domingo, 17 de junho de 2012

Cartão de presente



Alicia Keys and Jack White - Another way to die

É só uma impressão, é claro, mas às vezes acho que tudo nos convida à imobilidade. A profusão de coisas já criadas, toda a explosão de criatividade e inventividade alheia é um belo convite para ficarmos parados. Somos acostumados a ser apenas consumidores, espectadores, ouvintes, leitores, provadores, degustadores, etc. Eu mesmo gosto muito de ser leitor, especialmente porque dá menos trabalho. Mas já desenvolvi o hábito de escrever diariamente, o que me garante a dose diária e necessária do exercício da liberdade de pensamento. Sem isso, o dia não termina bem.

Demorei a tomar consciência de coisas simples e elementares associadas à escrita. Uma das primeiras coisas é que, como qualquer outra atividade física, escrever exige um pouco de aquecimento antes de se partir para a coisa em si. Às vezes realmente dá certo de primeira, mas em geral é preciso desistir e jogar fora algumas linhas ou mesmo parágrafos e folhas inteiras. Isso pode ser especialmente frustrante se você jogou dezenas de linhas fora durante a noite e o relógio marca que já passa da hora de dormir. Mas a escrita também surge da análise e superação diária das frustrações mais íntimas, dos pensamentos mais tortos e desatinados que temos a todo instante, então deixe de frescura e trate de rabiscar logo as suas coisinhas.

Também demorei a descobrir que não adianta enfrentar o relógio e deixar a canseira de lado. O corpo e a mente cobram todos os nossos esforços, o melhor, pelo menos para mim, é retomar a coisa no dia seguinte com disposição renovada.

Uma das maiores besteiras em relação a escrever é tentar evitar o clichê em nome da originalidade. Esqueça isso. Primeiro é preciso escrever, só depois de se ler tudo, dias, meses ou anos depois é que a avaliação quanto à originalidade deve ser feita.

Todas essas questões, é claro, surgiram quando eu estava pensando num cartão de presente de casamento do filho de uma grande amiga.

_Felicidades ao jovem casal - eu escrevi, depois de garatujar uma dúzia de folhas A4.

Mostrei para a minha mulher com um ar de triunfo.

_Putz, tem dois dias que você tenta escrever este cartão e só conseguiu quatro palavras? Me dá isso aqui - ela disse.

_Talvez fosse melhor só "Felicidades ao casal", né? É óbvio que ele são jovens - eu disse.

Ela disse que não e num instante redigiu um belo cartão de presente de casamento, uma daquelas mensagens edificantes que parecem tocar o coração da gente e de repente, de tão bonitas, agarram uma carótida e apertam até doer um pouco e a gente se sente mais humano e cheio de esperança de que existe mesmo a felicidade e é preciso sempre pensar na propagação da espécie.

_Uau - eu disse.

Talvez seja mesmo simples assim: quem pensa sobre suas frustrações, pode escrever sobre elas; quem se permite pensar em coisas maravilhosas será capaz de escrever sobre elas.

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