As primeiras histórias que eu me lembro de ter lido foram as fábulas de La Fontaine, com ilustrações de Gustave Doré. Algumas gravuras ficaram entranhadas para sempre na minha cabeça. A fábula da Assembléia de Ratos, por exemplo. Lembro com nitidez do amontoado de ratos na penumbra de um celeiro, as cabeças viradas para onde se adivinhava o gato. Mestre do claro e do escuro, abusando de linhas recheadas, Doré deixava um minúsculo ponto branco nos olhos dos ratos. Mas era o suficiente. E mesmo sem que se visse muito, os ratos estavam ali, às dezenas, o brilho dos olhos de cada um evidenciando o covarde horroroso fingindo coragem.
A fábula ensina a desconfiar dos pretensos valentes de plantão. Os ratos metidos se revezam em grandes discursos recheados de pérolas da oratória, latim e alemão. Mas basta um barulhinho para que todos eles disparem para suas tocas, esquecendo do guizo e de todas as bravatas.
As ilustrações de Doré também tinham um jeito bem interessante de mostrar os carneiros. Eram sempre novelos circunlinhados de lã, espreitados por lobos malvados, traídos pelos cachorros cruéis, julgados por leões gulosos. Os carneiros não tinham vez. Se davam mal em todas as fábulas. Sapos também se ferravam. A multidão, em todas as fábulas, é sempre estúpida. Fábulas são ensinamentos simplistas com uma síntese moral. São maniqueístas, mas nem por isso falsas e desimportantes.
Outra ilustração que nunca me saiu da cabeça mostrava o cordeiro, na parte de baixo na beira do córrego, prestes a ser devorado por um lobo monstruoso. O cordeiro era injustamente acusado de sujar a água do lobo. O carneirinho, humildemente, explicava para o lobo mau que aquilo era impossível porque ele estava na parte de baixo do córrego. Se alguém havia sujado a água, esse alguém era o lobo. O lobo então acusava os pais do cordeiro. Ele dizia que aquilo também era impossível, pois era órfão. O lobo então acusava os avós do cordeiro. E o cordeiro explicava que aquilo também era impossível, porque havia acabado de se mudar para a região, junto com o restante do rebanho. O lobo então lhe dava uma patada forte e lhe partia o pescoço. Contra a força, não há argumentos. Essa é a moral da história.
E sempre haverá de ser.
Ria muito quando os ratos valentões fugiam para os buracos do celeiro. Lembro de chorar de pena do carneiro. Estava nesse festival de lembranças, na hora do almoço, quando minha filha me perguntou o que é orvalho. Dei a explicação da condensação das partículas de água do ar, mas ela não se mostrou muito satisfeita. Então disse para ela perguntar para o avô, meu pai, que tem uma fascinante história de orvalho para contar.
_ E o que é fascinante, paiê?
E é como um novelo de lã. É como descascar cebolas. Como as bonecas russas, bonecas dentro de bonecas.
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