. Já imaginou? Podia ser poeta vivo, também. Mas o último poeta vivo que eu curti foi o Renato Russo. E, pô, depois que o Renato Russo morreu, minha geração perdeu a voz. Ficou sem graça, dolorida, feito o meu dedão do pé.

6 comentários:

Mwho disse...

Muito legal o texto!
Mandou bem com as metáforas!
Abração,
Mwho.

Careca disse...

Mwho, não se esqueça da pesquisa dos sapatos...

Anônimo disse...

Caraca, tô babando nesse texto até agora... Muito, muito, muuuuuuuuuuuito bom. Como pode alguém escrever assim e só ter um Fiat de leitor? Ou uma kombi??? Na minha nada modesta opinião, deixa o Drummond como nome. Se seu instinto botou como primeiro nome o Drummond, confie nele. Se quiser mesmo mudar alguma coisa, arruma um sobrenome para esse ente de vida própria que habita seu pé, e gruda no Drummond... rsrs Abração!

Careca disse...

Janaína, muito obrigado, mas desse jeito você estraga o Drummond! Ele já era todo metido, mas depois dos seus elogios já começou a querer palmilha importada, talco europeu, pedicure exclusiva...

Anônimo disse...

Ah, mas o Drummond merece essas frescurites todas, vai! Deixa de ser ruim com o pobre, ou ele se revolta e começa a querer tropeçar em meio-fio... Imagine, pedra é uma aqui, outra acolá, mas quantos quilômetros de meio-fio ele não encontra pelo caminho? Meu conselho é: atenda as exigências! rsrsrs Abração!

Careca disse...

Janaína, acabo atendendo. Abração,

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