sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Uma vida chihuahuah



Esqueci o nome do bicho. Eu tinha uns doze anos. Foi o único cachorro Chihuahuah que eu vi de perto. Era pequeno, neurótico como todos os da raça. Os olhos esbugalhados, como se o rato Ligeirinho tivesse sido capturado pelo gato Frajola. Triste. O chihuahuah é um cachorro triste de uma raça melancólica. Parece um bichinho bonsai, obra de um geneticista maluco, vítima de séculos de privações. De grandes, só sobraram os olhos, maiores do que o focinho.

Um dia o André Damasceno, dono do bicho, viajou. Eu não sabia. Fui visitar o André. A porta da cozinha do apartamento era metade vidro ondulado, com grade, metade metal. Apertei a campainha. Ouvi o bicho latindo. Então achei que havia alguém em casa. Escutei as unhas do chihuahuah contra o metal da porta. Também dava para escutar as patinhas do cachorro indo e voltando pelo corredor da área de cozinha. E latidos. O bicho latia muito. Resolvi esperar. Apertei a campainha novamente. Só latidos. Depois de três toques na campainha, desisti.

Naquela semana, a visita ao apartamento do André iria se tornar uma rotina frustrada. O André tinha a coleção completa do Mortadelo e Salaminho. Naquelas férias, eu havia planejado ler a coleção inteira. Mas a viagem do André havia estragado meus planos. O chihuahuah, por sua vez, parecia cada vez mais inquieto todas as vezes que eu tocava a campainha. Eu escutava as patinhas frenéticas do cachorro indo e voltando, cada vez mais nervosas. Os latidos agudos. Eu tocava a campainha três longas vezes, depois ia embora. Alguns dias mais tarde, no segundo toque comprido, o cachorro já acelerava as idas e vindas, os arranhões na porta de metal. Os latidos histéricos.

Depois de uma semana, o cachorro latia quando eu subia as escadas. O bicho se atirava contra a porta. Ele tomava impulso lá no fundo do corredor, na área de cozinha do apartamento, e se atirava contra a porta. Uma coisa maluca. E não parava de latir.
Resolvi parar de aparecer.

No final das férias, umas três semanas depois, o Jô veio me contar que o André Damasceno tinha voltado de Conselheiro Lafaiete, lá de Minas Gerais. Fomos visitá-lo. Achei que iria encontrar a família triste, de luto pelo cachorro.Para minha surpresa, o chihuahuah estava vivo. O André explicou que haviam deixado um saco enorme de ração para o bicho. Quando chegaram o saco estava pela metade, mas encharcado. Não havia um único canto limpo na área de cozinha, onde haviam encerrado o animal. Mas ele sobrevivera.

_Só está um pouco mais maluco. Se alguém tocar a campainha, ele começa se jogar contra a porta e a latir. E também não se pode fechar nenhuma porta perto dele. Nem a do banheiro. Ele fica doidinho, começa a latir, rosnar e babar.

E então o André explicou que desde que haviam voltado de férias, todos eles, os pais e o irmão do André, se revezavam para ficar com o chihuahuah, para não deixá-lo sozinho. Estavam todos arrependidos. Agora havia sempre alguém com o cãozinho. E enquanto ele acariciava o cachorro, o chihuahuah o olhava com desespero, tremendo o corpo inteiro.

Eu penso todos dos dias em uma vida menos chihuahuah.

3 comentários:

Paulo Bono disse...

que família filha da puta!
bem. eu conheci um chiuaua chamado Bradock.
abraço

Anônimo disse...

Fiquei triste, muito triste. Que seres humanos são esses? Que crueldade!! Não tenho mais palavras.
abração, Careca.

Careca disse...

Bono, é isso aí.
Uai, não há limites para a crueldade humana.
Abraços,

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