quinta-feira, 26 de junho de 2008

Traz colchão pra mim




Algumas histórias costumam nos acompanhar o resto da vida. De alguma forma elas se tornam emblemáticas, como se virassem uma espécie de retrato da gente, com legenda e tudo. Enquanto história emblemática, ela é capaz de revelar, em poucas palavras, toda a nossa personalidade, nossos pontos fortes e fracos, os cacoetes e obsessões.

Tem gente que tem história triste. Tem gente que tem história alegre. Tem gente que tem história dramática. Tem gente que é gente boa, mas mente. Tem gente que tem história ridícula. Eu sou desses últimos.

Na casa dos meus pais, junto aos meus irmãos, todo mundo tem a mesma história emblemática sobre o Careca na cabeça. Todos se lembram e gostam de contar, para minha vergonha, sobre o dia em que subi num pé de goiaba junto com os muitos primos e primas, e não consegui descer. Como a chuva estava chegando e prometia ser forte, eu me desesperei e comecei a berrar para que colocassem colchões no chão.

_Traz colchão pra mim! Traz colchão pra mim!

E não me lembro se trouxeram mesmo os colchões e nem se fizeram uma pilha de espuma para que eu pulasse. Não lembro. Mas lembro de me agarrar ao tronco da árvore com força, as unhas se enterrando na casca da goiabeira. Lembro de sentir medo de cair e de chorar, minhas lágrimas ajudando a tornar o galho mais escorregadio. Lembro de sentir aquele cheiro forte de terra e chuva e de goiabas verdes, maduras e muito maduras. Lembro do ruído forte do vento, do barulho de pancada na lata que a chuva fazia no telhado de um galinheiro. Lembro de ver as galinhas encolhidas, coitadas, dentro do galinheiro, do alto do pé de goiaba.

E lembro de que eu só subi naquela goiabeira uma única outra vez, anos e anos depois. Acho que não existe mais nem o cotoco daquela árvore magnífica. Sei que até hoje não gosto muito de goiaba, é apenas a décima na minha lista de frutas preferidas, como eu escrevi aqui mesmo, no dia 19 de junho. E eu até colocaria tamarindo no lugar de goiaba, mas é cada vez mais difícil (e caro) encontrar tamarindo.

Nos supermercados, eles colocam tamarindo junto com nêsperas, tâmaras e damasco importado de Damasco, a cidade que Lawrence da Arábia conquistou depois de atravessar o deserto.

O que me traz de volta à história emblemática. Por mais que eu me envergonhe, acho realmente que essa é uma história que traz a minha careca legendada em prosa e verso. Sou eu mesmo que me penduro no último ramo da árvore porque vi uma goiaba de dar água na boca. Esse sou bem eu, um cara com um olho maior do que a barriga. E sou eu mesmo que me enrolo todo e depois quase entro em desespero para me desenroscar.

Eu me sinto especialmente enrolado quando alguém me coloca pra cima, me elogia de coração aberto, como alguns de vocês fizeram hoje por causa da história do livro do meu filho. É verdade, eu não sei lidar com elogio. Eu agradeço, de coração, mas acho que fica faltando alguma coisa. Eu me sinto o rei da goiabeira escorreguenta, e, ao mesmo tempo, fico olhando para todo lado, vigiando pra ver se vem chuva, se eu vou escorregar.

Viu? Acho que a tal história da goiabeira é mesmo emblemática. Eu começo a divagar, vou subindo, subindo, subindo, e só quando estou lá em cima, quando é tarde demais, é que eu começo a pensar numa saída, num jeito de descer sem me machucar. Mas quase sempre é tarde demais e eu tenho que pedir socorro.

_Traz colchão pra mim! Traz colchão pra mim!

9 comentários:

Careca disse...

Berto, yeah!

Maroto disse...

e o pagamento, cadê? A gente só elogiou porque disseram que ia rolar uma grana, pô!

Anônimo disse...

Ah, Careca, muito bom que você vá atrás da suculenta goiaba e depois pense em como vai descer. Melhor do que ficar lá embaixo, salivando por ela e com medo de subir por não saber descer, não acha? Além disso, você deve ser legal demais da conta e sempre tem alguém pra arrumar um colchão pra você, né não? rsrsrs Sobre o comentário dos artistas importados virem pra cá só no fim da carreira, é isso mesmo. Somos tratados como mercado de reserva. Primeiro, ganham dinheiro lá na origem. É deixam a gente aqui, só na saudade. Quando lá não rende mais porque enjoaram, eles descem, e encontram a gente aqui, cheios de vontade de apreciá-los. Igual tecnologia, estamos sempre comprando tecnologia atrasada, que não vende muito bem mais lá fora. Capitalismo é isso aí. Abração!

Anônimo disse...

Esse post me lembrou aquela música do John Lennon - Working Class Hero. Ninguém nos quer mais inteligente, nem mais burro do que a média. O mundo faz um esforço enorme para nos espremer na faixa da mediocridade: “They hate you if you’re clever and they despise a fool”. Melhor ser odiado,né?
Em tempo: maluquice se escreve assim!
E a versão do Green Day dessa música é muito legal.
Um abraço
Tina

Careca disse...

Maroto, vai ter que ser em pré-datado para 30 de fevereiro de ano bissexto...

Careca disse...

Janaína, a única esperança é a Alemanha. Se ela não resistir aos acordos com a China, que sempre exige transferência tecnológica, o mundo estará perdido...

Careca disse...

Tina, vou colocar a versão na Rádio. Confira depois.

Mwho disse...

Careca,
Acho que a visão que a gente constrói de nós mesmos é muito diferente da realidade que os outros enxergam...
Bom é sentir o que os outros pensam da gente para usar isso como um espelho.
Esse processo pode ser desconcertante!
Abraço,

Careca disse...

Mwho, a comparação da auto-imagem com a visão dos outros é mesmo desconcertante. Com o "Esfarelando", seu blog, tenho certeza de que já começou a sentir isso...

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