quarta-feira, 15 de julho de 2009

No meio do caminho havia um Careca

Acho que tenho cara de "passagem".
Isso sempre acontece comigo. Já reparei. Em geral é mega-sena acumulada. Lá estou eu na fila, junto com trezentos outros esperançosos. A fila é longa, daquelas de fazer curvas. Como sempre acontece, estou na fila quando o boy daquela repartição leva um bolo de jogos dos colegas do trabalho. Também estou na fila quando alguém resolve pagar adiantado as contribuições sociais, pagar as contas do mês.

Essas coisas embolam a fila. Que acaba entrando no meio do caminho das pessoas. Então eu fico ali, na perpendicular de um caminho, no cruzamento de uma linha horizontal imaginária. Ali estou eu, no centro do xis. E é na minha frente que todo mundo vem passar.

Não é sacanagem. A fila anda alguns centímetros e mesmo assim continuo no xis do eixo imaginário dos passantes. Está devagar pra caramba. E eu sou a passagem. Penso então que é porque estou fazendo contato visual. As pessoas quando querem passar por um local procuram fazer contato visual, para se sentir seguras. Faço cara de paisagem. Olho sem foco para o infinito.

Não adianta. Todo mundo só passa por mim. Ando um metro e a coisa não se modifica. Coloco as mãos nos bolso. Assobio. Nada. Eu sou uma espécie de porta humana. Uma brecha na fila. Podem ser ferormônios. Sei lá. Olho para baixo. Fico pensando em luta de jiu-jitsu. Faço cara de mau. Nada funciona.

Será a minha careca? Será que ela é uma referência segura de passagem? Tento pensar como um transeunte qualquer. Eu evitaria cruzar uma fila no careca de terno e gravata. Carecas são muito enfezados. Faço cara de bad boy. Cruzo os braços. Não funciona. Eu sou uma espécie de guardião da vereda maneira. Se eu dissesse "passe por aqui" era bem capaz de obter o efeito inverso. Mas um guarda do shopping, pois estou no shopping, parece que adivinha o meu pensamento e se aproxima da fila.

_Xii - eu penso.

A proximidade do guarda aumenta a sensação de segurança dos transeuntes, só pode ser. O fluxo de pessoas que passam pela fila, exatamente onde estou, aumenta vertiginosamente. Felizmente, o guarda se afasta. O fluxo de pessoas diminui um pouco. A fila é uma enguia que se move muito lentamente. Ando mais um pouco. Em dez minutos mais meio metro. E mais meio. E mesmo assim, só passam por mim. Estou na boca do caixa e vem um sujeito querendo atravessar. É a minha vez e um sujeito se esgueira à minha frente e fala para a caixa:

_Moça, como é que eu faço? Paguei uma conta aqui, mas continua constando que não paguei.

_Leva o comprovante para uma agência que fica ok.

_Tem certeza?

_Claro.


Finalmente, é a minha vez. Consigo fazer a minha aposta. Olho para a fila e ali está ela, incólume. Ninguém atravessa a fila. Os passantes, todos eles, desviam da fila.

_Caramba! - eu penso. Caramba!

E quando estou quase chegando à escada rolante, onde já existe um pequena fila, uma manada de gente apressada cruza a minha frente. E só então eu entendo aquele poema do Drummond.

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