sábado, 3 de março de 2012
Calúnias
Death Proof- Car crash scene - Tarantino
Resisto bravamente à oferta de dvds piratas. Já fui diferente, comprava sem o menor peso na consciência. Andava uptodate com os últimos lançamentos do cinema. Um dia meu filho me viu chegar com um dvd pirata e disse que aquilo era um crime. E me olhou com visível decepção. Era um princípio arraigado. De alguma maneira eu intuí que se eu argumentasse e desse uma desculpa qualquer estaria abalando a estrutura moral do menino para sempre.
_Você tem razão - eu disse. E botei a culpa no Tio Cabeça, é claro.
_O Tio Cabeça que me deu. Acho que ele não percebeu que era pirata - eu disse.
_Pai, é lógico que percebeu. Esse disco tem só uma capinha de plástico. O verdadeiro tem muito mais coisas. Até o papel é melhor e mais bonito - disse o menino.
A conversa me obrigou a uma ginástica arrumacional em casa. Peguei todos os filmes que acumulei durante esses anos e fiz um pente fino, só mantive os originais e legais. As minhas toneladas de pirataria foram sendo eliminadas aos poucos, devidamente destruídas, para não dar muito na vista e chamar a atenção das ôtoridades. Como todo mundo sabe, as ôtoridades daqui adoram ferrar com a vida de manés como eu, mas ficam cheias de dedos e não-me-toques quando se trata de enquadrar tubarões e larápios contumazes, até mesmo os que aparecem em vídeos embolsando propinas. De resto, o que me motivou mesmo foi o olhar do menino, não quero nunca ficar longe do seu coração.
Os anos se passaram e tinha me esquecido de que havia colocado o meu amigo Cabeça numa situação difícil imerecidamente. Ele estava com a moral abalada frente ao meu primogênito sem que soubesse e sem ter a menor culpa no cartório. Só me lembrei da história no dia de hoje, em pleno restaurante, quando entrou ali o vendedor de filmes piratas. Nesta cidade, um mané como eu corre o risco de ser eletrocutado numa blitz de Detran, mas um manezinho vendedor de pirataria circula com a maior desenvoltura e oferece sua muamba sem o menor pudor em qualquer lugar. Confesso que me senti tentado a resolver ali mesmo a minha defasagem cinematográfica em relação aos concorrentes ao Oscar. Mas não esqueço o olhar do menino e não gosto de esconder coisas.
Então fiquei ali, só observando a reação do Cabeça. O vendedor deu uma circulada pelo restaurante e depois de algum tempo chegou à mesa. Eu suspeitava que o Cabeça manifestaria uma verdadeira ojeriza à pirataria e temia que ele saísse no tapa com o ambulante das maracutaias. Puxa vida, eu tinha que arrumar uma maneira de pedir desculpas ao Cabeça, afinal de contas, lá em casa ele estava queimado com as crianças. Para elas, ele era o rei do dvd pirata, exatamente o oposto da vida real. Na minha cachola, eu já via tudo:
_Mas que absurdo! Isso é crime! Isso alimenta o crime organizado! Isso sustenta a rede de violência e bandidagem! Essa é a base do tráfico de drogas leves, pesadas e marijuana! Você contribui para o comércio de escravas! Leve essas coisas para longe daqui, xô! - diria o Cabeça, na minha antecipação das coisas.
Mas ao invés disso, ele me apontou com o dedo para o vendedor e disse:
_Não, quem gosta de pirataria é aquele cara ali, ó!
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