segunda-feira, 10 de março de 2008

Manteiga derretida



O Humberto é um apresentador de jornal da TV. Super gente fina e louco. Um e oitenta e nove, já foi boa pinta, mas pensa que ainda é até hoje. A TV ficava perto da rodoviária, o lugar mais movimentado da cidade. Toda vez que estávamos na calçada, a fumar um cigarro fora do estúdio, o Humberto, com sua aparência de bem sucedido, era abordado pelos pedintes de plantão. Geralmente acontecia na volta da ida ao carrinho de salgados e caldo de cana.
_Moço, vê um troco?
O Humberto parava e olhava para mim.
_Tô vendo. Esse careca aqui foi trocado na enfermaria – ele dizia, só pra me sacanear.
_Moço, um trocado?
_Comigo é só autógrafo. Pede dinheiro pro Careca. Ele é que tem grana – dizia, sério, o Humberto.
_Moço, ranja um dinheirim?
_Carecas não ranjam. Careca é ponto de referência. Vira no Careca. À direita do Careca. E comigo não tem grana. Mas se quiser um salgado é só falar aqui com o Júnior – eu dizia, conduzindo o indivíduo até o dono da carrocinha de salgados. Era fantástica a quantidade de comida que o Júnior vendia em troca de umas moedas.
_Mas eu não quero comida, quero um trocado.
_E mendigo escolhe? – atropelava o Humberto.
_Você tem que estudar mendicância, rapaz. Tá pensando o quê? Cheguei, pedi e ganhei? – ele emendava.
_Não, não é assim mais não. Agora tem que ter objetivo definido. Metas a alcançar. E depois, o sindicato não aceita qualquer um não. Mendigo, nessa cidade, tem que ter um mínimo de profissionalismo – arrematava o Humberto.
Esse tratamento tinha uma razão de ser. O Humberto achava que alguém tinha que treinar aqueles sujeitos para que fossem capazes de suportar os mais cruéis e truculentos do que nós. Estávamos todos apavorados na cidade que tinha acabado de queimar um índio mendigo, “só de brincadeira”.
E embora não exista uma maneira de se preparar alguém contra a truculência, o Humberto se considerava um testador de pedintes. Ele sinceramente acreditava que poderia aumentar as chances de sobrevivência de qualquer um. Se o cara se saísse bem ao pedir dinheiro para ele, estava aprovado como mendigo, ganhava pastel, caldo de cana, tapinha nas costas. Se não fosse aprovado, eu é que pagava.
Às vezes, só de olhar para o mendigo o Humberto desistia:
_Careca, paga um salgado pra ele – dizia, sem esconder o desagrado.
Às vezes, a conversa ganhava um rumo triste:
_Mendigo tem que estar preparado para agüentar desaforo, rapaz. Tem gente nesse mundo que faz xixi na cabeça dos outros. Tem que ser forte, não pode ser assim não – ensinava o Humberto.
E é lógico que alguns, os mais humildes, não entendiam nada.
_Não ganhou diploma, né? – eu falava pro cara.
_Que diploma, Seu Careca?
Mas na maior parte das vezes eu estava ali para segurar a onda do Humberto:
_Liga não, esse cara é louco. Pega lá um pastel. Ô Júnior, dá um combinado aqui pro rapaz. Amanhã eu acerto.
Se os mendigos fossem lâmpadas, o Humberto seria uma espécie de soquete ambulante. Ele era capaz de dizer quem ia demorar na rua e quem ia se mandar rapidinho. E ele dava conselhos aos pedintes.
_Mendigo de verdade, não fica parado na mesma rua. A solidariedade da segunda é a raiva da terça. Tem que variar. Mendigo não dorme no ponto. Fica esperto – explicava ele.
_Moço, dá...?
_Não, você não fala “dá” de jeito nenhum. Tem que ser “arruma”, “me vê”, “arranja”... de preferência, comendo pedaços das palavras. “Ruma, mvê, ranja”. E nada de falar “ajuda”. Ninguém ajuda ninguém. Nem “auxílio”. Quem “auxilia” não tem trocado, nunca. Auxílio é coisa de igreja. Aqui é rua, é calçada. Careca, paga um pastel pro rapaz – doutrinava o Humberto.
E ele procurava manter o ambiente competitivo.
_Ôpa, opa, opa, opa... Você de novo? Tem que dar chance para os outros, ô cara. Não pode ser você todo dia. Se mendigo não for bacana com mendigo, quem vai ser? O guarda? Não, não pode ser assim, não. Careca, paga um combo pra ele.
Desse modo, havia um relativo rodízio de mendigos. Mas também havia os contumazes. Os mendigos que não largavam o pé, que passavam semanas, às vezes até o mês inteiro por ali. Esses, o Humberto adivinhava com uma olhadela.
_Você quer dinheiro pra quê? É pra encher a cara?
_É pra comprar comida.
_Então não dou. Careca, um combinado para esse mala.
O mendigo ficava ali, atônito. Mas depois, não sei como, os caras tinham um estalo e sacavam.
_Moço, rúmaum troco?
_Excelente pronúncia! Muito bem! Troco pra quê?
_É pra comprar pinga.
_Tome aqui, infeliz. Está estragando o fígado que poderia vender.
E o cara saía feliz da vida, como se tivesse enganado um trapaceiro.
Ou então:
_Moço, rúmamueda?
_Bela dicção!Moeda pra quê?
_É prum picado.
_Toma e compra um estoura-peito.
Era um sorriso que ainda vejo nas fotos de aprovados em vestibular.
Uma vez eu disse para o Humberto que ele, no fundo, era manteiga derretida.
_Careca, você não entende de nada! Ô Júnior, rúmumpastéuprelaqui!

6 comentários:

macost disse...

Careca
vc e seus amigos são antropologos? rs
Não deixa de ser, nénaum?
sds
Maria

Careca disse...

Maria, o Humberto é antropólogo, antropófogo e misantropo. Eu procuro sobreviver.
Abraços,

macost disse...

Po careca, meu comentário sumiu! Caramba! 8xpxrs%%%##$$#@!!!
Eu dizia que o Humberto é tbem filantropo (com o SEU dinheiro, me parece) e que discordava da misantropia dele: ele não é o manteiga derretida? Como é isso? Careca, tu tá a fim de me confundir...rs
sbs
Maria

Careca disse...

Maria, a confusão não é proposital. Minha memória é uma droga. Inclusive, acho que estou devendo um pastel pro Humberto...

Anônimo disse...

marketing é tudo.

Careca disse...

Mas tem que fazer bem feito.

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