sábado, 26 de abril de 2008

Deixa o louco passar



Eu estou parado no sinal vermelho. Estou na esplanada. Pelo retrovisor, vejo uma enorme fila de carros à minha espera. À minha direita, na outra faixa, um caminhão gigantesco está estacionado. Eu sou o primeiro da fila. Daqui a pouco vou cruzar seis faixas de pista. E vou levar os meninos para a escola alternativa. Hoje é sexta-feira e é dia de vertical novamente. Vertical é quando... vocês já sabem.
E hoje vai ter índio de novo. Alguém conseguiu que um grupo de índios de verdade visitasse a escola. Os Aimorés, Xingus, não sei. Os Índios estarão lá. Sob a proteção da Funai. Meus filhos não conseguem esconder a expectativa. A mais nova, de três anos, quer dançar com um índio. E o mais velho, de quase cinco anos, quer lutar com um índio. De verdade. De longe, eu acho índio legal. Na selva, dono do pedaço, se sentindo em casa. Na cidade, índio é tudo Dersu Uzala.
_Depressa, pai! – eles gritam, quando o sinal fica verde.
_Não. Tem que esperar o louco passar – eu digo, sem ligar para os carros que já buzinam atrás de mim. Faço o gesto de passar por cima para a turma de trás. Flash. Uma enorme camionete passa zunindo à nossa frente. Se eu tivesse acelerado logo que o sinal abriu estaríamos , no mínimo, muito amassados entre as ferragens. Atrás de mim os carros se calam. É extraordinário como nossos neurônios estão se acostumando a reagir somente a mensagens visuais. Mas é preciso estar alerta. Usar todos os sentidos. O olfato. O tato. O paladar. A audição. Com prudência, eu verifico se está tudo bem e só depois acelero. Conseguimos.
Você sabe que a sua qualidade de vida diminuiu quando começa a planejar com muito cuidado todos os seus movimentos na cidade. A mesma cidade em que você andava sozinho, sem preocupações, quando você era um menino. Um descuido agora pode ser fatal.
_O louco já passou, pai? – meu filho pergunta.
_Um deles, filhote. Existem muitos – respondi.
Daí a pouco, um novo cruzamento. Novo semáforo.
_Pai, não esquece de deixar passar o louco, hein?
_Nunca. Mas agora não somos os primeiros da fila. Tem menos perigo.
E, novamente, um carro passa zunindo logo depois do sinal fechar. Pelo pára-brisa eu vejo no retrovisor o olhar assustado da motorista à minha frente. Perigo à frente e atrás. Tem gente que culpa o carro mil e as facilidades de financiamento. Eu fico com os suspeitos de sempre: os caras que acham que estão por cima da carne seca; os idiotas do “meu pirão primeiro”; gente que me chama de “meu querido”; os panacas que dizem “veja bem”; os sujeitos que acham que estão sempre certos. A lista é longa, vem sendo construída desde o fim da era do gelo.Aquele flash da camionete me deixou azedo.
E num instante estamos prontos para descer no estacionamento de brita da escola alternativa. Cada um carrega a sua própria mochila. E a minha princesa estréia uma nova bolsa bordada que ganhou de presente da tia, minha irmã mais nova. Eu também estou curioso e pergunto para uma das professoras se os índios já chegaram.
_Ainda não. Só depois das dez – ela responde.
E eu me despeço das crianças. Está tudo bem.
Quatro horas mais tarde eu voltei para buscar as crianças.
No portão, como sempre, há um pequeno tumulto de crianças, pais e mochilas para passar. É sexta-feira e todos têm pressa em voltar para casa. Para minha surpresa, meu filho pega a minha mão e a da irmã. Ele nos puxa de lado.
_Vamos, filho. Está na hora de ir para casa! – eu digo.
_Não, pai, espera. Vamos deixar o louco passar - ele diz.
E eu olho para trás e não vejo ninguém em especial. Não há nenhum brutamontes querendo passar. A escola é alternativa. Os bichos grilos são bem calmos e pacíficos. E quase todo mundo já foi embora. Só tem um grupo de índios, lá no fundo da escola. Estão pintados e usam bermudas. Parecem estar se divertindo. Logo, estamos os três sentados, olhando os índios, vendo a confusão de carros a sair do estacionamento de brita. Eu aproveito para tomar água no bebedouro. Um índio se aproxima das crianças. Ele sopra um apito de madeira e imita um monte de passarinhos. Não sei o nome de nenhum dos passarinhos que ele imita. Mas, no final, parecia ser um sabiá.
E então, de repente, eu vi que o louco já tinha passado. O louco é sempre da gente.

11 comentários:

Anônimo disse...

foi assim, com um louco passando, que o gol tentou desviar e subiu na calçada e me jogou longe! e olha, que azar pouco é bobagem...risos. eu já tinha caído na escada do metrô e quebrado a mão esquerda (como isso dói e estava com gesso) eu já te contei isso? experimentei voar!

Maína Junqueira disse...

Que bacana Careca.
Hoje é um dia de loucos.

Maína Junqueira disse...

Loucos passando.

Careca disse...

Uai,
tem que deixar o louco passar até na calçada, ou principalmente...

Careca disse...

M.J.,
deixa passar.

Careca disse...

M.J.,
passe, passe, pode passar.

Maína Junqueira disse...

:-)))))

Anônimo disse...

careca, meu sobrinho luiz, que também estuda numa escola alternativa daqui, o equipe, também vai receber um indio na escola. um xavante. e ele está morrendo de medo dele ser canibal.

Careca disse...

Franka,
diz pra ele não ter medo, que xavante é canibal vegetariano...

Mwho disse...

Expliquem às crianças que nossos índios são latifundiários, desmatadores e até sabem falar inglês... De loucos, só a aparência, pois o normal seria andarem de terno...

Careca disse...

Mwho,
deixa passar.

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