segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

A pessoa que é atacada



Vivem me atribuindo origens esquisitas. Acho que é por causa da careca. Tem gente que acha que eu sou nordestino. Eu não tenho sotaque de lugar nenhum. Tem gente que me chama de ateu. Eu rezo todas as noites o Pai Nosso e a Ave Maria. Tem gente que acha que eu sou de Minas. E eu não sei nem andar em BH. Um cara uma vez me chamou de mexicano. E não suporto guacamoles. Tem gente que me acha esnobe. O que é compreensível. Uma vez, na escola, uns caras me xingaram de palhaço metido. E eu até hoje não desmenti ninguém. Embora tenha brigado com os caras na escola. Aliás, foi naquela ocasião que decidi que não vale a pena apanhar por causa da opinião dos outros. Não mesmo. Especialmente se você estiver apanhando em minoria absoluta e sozinho. E ainda mais quando você tiver razão. E muito especialmente quando você está coberto de razão e os caras estão mais interessados em quebrar o seu nariz do que nos seus argumentos. E superespecialmente quando você está com a razão moral e os caras querem que você se exploda.

Eu e o Mr. Flowers estávamos conversando. O Mr. Flowers é metido a intelectual, às vezes. Eu acho intelectual um saco. Mas gosto de conversar com o Mr.Flowers. Em geral, ele é um dos poucos caras no trabalho que conseguem concatenar duas frases inteiras sem relação com o noticiário da TV. Eu, com o passar do tempo, cansei de falar do que se falou no noticiário da TV. Mas hoje o Mr. Flowers não conseguiu resistir:

_ Você só pode se defender como a pessoa que é atacada. Veja Israel em Gaza, por exemplo – diz o Mr. Flowers.

Ele acha que eu sou judeu. Ele pensa que eu sou judeu por minha própria culpa. Além de ser judaico-cristão, a eterna sensação de culpa é um traço cultural tipicamente português e brazuca. A verdade é que não foi culpa de ninguém, a não ser da promoção de preços. Eu tinha acabado de comprar uma reedição do livro de estréia de Philip Roth, estava com o exemplar na mão e tropecei no Mr. Flowers saindo da livraria, no shopping, logo depois da hora do almoço. Por falta de assunto e em resposta a perguntas triviais, acabei falando sobre o "Goodbye Columbus" recém-adquirido com o Mr. Flowers. Em cinco minutos, eu falei superficialmente sobre Bar Mitzvahs, secularização, relicários, solidéus, comida kosher e sionismo. Desde então ele acha que eu sou judeu.

_ Li essa frase brilhante - continua o Mr. Flowers - num dos artigos que andei bisbilhotando sobre a guerra na faixa de Gaza. Mas não tenho mais certeza, pode ter sido sobre Hanna Arendt ou sobre uma nova biografia da Susan Sontag. Tenho lido muita coisa e aí acabo perdendo a referência das coisas. Mas a verdade é que você só pode se defender como a pessoa que é atacada. O que você acha do que está acontecendo em Gaza, com os bombardeios?

O Mr. Flowers não é muito discreto. Ele atira nomes de autores judeus como João e Maria fizeram com as bolotas de pão, enquanto entravam na floresta. Acho que ele pensa em arrancar uma confissão minha. Ele espera que eu vire as costas para Meca, encare Jerusalém e diga que sou judeu. Embora eu não seja. Mas também não vou desmentir o cara. Não, senhor. É divertido observar as voltas que ele dá. Além disso, meu nariz ainda dói em dias de chuvas fortes. De qualquer forma, o passarinho aqui não quer saber de pelotas.

_ Mr. Flowers, eu digo, sou uma das pessoas mais ignorantes do mundo sobre as questões do Oriente Médio, sobre Israel, sobre a Palestina e o Monte Ararat. Então não vou meter o nariz, digo, o bedelho nessa discussão.
_Fica frio, que eu também acho essa coisa deprimente. Não vou lhe dizer o que eu penso sobre isso. Sobre a Hanna Arendt também não sei quase nada, mas tudo o que li dela e sobre ela sempre me fez pensar muito. O mesmo posso dizer da Susan Sontag, que escreveu genialmente sobre fotografia, só para mencionar um único tema. Mas sobre a frase posso falar. Mesmo fora do contexto.
_Desembucha, Flowers.
_A frase trata da melhor maneira de se responder a um ataque. E a frase diz simplesmente o que está dito. Se você é atacado por ser negro, você só vai poder se defender se assumir a sua negritude. Ou seja, não adianta dizer que é brasileiro, que aqui é tudo misturado e blá, blá, blá. Isso aí não é defesa a ataque. O mesmo vale para, em outro exemplo, o judeu. Se você é atacado por ser judeu, terá que se defender como judeu e não como um cidadão de Israel num mundo globalizado.

_Ah, é? E se te chamam de pederasta tricolor? – eu digo, só para provocar o Mr. Flowers.
_Deve haver algum engano, é claro – diz o Mr. Flowers. Mas, se não me sinto atacado, não há motivo para defesa. Eu não sou tricolor e sou um heterossexual convicto. Não preciso responder ao que não considero ataque.

Puxa vida, eu pensei, eu deveria ter conhecido o Flowers na minha época de escola. Isso teria me poupado um nariz e dois dentes.

_Hum! E se te chamam de muçulmano terrorista, te dão um prazo para acabar com o lançamento de foguetes e depois mandam bala e bomba em cima de você? - eu continuo, provocante.
_É complicado, Careca, mas sou simpático à causa...- começa Mr. Flowers.

_Supercomplicado- eu atalho. Mas e se a sua defesa tiver sido o ataque? - eu digo, levantando as sobrancelhas, como quem diz "Ahá! Agora eu te peguei!". Muito embora seja bem difícil expressar isso com um simples levantar de sobrancelhas. Não importa.
Mr. Flowers ainda não desistiu. Ele me olha com uma última pergunta presa na manga.

_Careca, que tal um almoço não-kosher?
_Hoje estou enrolado, não vou ter tempo de almoçar.

Nem deu tempo mesmo.

2 comentários:

Paulo Bono disse...

genial, careca. da primeira à ultima palavra.
grande abraço

Careca disse...

Bono, grande abraço.

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