terça-feira, 22 de abril de 2008

O boi marruco e as broas de milho



Meu primo Carláile sempre foi um exemplo para todos nós. O exemplo negativo. Não faça como ele. Isso é coisa do Carláile. Até minha avó, que não falava “não” para neto nenhum, parecia ter um pé atrás com o Carláile. Chamava ele de “boi marruco”. O Carláile era estouvado. Era um menino grande demais, na comparação com os outros meninos. Onde dava para passar dois de nós, correndo, o Carláile entalava. E isso geralmente acontecia nas portas. Eu e o meu irmão íamos zunindo na frente e passávamos. O Carláile vinha atrá e paf! Batia o ombro na porta, quicava na parede e levava um vaso na passagem. Aquele vaso, que sua avó guardava com carinho, lembrança de casamento, de um tempo longínquo que já se foi.
_Volta aqui, boi marruco! – dizia a minha avó. Mas ele já estava longe.
Nós éramos crianças. Muitas crianças. E tomávamos suco, café com leite e comíamos pão com manteiga por volta das cinco da tarde. Em ocasiões especiais, minha avó servia broas de milho para todos. Mas em geral, as broas de milho eram delícias secretas que só de vez em quando recebíamos. Mas pão com manteiga, café e quisuco era regra geral na mesa. Era uma mesa enorme, a que tinha na casa da minha avó. Era mesa de fazenda velha. De fazer curau de milho e pamonha. Tinha espaço para todo mundo. Mesmo assim, o Carláile não sabia onde por as mãos e os pés, grandes demais para aquela idade. Ele costumava sentar em cima da mão esquerda para economizar problemas. E cruzava as pernas, enrolava os pés um no outro. Mesmo assim, com a mão direita livre, esbarrava e derrubava as coisas. Lá se ia outro vaso dos tempos longínquos da fazenda da minha vó! Ele se desesperava, o Carláile. Minha avó corria atrás dele com uma colher de pau.
_Volta aqui, boi marruco! – ela dizia, com uma energia invejável para os setenta e nove anos de idade da época.
E é claro que o Carláile só ia aparecer mais tarde. E é claro que nós comíamos o pão com manteiga, o biscoito de queijo, o pão de queijo, tomávamos o quisuco e o café com leite e o que mais que a minha avó reservara para ele. Quem não estava à mesa não poderia reclamar.
Minha avó era uma mulher muito forte e lúcida. Tinha a sabedoria dos oráculos antigos e a fé dos humildes. Viúva antes dos trinta, criou sete filhas e mais um menino, adotado. Sozinha. Ela, as panelas e uma máquina de costura. E ela adorava todos os vinte e três netos. Eu, com minha mania de sabidão, achava que era o neto predileto. Pois ela fazia com que eu me sentisse o neto predileto. Tinha sempre uma broa de milho escondida para mim. Minha avó me entregava no maior segredo aquela broa de milho. Eram especiais e deliciosas. Nem minha mãe, que é supercozinheira de mão cheia, jamais conseguiu fazer broas de milho como a minha avó. Então, eu chegava para as férias e lá estava a minha avó. Conversava com todo mundo e quando eu estava sozinho ela me chamava e, do bolso do avental, tirava uma broa de milho para mim. Só para mim. Eu ficava no céu!
Éramos crianças, muitas crianças. E o Carláile era desajeitado. Estávamos todos correndo, entrando pela casa. As portas sanfonadas de madeira faziam um barulhão danado. E de repente, depois de um grande estrondo, nós paramos de correr e voltamos. Vimos o Carláile no chão. E o retrato do meu avô estava ali ao lado, cacos de vidro e pedaços de moldura para todos os lados. O Carláile tinha, ninguém sabe como, derrubado o retrato do vovô e também o último dos vasos da minha avó. Também, que mania de colocar vaso perto da porta! – eu pensava. Mas a minha avó, espantou todos nós e apontou para o Carláile, com a colher de pau. Em um milésimo de segundo ele se levantou e sumiu, em disparada.
_Volta aqui, boi marruco! – gritou a minha avó.
E ele só voltou horas depois, quando todos os cacos estavam recolhidos e no lixo. Quando o retrato do meu avô já havia sido colocado em nova moldura. Depois de alguém desistir de tentar colar os cacos do que restava do último dos presentes recebidos pelos noivos.
O Carláile chegou em silêncio, pé ante pé. Eu fiquei onde estava, procurando broas de milho, do lado do armário gigante da cozinha. Havia um nicho onde eu cabia inteirinho. Encostei a porta e fiquei olhando pela fresta. O Carláile chegou e pediu desculpas para a minha avó, sozinha, na frente do forno a lenha. Chorava, chorava. E minha avó passava a mão nos cabelos do Carláile. Depois ela o abraçou como as avós abraçam a gente, com ternura duplicada de mãe. E ali, do meu escondido, eu vi minha avó tirar uma lata que eu nem sabia que existia de dentro do forno a lenha. Soprou as cinzas da tampa. E da lata, minha avó tirou um monte de broas de milho e entregou ao Carláile. Então eu soube quem era o neto predileto.

16 comentários:

Anônimo disse...

que legal essa história. da minha avó eu me recordo dos suspiros, que ela tirava de um pote vermelho e preto...

Paulo Bono disse...

careca, você é um filadaputa. me fez lembrar da minha vó e do lanche que ela fazia pra mim às cinco da tarde. ê saudade da zorra.
abraço

Careca disse...

Franka,
sua avó era flamenguista?

Careca disse...

Paulo,
mãe e avó é tudo igual, só muda o endereço!

Anônimo disse...

A minha deixava a gente comer os biscoitos e bolachas fresquinhos que saiam do forno. Minha tia é quitandeira de mão cheia. Minha vó era brava, mas pra gente ela fazia de tudo, até tomar banho naquela banheira linda antiga lá na "suíte" dela. Nossa, era um banhão chique com direito a toalha bordada com os nomes. Nossa educação tem muito dela.
Aprendi a cozinhar com 8 anos e ela dizia que quem sabe fazer, sabe pedir, sabe provar.

Mwho disse...

Bonita a crônica.
Mas, gostei mesmo da habilidade da sua avó em fazer cada um se sentir especial...

Anônimo disse...

adorei o detalhe "pão com manteiga". e o quisuco? nossa, que saudade daqueles envelopinhos com um pouquinho de pó sabor uva. é gente, fazia um litro!!!e "pau-a-pique"? a broa embrulhada e assada na folha de bananeira! com café. ah...

Careca disse...

PcomM,
seu comentário acendeu mais um monte de lembranças. E esse ditado da sua avó é muito bom.

Careca disse...

Mwho,
era uma avó muito sábia, essa minha...

Careca disse...

PcomM,
não sei se com você acontece isso, mas comigo, algumas das melhores lembranças vêm com o paladar.

Anônimo disse...

não sei na sua casa, mas na minha (casa mineira), a gente cozinha, e o povo senta pra conversar mas logo chega o tutu de feijão, aquele arroz soltinho, um angu impecável (sem pelotinha alguma!), mandioca frita que faz a gente salivar...um evento? imagina só quando era dia de folia de reis? macarrão!!ah, mas tinha pão-de- queijo saído do forno, biscoito frito de polvilho azedo (não encharcado).Rosca recheada com goiabada.É, realmente minhas lembranças, em sua maioria, saem da cozinha sim...risos!!

Careca disse...

PcomM,
mesma coisa, ara.

Anônimo disse...

Ai, que dozinha d vc... Mas seu texto me fez lembrar da minha infância na fazenda. Minha vó nunca cozinhou, mas D. Sinhá, que cuidava da gente igual filha, catava nossos piolhos e passava mercúrio cromo nos joelhos ralados e violeta gensiana nos cantos da boca, cozinhava cada doce de leite que era um espetáculo!!!

Careca disse...

Camila,
obrigado pela compaixão. Eu não tenho mais piolhos, por razões óbvias.

Rodrigo Carreiro disse...

Moro com minha avó até hoje...

Careca disse...

Rodrigo,
no que faz muito bem.

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