segunda-feira, 24 de março de 2008
Heróis da TV
_Careca, a TV está lá embaixo, corre!
E eu fui, atrás do Jô. Eu devia ter uns dez anos. Nunca esqueci. Era uma reportagem sobre os bueiros da cidade. As tampas de metal estavam sumindo. Misteriosamente, essas tampas estavam aparecendo às toneladas nos ferro-velhos, nas oficinas. E os bueiros continuavam sem tampas. E as pessoas começavam a cair nos bueiros. Eu sabia. No dia anterior, uma vizinha havia caído e quase quebrado a perna.
O Jô, menino da minha idade, já estava do lado da repórter. Um sorriso maior e mais largo que o próprio pescoço. E a repórter já estava dirigindo o Jô, montando a cena.
_Você olha para o buraco e aponta, mas sem rir.
E o Jô olhava para o buraco e ria, descontrolado.
A repórter teve uma outra idéia. Mandou o câmara entrar dentro do bueiro. Uma operação complicada à beça. A câmara era enorme. Depois de algum esforço, tudo pronto para filmar. O Jô coloca a cabeça dentro do buraco. Tira a cabeça. Sempre rindo.
A repórter acha que tem pouca cabeça. E me chama para também fazer a mais coisa. Eu e o Jô olhando para a câmara dentro do bueiro. Ficamos ali um bom tempo. Olhando e fazendo caretas. Aí ficou bom. E o câmara saiu do buraco.
E depois a repórter fez perguntas, muitas perguntas.
Eu gaguejei respostas breves. S-S-S-im. N-N-Não.
O Jô deu respostas seguras, completas, em frases inteiras.
_Um caminhão quase quebrou o eixo aqui, ontem. A roda entrou inteira. Precisou esvaziar o pneu para sair. E a vizinha, a Dona Neuma, ainda está no hospital. Minha mãe disse que ela quase partiu o fêmur. Isso aqui é um perigo! E minha bola de futebol também já era...
Os olhos da repórter brilhavam, entusiasmados. O Jô era uma alegria contagiante.
Comigo os mesmos olhos murcharam.
_N-N-ão.
Eu não conseguia articular nada. A repórter desistiu de mim. Olhou para o relógio e fez sinal para o câmara. Foram embora em cinco minutos.
Ao meio-dia, todo mundo em casa estava na frente da televisão. Quase no final do telejornal, apareceu a reportagem. A repórter entrevistou um monte de gente, filmou uma porção de buracos. De repente aparece o Jô. E todos em casa aumentaram a torcida. O próximo só poderia ser eu. E o Jô fala dos caminhões, da vizinha, do perigo e da bola de futebol. Cadê eu? Nada. Mais gente falando. Outros meninos, outros adultos. E aí acaba a reportagem. Decepção geral. Eu não falei que ia aparecer? Cadê eu? Meus irmãos estavam me vaiando quando de repente, sob os letreiros do jornal aparecem as duas cabeças, a minha e a do Jô, olhando para dentro do bueiro. E as vaias se transformaram em vivas e gritaria geral de alegria. E enquanto apareceu letreiro, eu e o Jô aparecemos na tela da TV, rindo feito bobos. E sob nossos olhos de crianças, olhando para a tela de TV, estava a minha família e eu. Nunca estivemos tão juntos quanto naquele tempo.
No dia seguinte, o buraco estava com tampa nova colocada.
E durante mais ou menos uma semana, eu e o Jô fomos os heróis da criançada e até dos adultos da vizinhança.
Quem iria fazer reportagem sobre tampa de bueiro hoje em dia?
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2 comentários:
careca, eu já fui entrevistada duas vezes na rua. falei tanta idiotice que nesse dia desliguei a teve e nunca contei pra ninguém. eu tenho o negócio do l´espirit da escada, e só sei falar a coisa certa depois que acontece. que a polícia não saiba disso.
Franka,
eu também já subi em escada, mas nem sabia que elas também estão numas de Alan Kardec. E em francês!!
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