quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Um possível início



Nicole Atkins and the Black Sea "My Baby Don't Lie"

Caiu uma chuva forte e curta no meio da tarde. Rafa, o cãozinho shi-tzu da minha filha, havia aproveitado o portão aberto pelo jardineiro e escapado para a casa que fica em frente à minha. Meus vizinhos deixam o portão aberto o dia inteiro e o Rafa, quando tem uma chance, corre para lá por causa da cachorrinha deles. Nem sei qual é o tipo, mas acho que o Rafa é como todos lá de casa, mistureba total.

Na minha família tem de tudo, tem bisavó índia, avô negro, primo japonês, tio judeu, tio muçulmano, uns dois ou três turcos que curtem orixás, pelo menos um polaco e um nanico que se diz afro-indo-palestino mas que é louro e tem olhos azuis. Minha mulher tem sangue japonês, português, angolano e um tio budista que era milionário mas perdeu tudo o que tinha jogando dados. Sim, os conceitos também são todos misturados com as cores, religiões e ritmos na minha família. É uma zona.

Pois bagunça maior fez o Rafa quando correu para namorar a cachorra do vizinho e a chuvarada o pegou no meio do caminho. Num instante uma enxurrada forte se formou e Rafa, que é super-valente e só tem medo de raio, trovão, baixinhos de bigode e luz de lanterna piscando, ficou desesperado do outro lado da rua, latindo feito doido, a enxurrada grossa e forte descendo a rua.

O jardineiro correu para ajudar, mas o Rafa não queria saber de ajuda de quem não é da família. Latiu, rosnou e até ensaiou umas mordidas no jardineiro. Lá da garagem dava pra ver os olhos do Rafa, ele não queria ajuda de mais ninguém, tinha que ser a minha, eu vi. Então eu corri debaixo da chuva e pulei a enxurrada, porque de onde eu estava tive medo de que o Rafa caísse e fosse engolido por uma boca-de-lobo. As pernas do Rafa são curtinhas de dar dó, ele nunca conseguiria pular uma enxurrada daquele tamanho. Na verdade, no meu delírio apavorado, eu já tinha visto um cavalo, duas onças, uma cabra e dois tatus sendo levados pelo furor aquático da enxurrada.

Voltei com o Rafa nos braços e fui recebido como herói pelos meus filhos aos prantos, Rose( a governanta-cozinheira-babá-graduanda-trancada-de-assistência-social-bolsa-suspensa-coitada) e pelo jardineiro, que disfarçaram as lágrimas. É bem verdade que os festejos duraram pouco porque o Rafa deu uma daquelas chacoalhadas que os cachorros dão para se secar e molhou todo mundo. Eu não me importei porque já estava todo molhado, ou melhor, completamente encharcado e com um dos pés fazendo chap-chap-chap, a meia furada no calcanhar direito. Só faltava uma rã saltar da manga da minha camisa. Ali estava eu, o Careca no brejo. Feliz da vida.

Do mesmo jeito que veio, a chuva sumiu num instante, foi quase num estalar de dedos. Tlec. Só precisei trocar de camisa, um par de tênis secos, meias limpas e saímos para as atividades do dia. As crianças fazem natação e judô aqui perto de casa, mas não tem jeito de ir à pé. Era isso ou ficar uma hora para levar e outra hora para buscar dentro do carro. Preferi acompanhá-los. Essa coisa tão prosaica de levar as crianças para as atividades físicas me constrangia demais, eu me sentia super mal. Eu era o único homem a fazer isso, e na minha testa parecia estar escrito mané desempregado, era um horror. Mas no início eram avós, mães, tias e dodós, todas olhando para o papai aqui com o ar de alívio porque os maridos estavam em outro canto, trabalhando e ganhando dinheiro, não era como o mané aqui, careca, míope e com uma bolsa a tiracolo ridícula pendurada no ombro. Precisei erguer uma barreira de defesa mental muito alta, enchi um caderno de desenhos e estudei um pouco durante as aulas para superar aquele olhar altaneiro. Fiquei muito tempo dizendo para mim mesmo, você não é um mané, você não é um mané. Quase acreditei.

Mas talvez eu estivesse enganado quanto aos olhares do mulherio. Agora um monte de caras, alguns com muito mais cabelo do que eu, também estão aparecendo por lá, levando as crianças. Talvez as vovós, titias, mamães e dodós tenham me visto e exigido com os seus respectivos barrigudos que deixassem o campeonato europeu de lado e também mexessem os bumbuns e tratassem de acompanhar a molecada na natação e no judô. É, porque o número de homens à espera está quase igual ao de mulheres, todos nós muito circunspectos e sérios, folheando apostilas de concursos públicos, lendo artigos de jornal, livros, essas coisas. Ainda não desfrutamos daquela camaradagem íntima que só as mulheres conseguem estabelecer de primeira, no primeiro contato, discutindo capítulos da novela, falando de roupas e rindo das coisas bestas da vida com naturalidade e sentido prático. Mas quem sabe um dia não chegamos lá? Sim, alguns sujeitos já estão mais descontraídos, puxam conversa sobre política, falam sobre o julgamento do mensalão e ensaiam perguntas sobre futebol. Coisa pouca, insipiente ainda, mas é um início. As coisas têm que começar de alguma maneira, não é mesmo?

2 comentários:

Anônimo disse...

Tadinho do Rafa!! Careca Super Heroi!!! Eu também faria isso pra salvar meu Floyd!!

Anônimo disse...

By the way: Feliz Aniversário ainda não comemorado nem presenteado, viu?
MAira Vilhosa

Frase do dia