Um troféu perdido, foi o que perdi. Tento até falar de outras coisas, mas acabo falando mesmo é do meu mundinho. É do que mais sei falar. E sei é modo de dizer. Não sei nada direito. Não tenho a pachorra de dizer que meu conhecimento sobre algum assunto seja absoluto. O máximo que posso garantir é que às vezes eu estava lá, quando algumas coisas aconteceram. Mas às vezes até isso some da memória.
Fico escavando subterfúgios na minha cabeça. Uma bulldozer é do que estou precisando. Preciso ir fundo para trazer umas coisas esquecidas da cachola. Mas quando estou chegando perto, me desconcentro. Estou sempre chegando perto. Pareço alguns times de futebol. À medida que a praia se aproxima eu começo a procurar a pá, as flores e uma lápide.
Tenho mil frases prontas para enfrentar o azedume de um monte de gente. Sou bom na defensiva. Também sou bom no ataque. Mas tenho sido péssimo em ficar parado. Parece que tenho que estar sempre em movimento, do contrário irei ao fundo, por inércia.
Ouvi falar que os tubarões estão sempre em movimento. Até dormindo os bichos se movem. Quando param, viram de cabeça para baixo, depois continuam a nadar. Aí acordam e continuam a nadar. Só desviram quando batem a barbatana no fundo do mar. Os chineses são malucos pro barbatanas. Acreditam que é afrodisíaco. E a pesca clandestina de tubarões é particularmente cruel. Os pescadores piratas cortam as barbatanas dos bichos e os jogam de volta ao mar. Vi um telefilme em que o pai da Bindi mostrava alguns tubarões mutilados. Aí lembrei que o pai da Bindi morreu com um ferrão de uma raia gigante atravessado no peito.
Um dos primeiros bichos que pesquei foi uma raia de rio. Eu tinha, no máximo, uns seis anos. Era uma raia de fogo. Preta, com bolas/manchas amarelas. Só consegui tirar o bicho da água porque um adulto me ajudou. O nome desse adulto era Paulo. Lembro de ficar assustado, depois que eu vi o susto no rosto de quem me ajudou. A raia foi morta com um golpe seco de remo, entre os olhos. Pam!
Em algum lugar, meu pai guarda, com orgulho, a minha foto com a raia de fogo morta. Já faz anos que não vejo essa foto. Mas é ela que guia a minha lembrança. Eu seguro a raia com um enorme sorriso. Faço muita força para segurar o bicho. E é estranho como a foto que já não vejo há tempos é que aparece impressa na minha memória. É essa imagem na minha cabeça que me ajuda a lembrar de como fiz força com aquele pescado. De como demorei para arrastá-lo até a casa verde, onde morávamos. Da surpresa feliz e também preocupada da minha mãe.
Na fantasia da minha lembrança, até hoje eu lembro que a rua inteira falou da minha pescaria. Que todas as crianças quiseram tocar a raia de fogo e examinar os olhos protuberantes, a boca estranha e reta na parte de baixo. E o ferrão. Todos examinaram com cuidado e respeito o ferrão da raia. As curvas em “u” e as pequenas serrilhas, a cor vermelho- amarronzada. Foi o meu primeiro e genuíno troféu, esse pequeno ferrão. Foi a legítima e honrosa lembrança da minha façanha, do meu feito de menino que se igualava ao de um adulto. Depois eu o protegi durante anos da curiosidade alheia, alternando esconderijos estranhos para que ninguém o roubasse de mim. Até que um dia esqueci onde o havia escondido. E depois me esqueci do troféu. E hoje, tanto tempo depois, eu me lembrei que um dia eu fui o herói orgulhoso da rua. Pelo menos na minha lembrança. Mas perdi o ferrão da raia.
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