sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Um engano mútuo




Meu celular recebeu uma chamada estranha durante a madrugada. Pelo serviço de mensageria, fico sabendo, horas depois, que recebi essa chamada de um número desconhecido. A ligação durou dois segundos e aconteceu às duas horas da manhã. Depois apareceu outra mensagem, dizendo que esse número que não conheço tentou me ligar três vezes. Quem será? Bom, se for alguma coisa importante certamente a pessoa ligará novamente. E enquanto ainda estou com isso na cabeça, o telefone tocou. Olhei o visor e era o tal número.

_Alô? - eu disse.

_Quem é? - disse a outra pessoa. Voz de homem.

_Eu é que pergunto. Quer falar com quem? - eu disse.

_Com o dono desse telefone, é você? - diz o rapaz. Parece voz de gente jovem.

_Sou eu. Mas quem é você? - eu disse.

_Por quê você me ligou de madrugada? - disse o rapaz.

_Eu não liguei para você de madrugada - eu disse.

_Alguém desse número ligou para mim hoje de madrugada - disse o sujeito.

_Bom, o telefone é meu, eu não te conheço e não liguei pra você hora nenhuma. Deve ser um engano mútuo - eu disse. E desliguei.

Sim, eu sei, o sujeito deve ter pensado que eu sou esquisito, porque ele viu o meu número registrado no seu celular. Eu também vi o número dele no registrado no meu celular, mas não caio mais nessa. Eu sei que não liguei para ninguém de madrugada. E não adianta nenhum sistema telefônico querer me fazer acreditar no contrário.

Então o meu telefone tocou novamente. Era o numero do desconhecido novamente.

_Alô? - eu disse.

_O que você disse a ele? - disse uma voz de mulher.

_Você quer falar com quem? - eu disse.

_Não existe esse negócio de engano mútuo - ela disse. Parecia ser uma jovem mulher. Mas voz de mulher engana, é difícil atribuir uma idade. Amy Winehouse parecia ter dez mil anos. E essa voz não era bonita. E parecia assustada.

_Talvez não. Talvez seja só a companhia telefônica fazendo com que as pessoas liguem umas para as outras - eu disse.

_Querido, não ligue mais para mim, por favor. Meu namorado é ciumento - ela disse.

_Tudo bem - eu disse.

_Por favor, prometa que não vai mais ligar - ela disse.

_Eu prometo - eu disse.

_Adeus - ela disse. E eu poderia jurar que ouvi o som de uma pancada e um gemido de dor. Parece uma cena de Blue Velvet, eu pensei.

Duas horas depois o celular tocou novamente. Era o tal número. Desliguei o telefone. Se fosse um filme, o mocinho ficaria preocupado com a mulher. Mas eu estou velho para ser o mocinho. E nem conheço a mulher para ficar preocupado. Quem sabe o que se passa na casa do outro lado da rua? Quem conhece o drama vivido pelo vizinho de porta? Quem se arrisca a parar o carro à noite, na rua movimentada, para socorrer um cão atropelado? Para ajudar a criança que cheira cola? Quem ainda não recebeu o telefonema do falso sequestro?

Outro dia, no estacionamento do supermercado, um sujeito me pediu para usar o celular rapidamente. Ele estava com o pneu furado e falou depressa pelo telefone. Foi muito educado. Queria pagar pela ligação. Se apresentou. Puxou conversa. Foi simpático. Parecia legítimo. Mas sou paranóico. Não falei quase nada. E se ele não estivesse com o pneu furado? E se ele telefonou para uma comparsa, para meu telefone ficar gravado na memória do celular? E se tudo não passasse de uma encenação para um futuro golpe? E que golpe seria esse? Por quê alguém iria me dar um golpe? A voz da primeira ligação parecia com a daquele sujeito. Ou não?

Não. Foi só um engano mútuo.

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