quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

O menino e o lobo

Estou conversando com esse meu amigo e ele me conta que morou por alguns anos num apartamento que ficava perto de uma curva perigosa, no final da Asa Norte, em Brasília. Ali, os oito quilômetros de uma pista praticamente reta terminavam com uma dobradura de noventa graus. Os motoristas vinham embalados por álcool e velocidade, muitos não conseguiam concluir a curva.

Ele disse que a primeira vez aconteceu na noite seguinte à mudança para o apartamento. Era um apê de três quartos, bem grande e espaçoso para um cara solteiro, num prédio com três andares, sem elevador e sem porteiro. Ficava no último canto útil da quadra. E sua janela dava de frente para a pista. E também para os acidentes. Ele acordou assustado com o barulho, correu para a janela e viu o carro capotado. Saiu em disparada, sem pensar direito, sem método, sem estabelecer prioridades.

Era uma moça. Não tinha quebrado nada, mas tinha sangue no cabelo. Havia um cheiro forte de fumaça, gasolina. Os bombeiros foram os primeiros a chegar. Depois vieram os policiais. Mas quem ajudou a moça a sair do carro foi ele. Ela gemia. Amparou a criatura até a ambulância. É impossível lembrar o nome da mulher. As feições. Ou se houve um sorriso. Lembra apenas que ela não agradeceu. Não disse nem obrigado.

Depois, com o passar do tempo, se organizou. Primeiro telefonar, chamar o socorro, depois descer e ver se poderia fazer alguma coisa enquanto esperava os carros da polícia, dos bombeiros e a ambulância.

Ele conta que se cansou de socorrer pessoas acidentadas. Ouviu dezenas de gritos de dor. Se acostumou com os cheiros dos carros amassados, óleo pingando, borracha queimada. Viu pessoas morrerem. As piores noites eram de quinta para sexta e de sábado para domingo. Sempre ligava, chamando polícia, bombeiros, ambulância antes de descer correndo as escadas do primeiro andar até as vítimas. Em algumas ocasiões, ele socorreu acidentados em sequência. Escutava o barulho, pegava o telefone sem fio e corria. Enquanto discava para chamar ajuda para o primeiro, o segundo acontecia. Era tão perto de casa que o telefone sem fio funcionava muito bem. Rateava um pouco. Mas com o tempo, sabia exatamente onde o telefone começaria a falhar.

Eram homens, mulheres, moças, rapazes, duplas, trincas, quadras e até quinas de pessoas. Eram idosos, idosas, jovens, tios e tias, feios, bonitos, pobres, ricos, gente de todos os tipos. Alguns se machucavam muito dentro de carros que só amassavam um pouco. Outros escapavam sem um único arranhão de carros que se espatifavam.

Havia também os repetentes. Em um ano, ajudou o mesmo rapaz duas vezes, depois que ele destruiu dois carros diferentes. Mas o rapaz não se lembrava dele. Em outras ocasiões fez amigos. Mas também conheceu chatos auto-destrutivos e psicopatas que a Providência tinha deixado escapar por motivos impenetráveis.

Dois outros amigos foram morar com ele para dividir as despesas do apê. No início, atuavam em grupo, descendo juntos para auxiliar os acidentados. Formavam uma equipe. Uma tríade de salvadores da madrugada. Depois enjoaram. Nem olhavam mais pela janela. Acabaram dividindo também as operações de socorro. Tentaram um revezamento.

_Hoje é você, na próxima sexta tenho um encontro importante.

E como essas coisas de divisão sempre dão confusão, as pessoas esquecem quem já fez o quê e se aporrinham à toa, tudo dana a desandar. Aí começaram a tirar no palitinho quem iria descer.

_Pô, sacanagem, perdi de novo!

Cansaram de palitinho e partiram para a adedonha. Você sabe: A-DE-DOOOOONNNN-NHÁÁ. O diferente é o escolhido.

Um dia perceberam que estavam fingindo que não escutavam o barulho. E depois perceberam que não era fingimento. Eles realmente não escutavam mais o estrondo do retorcer dos metais e o estalar dos vidros partidos. E nem os gemidos.

_Sabe a história do menino e o lobo? O pastorzinho de ovelhas grita por socorro e todos da aldeia correm para ajudá-lo contra o lobo. Mas é mentira do pastor. Todos vão embora com raiva. Aí o pastor torna a gritar "socorro, socorro, é o lobo, é o lobo". E mais uma vez os aldeões correm para salvar suas ovelhas, mas é mentira. E na terceira vez que o pastorzinho grita por socorro, ninguém aparece para ajudá-lo e o lobo devora todas as ovelhas e mata o pastorzinho - disse o meu amigo.

_O que tem a ver? - eu disse.

_Você pode achar que é loucura, mas para mim, mesmo que o pastorzinho falasse sempre a verdade, ninguém apareceria para ajudá-lo. Os aldeões não ligam a mínima para o pastorzinho. A verdade é que eles só queriam um pretexto para se livrar da concorrência e aumentar o preço dos frangos criados na aldeia.

_Que frangos? - eu disse.

_Pô, você não entende metáfora.

_Nem sabia que os caras criavam frangos - eu disse.

4 comentários:

Paulo Bono disse...

Careca,
Tem-se aí um bom argumento pra um filme ou coisa assim.

abraço

Cynthia disse...

Careca, acho que esse está entre os seus melhores posts. Muito bom!

:*

Careca disse...

Bondade sua, Bono. Abç,

Careca disse...

Gentileza sua, Cynthia. Bjos,

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