segunda-feira, 6 de outubro de 2008

De vez em quando



De vez em quando, tudo fica tão sem-graça que dá vontade de zapear personalidades.

A crise agora parece tão braba que a gente até acha bom não ter dinheiro.

Quando fico assim, gosto de inventar que eu deveria ter sido poeta.

As pessoas que fazem versos, em geral, se divertem com as palavras. Isso para mim é um problema. Eu, de vez em quando, levo as palavras a sério.

De vez em quando, o sentido remoto de um verso daquela poesia esquecida me assalta. Mas já é tarde, estou deitado, não vou levantar para escrever. E no dia seguinte, já me esqueci do verso e do seu significado.

Uma vez sonhei com um pedaço de verso que caía num rio, atrás da minha casa, na infância dos meus dias de encantamento. Era um verso bem bonito, daqueles que a gente guarda na cabeça para os dias frios. E também para esquentar noites geladas, janelas abertas ao vento. Mas o verso escorregou e caiu, coitado, dentro de um rio que um dia eu tive, que me lavava as entranhas. Alguém me falou – quem terá sido? - que esse rio dava a volta no mundo inteiro e que tudo trazia de volta. Esperei um bocado por aquele pedaço de verso, mas nada dessa volta ao mundo acabar. Ficava só olhando a curva do rio, onde acreditava ter visto um desfile de rimas e estrofes mais antigas.

Esperei, esperei, esperei. E nada do verso voltar. Tentei rimas pobres, rimas remediadas, rimas com casa própria, umas rimas sem-teto e até umas rimas assim, meio cambetas. Mas nada do verso voltar. Fiz outros versos mais compridos. Fiz declarações debaixo de chuva. Fiz um verso levado da breca, depois fiz outro, tímido, bem curto. Nenhum funcionou.

Decidi dar um tempo. Fiz outras coisas. Eu me convenci de que o verso havia passado quando eu estava olhando para o outro lado.

Fiz outras coisas mais. Esqueci uns encantamentos.

E um dia me dei conta, de que o verso que eu esperava ainda não passou, nem vai passar.

É que eu não sonho mais os versos da minha infância. É que eu esqueci um menino que se enredava com a curva de um rio. Sem esse poder, não há como o verso voltar.

Vou comprar um binóculo de olhar o passado. Com ele verei um futuro que nunca amanhecerá.

Vou comprar uma caneta que escreve presentes vivos, que mudam sempre. Um deles há de servir para quem me quer bem.

Vou comprar um papel de embrulhar amores. Guardarei numa gaveta forrada de vermelho, junto com aquele primeiro beijo.

De vez em quando, vou abrir a gaveta e olhar para aquele coração. Será o meu?

6 comentários:

Mwho disse...

Careca,
Muito bonita sua poesia em prosa...
Abraço,
Mwho.

Anônimo disse...

Vou imprimir,encontrar uma moldura e colocar na minha sala. Ou talvez eu transcreva esse texto na parede perto da mesa de jantar. Acabo de resolver que vou transcrevê-lo na parede! Careca, você é um imortal. Não consigo pensar em palavra que traduza minha felicidade ao ler um texto tão lindo. Deixo simplesmente um obrigada de coração por você escrever tão bonito pra sua kombi e para os outros que ainda não fizeram essa viagem. abração

Rodrigo Carreiro disse...

De vez em quando é bom sonhar e sempre (sempre) anotar tudo.

Anônimo disse...

Lindo texto, Careca, lindo mesmo. Poesia, crônica... e tem presente, passado e futuro. Só você pra botar a crise dos papéis podres num texto lindo desse e ele continuar lindo! Parabéns! Abraços!

Careca disse...

Mwho, Uai e Janaína, obrigado pela atenção de vocês. :)

Careca disse...

Rodrigo, anotar tudo é sempre importante, só ando com bloquinho no bolso...

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