quinta-feira, 6 de outubro de 2011

À deriva no bote

Esses sonhos, ou melhor, pesadelos, sempre têm água. Mesmo dormindo eu sei que devo tomar cuidado quando aparece água no meio do sono. E no último começou com a minha chegada perto de um bote. Sim, é mais um sonho em que eu sou o personagem principal. Muito embora eu sinceramente prefira aqueles sonhos em que eu não sou eu, sou outra pessoa mais esperta, bem sucedida e feliz da vida. Então eu me aproximo do bote e é lógico que eu empurro essa canoa para dentro dágua. Posso sentir o barro, meus pés meio atolados no barro da margem desse lugar. Acho que é uma lagoa e é dia, o sol está bem forte. A água está esverdeada, não se vê o fundo e eu entro no bote e me sento. Bem devagar, eu me afasto da margem.

Ótimo, ótimo. Estou agora bem longe da margem, se quiser voltar terei que nadar um bocado, mas o sol sumiu como some nos sonhos, de repente. Está escuro agora e eu não tenho mais coragem de entrar na água. Não sei em que direção está a margem e mesmo se quisesse nadar jamais conseguiria encontrá-la. Estou à deriva no bote e olho para cima. Nada. Nem mesmo um único brilho no céu. A escuridão é tão profunda que começo a imaginar que não estou sobre a água, que o bote flutua pelo espaço, uma espaçonave de madeira. Como será que me deixaram entrar nessa nave com as botas sujas de barro? Faz frio no espaço sideral.

Ave Maria, eu rezo. E parece funcionar, porque estou de volta ao bote, onde é natural que minhas botas estejam sujas de barro. Mas não estou sozinho. Logo ali, a dois passos, brilham os olhos de um animal. Putz, sonhei um plágio, eu penso, isto é Max e os Felinos, de Moacyr Scliar. Não, é "A Vida de Pi" de Yann Martel. Bolas, nenhum dos dois. Quem está comigo no bote é um sujeito parecido com o meu ex-vizinho, o Seu Emílio. Mas é só parecido. O cara é muito mal-encarado e estranho. O rosto parece mudar. Estou com medo. Parece que vi o brilho de uma faca. E essa é a última coisa que eu vejo porque o bote virou.

Eu mergulho e volto para a superfície. Bato a cabeça num teto. Estou debaixo do bote virado. Estou com muito medo pois não preciso enxergar nada para saber que aquele sujeito de rosto estranho também está ali, em algum lugar. Quando me viro, vejo apenas o rápido brilho antes que a faca me atinja em cheio o coração.

2 comentários:

Anônimo disse...

Que texto lindo, amigo. Como você escreve bonito!
Minha gratidão pelo prazer que essa leitura me proporciona. Abração!
Tina

Careca disse...

Tina, valeu. Salvou o meu dia.

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