quarta-feira, 30 de abril de 2008

O mistério dos sumiços daqui de casa



Havia uma loja de bicicletas no comércio perto de casa. Era muito providencial. Os caras cobravam barato e faziam um serviço de primeira. As bicicletas dos meninos, apesar de novas, estavam sempre com um freio falhando, uma rodinha que não firmava, um pedal que cismava de rachar. Então eu devo ter ido lá umas quatro vezes no ano passado e outras duas neste ano. As duas desse ano foram dois pneus furados. Pois a loja sumiu de repente. Só notei ontem, depois de procurar inutilmente pelo kit de remendos. Não achei e aí fui procurar a loja-oficina. Foi chato porque eu fui andando e carreguei uma bicicleta à toa. Aí tive que voltar, pegar o carro e levar para outra loja não tão boa de bicicletas, que é mais longe. Quando eu era menino, se as coisas sumissem de repente , dizia-se que era coisa de saci. Ah, se eu pego esse saci!
Eu perco tudo aqui em casa. E no mesmo dia em que eu acho as coisas, elas desaparecem misteriosamente, logo depois. Se procurar bem, em algum lugar deve haver uns trinta e três kits de remendos para bicicleta: tubo de papelão, tampa de lixa, cola para borracha e borracha para remendo. Perto de cada um desses kits deve haver uma mini-bomba de bicicleta. Pequenas e eficientes. Elas sumiram há tempos. Eu comprava um kit e uma bomba e eles sumiam. Comprava outros kits e bombas, e eles sumiam. Comprava e sumia. Aí, uma vez, no supermercado, a Patroa perguntou se eu estava iniciando uma outra coleção. Então eu parei de comprar. A Patroa é muito cruel com as minhas coleções. Ah, se eu pego esse saci!
De vez em quando, coisa rara, eu avistava uma coisa parecida com essas bombas de bicicleta no canto da estante, numa prateleira mais alta. Como não ia checar imediatamente, quando voltava a pensar nisso, a coisa já tinha sumido. Mas, depois que isso aconteceu umas vinte e sete vezes eu considerei um absurdo esperar pelo acaso. Então eu assumi o compromisso mental de checar a veracidade assim que o espectro ectoplasmático de uma bomba de bicicleta se manifestasse nas proximidades.
É lógico que assim que assumi esse compromisso, as manifestações ectoplasmáticas cessaram. Então eu comecei a reparar em outros sumiços cotidianos. Os livros que eu começo a ler, por exemplo. Eu devo ser um campeão mundial de começar livros. Já comecei a ler uns vinte livros neste ano. Eu começo o livro, aí acontece alguma coisa com um dos meninos. Eu paro de ler. Ponho o marcador de página no livro. Levanto e vou ver o que eu posso fazer. Em geral, posso fazer muito pouco, mas às vezes é importante fazer um carinho numa perna machucada, dar um beijo numa unha, essas coisas. Aí eu volto e cadê o livro? É batata. Sumiu. Escafedeu. Desapareceu sem deixar vestígios. Aí eu procuro, procuro e acho o marcador de página. Mas é um outro marcador de página de um outro livro. Aí eu vou até a minha estante. E desisto de achar o livro naquela bagunça. Ah, se eu pego esse saci!
A Rose foi a minha primeira suspeita. Ele é a babá-cozinheira-faxineira-passadeira-faz-tudo e mordomo daqui de casa. E o mordomo, você sabe. É lógico que é preciso muito tato para tratar com uma pessoa que acumula tantos postos de trabalho e recebe o salário que a Patroa paga. Então, por via das dúvidas, nunca manifestei diretamente a minha suspeita de que a Rose pegue os livros e os esconda na estante, entre os outros livros. Apenas sugeri, uma única vez, que ela teria a possibilidade de, quem sabe, não agüentar ver livro solto perto da poltrona de leitura que eu uso. Mas ela descartou a pergunta dizendo que coleira de livro é armário. O que eu ainda não entendi.
Minha segunda suspeita foi comigo mesmo. Será que eu estava tendo ataques de organização? Não. Afastei essa hipótese lembrando que a última coisa que eu organizei na minha vida foi a estante. Isso me deixou sem mais suspeitos. Eu estava exatamente no mesmo lugar onde tinha começado. E o pior de tudo é que as crianças queriam andar de bicicleta e eu não tinha a mínima idéia de onde elas estavam. Elas, as bicicletas. As crianças estavam ali, berrando no meu ouvido. Mas, em compensação, eu tinha acabado de encontrar um kit remendo de bicicleta dentro do armário de remédios. E ao lado do kit, em perfeito repouso, uma linda bomba de bicicleta! Comigo não, sacizinha! Pode ficar de três!

14 comentários:

Elisa Quadros e Valeria Semeraro disse...

oi...gostei bastante do seu comentário. foi a coisa mais sensata que ouvi até hoje, em poucas e claras linhas. vivo com a dúvida e com a vontade de querer saber o que aconteceu, mas ainda duvido se tenho energia para tal.

quanto aos sumiços, bem, se te tranquiliza, acontece com todo mundo. as minhas tesouras sempre somem - meu saci deve ser costureiro.

beijo, elisa

Careca disse...

Duas,
saci costureiro é otimo! Mas por quê um perneta iria querer um kit de remendos e uma bomba de pneu de bicicleta?
:)

anna disse...

agitada e ansiosa que sou, faço tudo sem muita atenção. lembrar onde pus a chave, a bolsa, se tranquei a porta de casa ao sair era sempre um momento de tensão pura.

decidi então há anos viver como cego: a chave, a bolsa, o celular, o livro etc coloco sempre prô mesmo lugar,

a única dificuldade ainda é lembrar, já longe de casa se tranquei a porta, fechei o gás e desliguei o forninho...

Careca disse...

Anna,
eu estaciono o carro no supermercado. Quando estou numa seção qualquer, bate a dúvida. Tranquei ou não tranquei? Por via das dúvidas, eu saio, vou até o carro e aperto o botão do alarme.

Doll Kinha disse...

Essa do alarme do carro eu tb faço, ligo, desligo, ligo....Depois sempre fico na dúvida se desliguei e não liguei de novo...é uma confusão. Aí sempre penso, dane-se se tiver aberto que fique aberto, ninguém vai saber se está mesmo. Perder coisas é meu segundo nome, nunca sei onde coloquei o objeto que acabei de guardar, ou que acabei de pegar...Acho que é idade sabe...infelizmente tenho que admitir...
BjKas DollKa

Careca disse...

Doll,
bacana isso, essa renúncia. Quando eu for coroa daqui a 30 anos, se eu algum dia for, eu juro que talvez, quem sabe, eu até pense em admitir que isso é coisa de coroa.

Mwho disse...

Careca,
Tenho certeza que meu Saci é minha empregada! Tento guardar minhas coisas antes que ela o faça, mas, geralmente, não consigo. O problema é que ela guarda onde acha que é certo e não onde eu penso em procurar...

Careca disse...

Mwho,
ainda bem que temos Saci em casa!

Rodrigo Carreiro disse...

Saci FDP!!! Ele é assim mermo. Sempre.

Wagner Duarte disse...

Careca,
tem Saci por todo canto.
O que passa pelo meu quarto é dj vive pegando meus cd's. rsrs

Às vezes sou tão desatento que me esqueço que coloquei o celular no bolso e saio à procura do mesmo, ou então o deixo em algum canto e momentos depois me esqueço de onde o deixei.
Como diz minha mãe: "só ão esqueço a cabeça porque é grudada".

Careca disse...

Rodrigo,
também tem um, né?

Careca disse...

Wagner,
esses Sacis DJs também escondem Ipod e Mp3. É um horror!

Maína Junqueira disse...

Sabe Careca, você devia andar em casa com um daqueles coletes de MacGyver. Anda com tudo pendurado, "na mão". Não tem Saci que confunda um colete desses.

Careca disse...

M.J.,
eu tentei com uma pochete, lembra da pochete? Mas me dava coceira na barriga. Esses coletes fazem calor?

Frase do dia