quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Metamorfoses




Naquela manhã, a barata do meu quarto acordou e percebeu que havia se transformado num careca. E não era qualquer careca, era eu, o Careca. Ela se levantou, coçou o que eu sempre coçava quando acordava e procurou fazer tudo como eu sempre fazia. Enfiou o dedo no nariz e procurou o chinelo. Para variar, encontrou. E começou a caminhar em direção ao banheiro. Mas espere aí. Se eu estou vendo a barata...

Foi então que percebi que eu, por minha vez, havia me transformado em outra coisa. Pelo ângulo, pela esplêndida visão do tapete e da estante, pela sensação de estar com um rádio-relógio na cabeça, eu só poderia ter me transformado no criado-mudo. Felizmente eu não era surdo. E enxergava pela fechadura, com se fosse um olho só. Mas enxergava. E como eu não era surdo, ouvi a descarga do banheiro e o chuveiro sendo ligado. Aquele Careca, mesmo sendo uma barata, iria demorar um bocado no chuveiro. Tentei me mexer, mas criados-mudos não se mexem. Sequer abrem a própria gaveta.

Procurei me acalmar e me acalmei. Percebi que o criado-mudo é, por natureza, um tipo que se acalma rapidamente. Tentei me aprofundar na consciência de criado-mudo. Mergulhei na minha gaveta interior. Não dei nem uma braçada e já tinha chegado ao fundo. E lá havia apenas uma revista antiga de mulher pelada e duas lâmpadas. Uma queimada e outra boa. A revista era com a Vera Fischer. Eu me lembrava de ter lido com atenção a entrevista. E um arrepio percorreu os fiambres da minha gaveta central ao me lembrar do pôster com a Vera.

Estava pensando no pôster quando percebi que Careca, a barata, estava de volta, com a toalha enrolada na cintura. Percebi também, um olhar guloso em minha direção. Ou seria um olhar raivoso, superior? O Careca sempre foi meio esnobe, nariz pra cima, metido a nobre, então era natural que desprezasse a ralé dos criados-mudos. Mas quase chacoalhei as gavetas quando percebi que o Careca estava mesmo olhando para mim. E mais. Estava em vias de abrir a minha gaveta. E mais. Além de abrir a gaveta, havia acabado de pegar a minha revista.

Uma sensação de vazio tomou conta de mim. Eu agora me resumia a ser um suporte para rádio-relógio com duas lâmpadas na gaveta. E uma estava queimada. Sentado na cama, Careca, a barata, folheava a revista. Passou pela entrevista rapidamente. E era uma excelente entrevista com não sei quem. E foi para o final, ler as piadinhas. Forçando um pouco a vista do meu olho único de fechadura, percebi que Careca havia parado com as preliminares. Ele havia fechado a revista e se preparava para abri-la pela metade, direto no pôster central. Senti o ciúmes invadir os recônditos inauditos da minha gaveta. Senti a cólera assumir o comando e a minha voz sair pelo rádio-relógio.

_Desafasta, sem-vergonha. Essa revista é de coleção. Só pode folhear com luva e máscara cirúrgica, ô panaca! Não vá babar, hem...eu disse, em AM e FM.

_Gostosa!, falou a barata Careca.

_Qualé, rapaz, tu és casado. Não vá ficar na mão. Fecha essa revista e abra a Bíblia, mérmão! Lembra do Monty Pithon: “Every sperm is sacred, every sperm is good...”

_Gostosa, repetiu.

E só então percebi que a borda do poster central estava parecendo meio... roída. Aquela barata roedora dos infernos estava comendo a Vera Fischer, ou melhor, o pôster da VF pelas beiradas.

_Sacrilégio! – gritei, em Ondas Curtas.

E antes que eu engavetasse aquele Careca para sempre, eu acordei. E acordei bem. Um pouco chateado, na verdade. Talvez chato fosse mais adequado. Isso. Chato. Eu podia sentir isso em quase todas as minhas folhas...

2 comentários:

Maína Junqueira disse...

:-)))))))))

Careca disse...

M.J.
-----
8-()---------

Bom, esse era para ser um alienígena sendo atropelado por um tanque da II Guerra, mas lembrei que sou ruim em fazer tanques.

Frase do dia