terça-feira, 28 de julho de 2009
Igual a Ahab
Runaway Train, um filme dos anos 80 estrelado por Jon Voight, tem uma cena que não sai da minha cabeça. Voight faz um presidiário que foge da prisão e vai parar num trem, junto com um estuprador(Eric Roberts) e uma improvável mocinha clandestina fugindo de alguma coisa(Rebecca DeMornay). Não lembro direito o que ela faz no filme, mas não tem importância. A cena inesquecível não inclui a Rebecca.
Para mim, o trem de Runaway Train é uma espécie de Moby Dick de metal retorcido, gelado e congelado, que não vai parar até levar você para o abismo infernal. Moby Dick, convenhamos, é das melhores coisas da literatura ocidental. Eu soube de literatos que se ajoelham e recorrem ao silício quando mencionam Moby Dick. Soube que em alguns círculos, o culto a Moby Dick de Melville já extrapolou a auto-flajelação, os incensos e tílbures, e exige rituais mais elaborados, com virgens e eunucos entoando canções à capela, ao fundo. Alguns fissurados usam trajes especiais e só abrem as páginas do livro ao som de línguas mortas acompanhadas por cítaras com “Don´t kill the whale”, do Yes, numa versão em minimug.
Ou seja, para falar dessa cena, eu tenho que dar uma volta por Moby Dick, de Herman Melville e também pela versão cinematográfica de John Houston, de 1956, com roteiro do mestre da ficção científica Ray Bradbury. Richard Basehart, que na TV mais tarde faria o Almirante Nelson de “Viagem ao Fundo do Mar”, está no papel do jovem marujo narrador de Melville. Quequeg, o índio fatalista, é sensacional(todo livro genial tem um índio fatalista). No filme, Gregory Peck faz o melhor e mais terrível Ahab de todos os tempos. O blasfemo, o praguejador, o homem obcecado com uma grande baleia branca.
Mas é aí que está o engano. Os não iniciados lêem o romance de Melville como se fosse apenas a história de uma vingança contra um monstro da natureza. Não é apenas isso, ó minha Kombi de leitores. Depois que eu li pela quinta vez esse maravilhoso livro e vi, pela terceira vez, esse fantástico filme, percebi os motivos que levam tantos homens e mulheres de bem aos limites do culto profano a esta obra. Lá pelo final, Gregory Peck/Ahab irrompe em impropérios contra a baleia e pragueja contra os céus ao arremessar o arpão, furioso, contra o gigantesco cachalote branco. O monstro o arrasta, com o olho maligno aberto, para as profundezas. Preso às cordas no lombo da baleia, com apenas um braço solto, Ahab parece convidar a todos para segui-lo. O único que escapa é o jovem marujo. Mas ali, antes de arremessar o arpão, eu percebi um sorriso no rosto de Ahab. Seria mesmo um sorriso, ou uma careta, um esgar?
Pois na minha cabeça, essa imagem do Ahab também se mistura com a cena inesquecível de Runaway Train. Jon Voight está sobre o trem, a grande velocidade. Neve e gelo por todos os lados. Um oceano de brancura. Faz um frio horroroso. E você vê Voight, o fugitivo, retesar todos os músculos do rosto marcado de cicatrizes. Caramba! É mesmo uma careta e um sorriso, ao mesmo tempo. É a expressão de um homem que segue em frente com uma disposição tão inexorável quanto o seu próprio destino. Ele perdeu. Mas venceu. E o sorriso careta é porque ele sabe que só vencerá se perder. Mas é ele que decide ir até o fim. Só ele. Igual ao Ahab.
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