sábado, 15 de outubro de 2011

O livro dentro do livro dentro do livro dentro do livro



Rod Stewart & Jeff Beck - People Get Ready

Existe um livro dentro do Don Quixote que Cervantes finge imaginar estar escrevendo. Cervantes diz que não é o autor de Don Quixote e inventa que o texto original tinha sido escrito por um árabe. Com esse faz-de-conta Cervantes pode alegar que a história do Quixote é real e que foi narrada por uma testemunha. O nome do autor árabe, de acordo com Cervantes, é Cid Hamete Benengeli.

Mas Cervantes não domina o árabe. Ele teria dado um olho para aprender árabe, mas foi enganado. E Cid Hamete Benengeli jamais apareceu na história do Quixote. Daí que o Sancho Pança é a testemunha narradora de Cervantes. Uma testemunha analfabeta, mas com o dom da linguagem. Foi Sancho que ditou a história do Quixote ao barbeiro e ao padre. O manuscrito dos dois é que foi traduzido para o árabe.

Isso fica mais complicado, porque a idéia do barbeiro e do padre é usar o livro como uma espécie de espelho para a loucura de Don Quixote. Desse modo, quando o próprio Don Quixote lesse o livro, ele seria confrontado com sua loucura e fantasia e se recuperaria.

Mas há quem diga que Don Quixote não era louco, apenas fingia ser maluco. De algum modo engenhoso, Don Quixote arquitetou essa coisa complicada de ditar para Sancho, que falava ao barbeiro e ao padre, que escreviam em espanhol. Depois, Don Quixote deu um jeito de esconder o livro perto do árabe Benengeli, que o traduziu para o árabe. E mais tarde, o mesmo Quixote encontra em Cervantes o hábil escritor para a recondução do livro em espanhol.

Existe também quem prefira que Cervantes tenha contratado Don Quixote, que se fingia de louco, para traduzir a própria história. O objetivo do ardiloso Don, em conluio com Cervantes, era saber até que ponto as pessoas podem tolerar blasfêmias, mentiras, vilanias e até coisas sem sentido se estiverem se divertindo. E a resposta é que isso não tem fim.

De algum modo, Ken Kesey conseguiu capturar a essência quixotesca em “O estranho no ninho”. Antes dele, Fernando Pessoa também conseguiu. E Umberto Eco, principalmente ele, com o extraordinário “O Nome da Rosa”. E John Irving. E Tibor Fischer. E também outros milhares de escritores em centenas de milhares de livros.

Mas todo mundo fala com estranha seriedade sobre essas façanhas. Da mesma maneira como a maioria das pessoas fala com estranha seriedade sobre a escrita. Que é tão simples e ordinária quanto qualquer outra arte. A verdade é que Don Quixote foi escrito para nossa diversão.

2 comentários:

Felicia disse...

Tivemos "Don Quijote" um semestre inteiro, como tema de um seminário na minha universidade. Tornou-se um dos meus livros preferidos e acho incrível a forma como Cervantes domina esta arte de fingir (?) narrrar o que foi narrado por um outro narrador. E quando ele se "rebela", dentro do livro, contra o livro de avellaneda e deixa de ir a Zaragoza só para contrariar o apócrifo e firmar-se como original, putz, é coisa de gênio.

Careca disse...

Felicia, vou ler o Quixote novamente, sempre se aprende alguma coisa. Deve ter sido um seminário bem divertido. Abçs,

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