sábado, 19 de fevereiro de 2011

Capitalismo selvagem

Preparar o lanche das crianças todos os dias, bem cedo, é um pouco chato. E preparar o lanche à noite, antes de dormir, é ainda mais chato. Especialmente se você faz um sanduíche quente ou alguma coisa que é melhor servida na hora, mais fresco e mais gostoso. Um suco amanhecido, por exemplo, nem se compara ao sabor do suco feito uma ou duas horas antes de ser servido. Deixar o suco pronto à noite para levar no dia seguinte ainda enfrenta o grave problema do vazamento do suco na mochila. As garrafas térmicas ou qualquer tipo de garrafa que você envia para a escola, na mochila das crianças, não são à prova de vazamento. E como diz a Lei de Murphi para as garrafas térmicas, se uma coisa pode vazar, ela vai vazar.

Pensando em tudo isto e em mais um monte de coisas associadas, como a preguiça, a falta de vontade, a distração, o esquecimento e o comodismo, eu e a minha mulher decidimos experimentar o serviço de kit-lanche da escola não muito alternativa das crianças. A lanchonete da escola está sob nova direção, com nutricionista, pessoal treinado e lanches relativamente baratos.

Decidimos experimentar o kit-lanche. Na segunda-feira, passei na lanchonete para acertar uma semana de testes. A moça que me atendeu era muito simpática e estava toda paramentada de acordo com os padrões técnicos de higiene, conservação e limpeza. Touca no cabelo, máscara, uniforme, avental, luvas descartáveis, luvas nos pés, ela parecia pronta para entrar na UTI de um seriado norte-americano.

_Oi, eu gostaria de adquirir uma semana de kit-lanches para duas crianças, uma do primeiro ano e outra do terceiro ano - eu disse.

_Fica mais barato dez por cento se você comprar o mês inteiro - disse a moça, abaixo a máscara.

Tinha um sorriso bem bonito no rosto, que transparecia uma certa ingenuidade. Tenho horror a paternalizar as pessoas, mas a moça parecia uma novata recém-admitida, ainda sem tarimba, enfrentando as provações do primeiro emprego. O fato de ter um crachá com o nome "Cléo" escrito à mão, em letra trêmula, contribuiu para essa impressão. O jeito como olhava para a tela do computador e a maneira desajeitada com que começou a clicar e teclar também aumentou a minha certeza de que a moça estava em pleno período de experiência contratual.

_Fica em R...- ela me disse.

_Não, você se enganou, fica em R+X - eu disse.

_Ah, é. Esqueci de incluir o de hoje - ela disse.

_Sim, não tem problema - eu disse.

_Vai ser no cartão? - ela disse.

E nesse instante eu decidi que o melhor era não complicar a operação e pagar em dinheiro. Eu tinha a quantia exata no bolso.

_Não, vai ser em dinheiro - eu disse.

E depois disso a moça registrou cada kit-lanche, um por um, na registradora super-informatizada. Os dez tickets ficaram ali, ao lado do caixa. Eu estendi o dinheiro, que ela contou cuidadosamente e colocou com cuidado, separando as notas por valor e também as moedas, dentro da registradora.

-Pronto - ela disse. E abriu outro daqueles sorrisos generosos, de bom coração.

_Ótimo. Não vai me dar os tíckets? - eu disse.

_Oh, não. Isso é para o meu controle - ela disse, com o sorriso no rosto.

_Oh!- eu disse. Sempre achei "Ohs" e "Ahs" muito contagiantes.

_Então, tá. Tenha um bom dia - ela disse, sorrindo.

_Claro, claro. Mas agora eu estou me lembrando que não tenho nenhum comprovante de que já paguei pelos kit-lanches - eu disse, apontando para os tickets.

_Ah, mas o senhor pode confiar, já está pago, eu não me esqueço de nada - ela disse.

E para acentuar o "nada" ela fez um gesto com a mão, como se batesse com os nós dos dedos na madeira. E o sorriso também ficou mais firme e aberto.

_Claro, claro. Mas eu vou escrever nesse seu bloco aqui que paguei R+X pelos kit-lanches de hoje até sexta-feira para meus filhos na data de hoje e você rubrica aqui, assim, está vendo? É só um recibo - eu disse.

E assim fiz. Escrevi na folha e estendi para a moça rubricar em cima de onde eu tinha escrito Cléo. Ela puxou a folha e pareceu ler. Depois fez um rabisco sobre o nome, dobrou o papel e colocou no bolso.

_Obrigada - ela disse.

O sorriso dela permanecia ali. O ar ingênuo também.

_Pode confiar - ela disse.

Decidi que o melhor a fazer era seguir o fluxo natural das coisas. Agradeci efusivamente, com o melhor dos meus sorrisos, e tentei repetir o gesto de bater com o nó dos dedos na madeira invisível, igual ao que ela fez.

As crianças gostaram do kit-lanche.

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