quinta-feira, 27 de março de 2008

O craque de botas



Eu usava botas ortopédicas para os meus pés chatos. E como eu era muito franzino, era enfezado e vingativo. As botas me deixavam de mau humor. A mínima contrariedade era respondida a pontapés.
_Apelou para a bota! Apelou pra bota! – meu irmão e minhas irmãs diziam, em coro.
E eu apelava mesmo.
Na época, todos os meninos do Brasil respiravam futebol. E meu irmão, dois anos mais velho, era um craque do futebol. Eu, naturalmente, queria ser como o meu irmão. Mas com os óculos e as botas ortopédicas, isso era meio difícil.
Eu era enfezado, vingativo, míope e cabeça dura. Eu achava que meu irmão jogava bem por causa de umas chuteiras pretas, de lona e travas de borracha pretas, chamadas Ki-chute. Eu achava que a velocidade, os dribles curtos e desconcertantes, os chutes precisos e até os gols de cabeça do meu irmão só eram possíveis por causa daquelas Ki-chute. E eu queria muito ter um par daquelas chuteiras mágicas.
Meu pai bem que tentou. Ele era juiz numa cidadezinha no interior. As mercadorias só apareciam de vez em quando, naquele fim de mundo. Eram vendidas em caminhões que enfrentavam arremedos de estradas daqueles cafundós. Os caminhões levavam de tudo. Geladeiras a querosene, lampiões a gás, fogões, bicicletas... qualquer coisa, inclusive sapatos e chuteiras Ki-chute. E no dia em que o caminhão chegou, meu pai disputou a última chuteira disponível do caminhão. Quatro números a mais do que o tamanho ridículo que eu usava. Só serviam nos pés do meu irmão. E mesmo assim, ele usava um meião grosso para aquilo não escorregar dos pés. Os cordões enormes, trançados feito uma sandália grega, completavam a garantia de que o Ki-chute não deslizaria para fora, no primeiro chute. Era uma proeza alguém conseguir jogar bola com uma chuteira tão folgada. E era um milagre jogar bola tão bem quanto meu irmão com um treco daqueles nos pés. Mas eu era o pior cego. Não queria ver.
Aquela foi a última chuteira do caminhão. Ninguém sabia quando outro caminhão iria aparecer. Meu pai, que também sempre agiu como perfeito juiz com os filhos, com a parcimônia equânime e igualitária de suas atenções, só conseguiu um único par de tênis para mim. Era uma conga. Azul marinho. Tamanho 30. Nunca esqueci. Fiz ceninha quando ganhei. Joguei a conga longe. Eu também queria uma Ki-chute. As explicações não me satisfizeram. Ameacei sair de casa. Minha mãe achou graça. Eu tinha uns sete anos. Fiquei sentado num monte de terra na frente da casa. Meia hora depois eu voltei para casa.
_Ué, você não ia sair de casa? – zombou a minha mãe.
_Fiquei com sede. Mas já vou embora. – e tornei a sair.
Mais meia hora e entro de novo.
_Pede desculpas pro seu pai e corre para o banho.
Fiz como mandado. Mas continuei com a história das chuteiras mágicas na cabeça. E meu irmão brilhava nos gramados. Jogava até em time de gente maior. Driblava, driblava, armava jogadas incríveis, passava a bola com maestria e segurança. Era um craque. E quando marcava gol, fazia como o Pelé, um soco preciso no ar.
Eu era míope e invejoso. E tinha umas congas para jogar bola. Mas um dia, eu apelei e fui jogar de botas ortopédicas. Naquele dia, eu corri como o vento. E chutei canelas como um criminoso de guerra. Mas o mais importante é que eu chutei mais forte do que nunca e marquei três gols de fora da área. Até o meu irmão me elogiou. Eu, de repente, amava aquelas botas ortopédicas mágicas. Eu nunca mais iria me queixar delas. No dia seguinte, eu jogaria novamente com as botas. Eu iria me tornar o novo rei do futebol. Cheguei em casa, radiante, eufórico, mais leve que o ar. E assim que abri a porta do quarto, meu pai disse:
_Chega de botas! Adivinha quem ganhou uma Ki-chute nova?

10 comentários:

Anônimo disse...

careca! também usei botortopédica!
putis, a gente é super parecido.

macost disse...

Tá certo Forrest Gump: a infância e adolescência são cheios de percalços né nao?
Então, como o que, "as" congas são as suas madeleines? :)

Anônimo disse...

"Fiquei com sede. Mas já vou embora."
Amo esse tipo de resposta que só uma criança daria...

Bela história!

Careca disse...

Franka, eu uso o outro banheiro. É uma diferença e tanto.
:)

Careca disse...

Maria, percalço, descalço, cheios de infância e adolescência. Madeleine? Eu acho que não perdi nada. Só ganhei.
:)

Careca disse...

Mawá,
também curto muito!
:)

Anônimo disse...

Careca, adorei o post. Hoje não usa mais botas ortopedicas, e sim palmilhas com tenis de cano alto. Meu filho que atualmente calça numero 30, usa. Uma luta para convenc-lo a usar o tenis de cano alto, e não aqueles modelos com luzinhas piscantes que aprecem uma discoteca.
Quero mesmo saber se vc ainda tem pés chatos?Melhorou? Posso ter esperanças? À proposito, ele também dá chutes, e é vingativo. Será que ele vai ser careca?
Abraços
Valéria

Careca disse...

Valéria,
de acordo com minha mãe, os meus pés eram superchatos. Depois das botas, eles deixaram de ser insuportavelmente chatos. Hoje eles são chatinhos. Ou seja, para quem era prancha, curvou um tanto assim. Melhorou, melhorou.
Sou careca mas tenho pêlos no dedão do pé. Um horror.

Anônimo disse...

ah, careca, kichute também é homem, viu?

Careca disse...

Franka, as chuteiras Ki-chute homens eram todas GLS - Ganhamos Levadas por tráS.

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