quinta-feira, 16 de julho de 2009

Nossos canalhas e o canibalismo

Até mesmo nossos melhores canalhas choram. Já reparou? Por isso, aqui vai um trecho de um dos melhores poemas. É o canto oitavo do I-Juca-Pirama, de Gonçalves Dias. É a parte que o velho guerreiro, pai do Tupi chorão, o amaldiçoa.

I-Juca-Pirama

VIII
"Tu choraste em presença da morte?
Na presença de estranhos choraste?
Não descende o cobarde do forte;
Pois choraste, meu filho não és!
Possas tu, descendente maldito
De uma tribo de nobres guerreiros,
Implorando cruéis forasteiros,
Seres presa de vis Aimorés.
"Possas tu, isolado na terra,
Sem arrimo e sem pátria vagando,
Rejeitado da morte na guerra,
Rejeitado dos homens na paz,
Ser das gentes o espectro execrado;
Não encontres amor nas mulheres,
Teus amigos, se amigos tiveres,
Tenham alma inconstante e falaz!

"Não encontres doçura no dia,
Nem as cores da aurora te ameiguem,
E entre as larvas da noite sombria
Nunca possas descanso gozar:
Não encontres um tronco, uma pedra,
Posta ao sol, posta às chuvas e aos ventos,
Padecendo os maiores tormentos,
Onde possas a fronte pousar.

"Que a teus passos a relva se torre;
Murchem prados, a flor desfaleça,
E o regato que límpido corre,
Mais te acenda o vesano furor;
Suas águas depressa se tornem,
Ao contacto dos lábios sedentos,
Lago impuro de vermes nojentos,
Donde fujas com asco e terror!

"Sempre o céu, como um teto incendido,
Creste e punja teus membros malditos
E oceano de pó denegrido
Seja a terra ao ignavo tupi!
Miserável, faminto, sedento,
Manitôs lhe não falem nos sonhos,
E do horror os espectros medonhos
Traga sempre o cobarde após si.

"Um amigo não tenhas piedoso
Que o teu corpo na terra embalsame,
Pondo em vaso d’argila cuidoso
Arco e frecha e tacape a teus pés!
Sê maldito, e sozinho na terra;
Pois que a tanta vileza chegaste,
Que em presença da morte choraste,
Tu, cobarde, meu filho não és."

Depois, no final do poema, o Tupi chorão acaba provando que possui valentia.
Mas não sei, não. Sempre achei o final meio remendão. Acho que os Aimorés piscaram o olho e cruzaram os dedos. E decidiram comer uns pedaços assados do guerreiro chorão, só de piedade e em respeito ao pai Tupi, que teve a decência de levar o filho para ser devorado, como se devia. Vai ver, sobrou um tantão de cozido daquele Tupi canalha. Não valia um canapé.

Hoje em dia, na terra tupiniquim, os Aimorés deixariam passar pais, filhos, netos e apaniguados de um monte de gente. Diriam assim:

"— Mentiste, que um Tupi não chora nunca,
E tu choraste!... parte; não queremos
Com carne vil enfraquecer os fortes. "

Mas acho que nossos melhores guerreiros canibais já se aposentaram ou então aderiram ao vegetarianismo mais verde, covarde e pusilânime.

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