terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

O cantor no banheiro 3

Um. A vida inteira eu fui obcecado com uma coisa de cada vez. Monomanias. Um time. Uma canção. Uma paixão. Um. Uma coisa de cada vez. É que para mim é quase impossível pensar mais de uma coisa de uma só vez. E eu queria que a minha vida fosse assim, linear como o pensamento. Lógica. Como a escrita de uma linha. Mas sempre foi diferente, é claro. Embora a cada instante das entrelinhas, só seja possível ser eu mesmo e um só. Ainda assim, a vida extravasa as minhas míseras capacidades. E sempre extravasou as minhas linhas. E por isso nunca fui só um. Embora sempre seja o que me escrevo. Mas é sempre diferente.

Outro dia estava folheando um livro da Taschen Editora. Era uma edição completa das obras de Van Gogh. Outra das minhas monomanias. Ao longo dos anos, já adquirir esse livro umas cinco vezes. Alguém me pede emprestado e ele desaparece. Em geral, é quando estou no meio de uma conclusão bastante animadora sobre a obra de Van Gogh. É como se o livro desaparecesse quando estou prestes a descobrir um sentido não somente para a vida de Van Gogh, mas também para a de Gauguin. E também para a minha. Embora eu não seja pintor. E nem mesmo seja artista. E nem me angustie tanto.

Fiquei muito tempo observando, por exemplo, os auto-retratos de Van Gogh neste livro. São dezenas de auto-retratos. A princípio eu considerei, erroneamente, que os inúmeros auto-retratos de Van Gogh derivassem de algum tipo de narcisismo. Uma espécie de monomania de si mesmo. Mas esse é o pensamento de um ignorante. Van Gogh era pobre. Não podia pagar modelos. Então pintava a si mesmo, olhando para um espelho. Às vezes, nem era um espelho. Era o reflexo na bacia dágua.

Assim, depois de muito tempo e observações, aperfeiçoei o meu juízo. Tantos auto-retratos derivavam da necessidade que Van Gogh sentia de pintar. Mais importante que o tema, o que importava era como ele estava se pintando. Mais importante que o como, era quando ele estava pintando. E mais importante que o como e o quando, eram as cores que Van Gogh estivesse usando. Céus! Mas isso só era possível descobrir depois de se ler algumas das mais de seiscentas cartas que ele trocou com o irmão caçula, Theo. E só depois disso, é que era possível saber que além da escolha absolutamente deliberada de cores, havia a grossura e a direção das pinceladas. Cada retrato ganha uma dimensão única, porque a cada um corresponde uma ou várias cartas, repletas de descrições e análises cuidadosas e de comparações com outros artistas e quadros, seguidas por comentários detalhados e sensatos do irmão Theo. E cada auto-retrato é a imagem fiel e fidedigna de Van Gogh.

Embora eu não tenha talento para a pintura, a vida de verdade, até mesmo a minha, é mais de uma. Ela é tantas vezes quanto os meus olhos que a observam. E em todas é diferente. Do mesmo modo, a verdade nunca é só uma. E um enredo é só um pretexto para se falar de qualquer coisa, menos daquilo que realmente nos aflige.

Foi com essas coisas na cabeça, debaixo do chuveiro, que outro dia, distraído, pude ouvir novamente o cantor no banheiro. Ele interpretou “O Sole Mio”. Eu só conhecia a versão do comercial da televisão: “Dá-me um corneto”. Foi uma bela interpretação. Ao final, terminei ajudando o cantor, com um assovio no refrão. Pelo duto da ventilação ouvi alguns aplausos de outros moradores. Tenho certeza de que alguém, lá no sexto andar, gritou : Bravo!

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