sábado, 23 de junho de 2012
O observatório
(...)"Durante anos nós nos esforçamos para permanecer num canto obscuro, produzindo o mínimo com o mínimo de esforço, mas com competência, sem deixar margem para questionamentos. Todos nós possuíamos aquele "feeling" para os limites toleráveis de produtividade: nunca aquém e jamais, em tempo algum, almejar o destaque de produzir um pouco além do que seria considerado normal. Chamar a atenção era um erro crasso e primário. Para os tolos que se esforçavam ao máximo, sabíamos de antemão que o futuro lhes reservava uma glória efêmera e um ostracismo duradouro. Seria burrice apressar a chegada dos tempos difíceis. O que nós queríamos e protegíamos essa conquista a todo custo, era o conforto adorável da mediocridade. Para isso, nada melhor do que aprimorar o uso dos jargões e de aprofundar as discussões sobre as menores tecnicalidades."(...)
(...)"Permaneci algumas semanas encerrado em meu cubículo. Escrevia regularmente os relatórios solicitados, às vezes deixando propositalmente pequenos erros de digitação bem evidentes, ignorando o corretor ortográfico do computador. Mas aquele novo pedido exigiria um esforço extra. Eu não poderia falhar.(...)
(...)Desta forma, meu chefe imediato poderia apontar alguns problemas e fingir discutir de forma inteligente comigo, de portas abertas. Durante a conversa ele naturalmente encontraria posição bem visível e audível do lado de fora da sala para pontuar alguns parágrafos e discutir regências verbais ou uma outra firula qualquer. De qualquer forma a encenação seria feita para que ele pudesse deixar claro que havia me corrigido. Era por isso que era o chefe. Ele, por sua vez, deixaria passar outros dois ou três erros para que o supervisor os corrigisse e procedesse da mesma maneira em nova reunião de portas abertas a outros olhos e ouvidos atentos.(...)
(...)Ao chegar à avaliação final do assessor do presidente da empresa, novos erros teriam sido inseridos por supervisores mais especializados em fazer somente o que agrada aos superiores e no final todos ficariam contentes com um texto medíocre e repleto de obviedades, muito parecido com uma série de outros relatórios insossos e monótonos estocados no porão. Mas antes disso, garantida a aprovação final do presidente da empresa na data limite para uso do recurso disponível, seria preciso imprimir e fazer publicar os extensos relatórios a toque de caixa."(...)
(...)Naquele porão infecto, depois de mofar por alguns meses, o material seria enviado para lugares distantes da mala direta desatualizada que custara uma fortuna. Uma vez, por erro de alguém, fui escalado para uma visita técnica para um lugarejo distante, onde deveria verificar o andamento de um dos projetos mal sucedidos que desenvolvíamos. É evidente que não questionei o erro, viajar para trabalhos técnicos está estritamente dentro do limite tolerável da produtividade, até porque as viagens são, em geral, desnecessárias. (...)
(...)Cumprida a via crucis da coleta de assinaturas nas solicitações e autorizações para a viagem, o que também está dentro da faixa mais autêntica da produtividade tolerável, viajei para o tal lugarejo na companhia de outros dois funcionários, a quem conhecia superficialmente. Durante todo o percurso, que demorou quase um dia inteiro entre aeroportos e carros alugados para chegar ao lugarejo, conversamos sobre aspectos técnicos da vistoria. (...)
(...)Os dois funcionários obviamente me consideravam um outsider e me crivaram de perguntas sobre a legislação afeita ao projeto, além de longas digressões sobre decisões de avaliações e de prestações de contas. É lógico que falei o mínimo possível, não só porque era e sou totalmente ignorante sobre as coisas de que falavam, mas porque sabia que bastaria o meu olhar distante e superior, somado a um permanente sorriso de escárnio para que ficassem convencidos de que sabia muito mais do que o conhecimento dos dois somados. E de qualquer forma, aquilo para mim era desimportante. Afinal, eu já havia insinuado que estava ali não para a realização da vistoria, mas para me assegurar e certificar junto ao supervisor de ambos, que eles estavam perfeitamente aptos a desempenhar o papel que lhes competia. "(...)
(...)Ao entrar na sala, não pude deixar de notar o meu relatório sob um dos pés da mesa onde o prefeito esparramara pastas e papéis. Percebi então que o meu trabalho, afinal de contas, servia para alguma coisa.(...)
(Trechos de "O observatório", uma pequena novela na minha gaveta.)
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