quinta-feira, 27 de março de 2008
O Careca acorrentado
Estou seminu, acorrentado a uma rocha no alto de uma montanha. As costas coladas na pedra. As mãos amarradas atrás das costas. Os pés presos a estacas separadas. É uma posição cansativa e dolorosa. Tenho que flexionar as pernas, jogar o peso sobre os joelhos. Se não fizer isso, vou acabar partido ao meio. Não consigo ver nada direito. Meus olhos estão embaçados, quase cegos. Gotas de suor aumentam o ardor e a cegueira. Sinto uma dor atroz no lado direito, nas costelas. Sinto o cheiro de fezes e urina. Tenho medo de olhar. Posso sentir o sangue escorrer quente e pegajoso pela barriga, pelas pernas. Sem ver, sei que o chão está empapado de sangue.
Ouço o ruído nauseante das moscas varejeiras. Já não me importo muito com elas. Sigo com os olhos um brilho verde metálico. Penso, com horror, que a coisa balançando à esquerda é o meu intestino. Mas não consigo querer ver nada. Aí, de repente, venço o medo de ver e olho. E grito.
Para ele, é um chamado. Mais um. Ele vem, o abutre, para recomeçar o seu trabalho. Bica com fúria o buraco entre as costelas. Sinto dor, mas o horror é maior. E o horror vem das penas, molhadas com meu sangue. As pontas das penas que esvoaçam por todos os lados. Que espanam o sangue vermelho das minhas veias. As penas que espalham a minha hemorragia. Tenho horror do cheiro dessas penas. E depois que devora o que resta do fígado ele finge que parte. Mas é só um vôo curto, para pegar novo impulso. Depois de mergulhar novamente, o bico parte uma costela, a menor. É estranho agora, pois não sinto dor. Mas ainda tenho medo. E enjôo. Como se pode ter enjôo sem estômago?
E o horror também vem dos olhos. De ver os olhos do abutre, um de cada vez. Ele me espia e se alimenta também do meu medo de ver. Ele bica onde antes ficava o fígado. E depois vira a cabeça de lado. E me examina com um olho. Então bica de novo. Vira a cabeça do outro lado. E me observa com o outro olho.
Na verdade, agora é como se escavasse em outra pessoa. O abutre parou. Sinto uma grande massa pegajosa escorrer entre as minhas pernas. Tenho nojo do meu próprio fígado dilacerado? Não. Não sinto nada. Sei que ele me observa. Mas ainda não tenho coragem de olhar para o abutre. Quando o faço, parece que vejo um sorriso em seu bico ensangüentado. É estranho. Os olhos amarelos do monstro irradiam felicidade. E eu desisti de mim mesmo. Estou estranhamente em paz.
No dia seguinte, eu grito de alegria quando ouço o bater de suas asas.
É, nunca mais misturo Kafka, Campari, Grappa e Steinhegger antes de dormir.
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12 comentários:
Ô careca
que fantasia é essa de prometeu? caramba...pára de beber homem de deus!
Maria,
acho que foi a azeitona. Ou o pistache. Ou os dois. Vem cá, pra você Conga, de calçar, é HOMEM (o Conga) ou MULHER (a Conga)?
O conga, i.é, é menino! Tive vários quando menina. Depois mais alguns num período mais recente pq viraram moda.
A conga é dança!
;)
Maria,
puxa vida, odeio admitir que estou errado, mas você está certa quanto aos Congas. No entanto, para a Franka eu vou dizer que os Congas do meu tempo eram que nem os anjos, ninguém sabia o sexo.
como assim não tinham sexo? num lembro disso não...mas como já saquei que sou mais velha que vc (não mucho, nao mucho), vai saber o que aconteceu com os congas depois que deixei de usá-los né? são gls, tipo assim?
;)
Não, GLS é Garotas Legais dizem Sim. Congas ninguém sabia o sexo. Uma hora você dizia "Não pisa no meu conga!". E depois você dizia, "Ih! A Conga está molhada!Leva a Conga pra secar". Coisas assim.
Ô Careca, que viagem foi essa...
Seguinte: tente ficar só na grappa e no steinhegger. De tempos em tempos peça um chope para manter a temperatura interna aceitável. Ah, e troque o Kafka pela Playboy da Claudia Ohana. A original, claro. De repente vc se livra das correntes, do abutre e - melhor - do Campari. E ainda corre o risco de sonhar com a peruca amazônica. Vale o risco?
Paulo,
obrigado pelo conselho. Campari, realmente, só não é pior que iogurte de feijão. Também acho aquelas fotos da Ohana muito intelectuais.
Olá.
Gostaria de mandar um e-mail, uma vez que não se trata de comentário a respeito do texto. É possível?
Obrigada.
Suzana,
todas as mensagens do meu e-mail são minuciosamente examinadas pela Patroa, minha esposa amada. Ela procura por manchas de batom até em spam. Então, é claro que é possível você escrever o seu e-mail num comentário. Eu leio tudo antes de publicar. E, se ela não descobrir e mandar uma mensagem desaforada, eu respondo.
kill da vulture!
Leila,
vou matar o abutre de raiva!
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