quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Deitando o cabelo para Uberlândia



Moby - Go

O velocímetro marcava cento e dez.

_No interior é assim. Ninguém diz fulano saiu em disparada. Não se fala pisaram na tábua. Não se diz a todo vapor. Mas todo mundo entende quando se diz que alguém deitou o cabelo para algum lugar.

_O que significa?

_O óbvio. Significa que correu muito, que foi a toda pressa, que acelerou ao máximo.

_Ah, velocidade! Por quê os homens gostam tanto de velocidade?

_Não, não, por favor, não transforma essa conversa despretensiosa num diálogo sobre a diversidade de gênero.

As crianças dormiam no banco de trás. Dormiam como só conseguem dormir as crianças, totalmente relaxadas, as cabeças quase soltas e os maxilares caindo de vez em quando.

_Mas é verdade, as mulheres não falam tanto de velocidade.

_Tem razão, tem razão. E muitas mulheres não gostam de velocidade. Eu tinha um amigo na universidade que as meninas chamavam de Rapidinho.

_Lá vem você com gracinha.

_Eu? Quêisso, estou levando um papo sério. Estamos na estrada pra Uberlândia, faltam só quatro horas de viagem. Do que eu estava falando?

_Do seu problema de memória.

_Lembrei. Eu falava do Rapidinho. Você sabe a piada do casal de coelhinhos? Vai ser bom, não foi? Rá!Rá!Rá! Pois de acordo com as meninas, o Rapidinho era pior. O sujeito era o Airton Senna das garotas da universidade. Plunct, plact, zuumm, pode sair sem problema algum.

_É melhor você contar depois. As crianças podem ouvir.

_Nada. Elas estão dormindo. E é bem rapidinho, sem querer fazer trocadilho.

_Na verdade, eu não quero saber.

_Tudo bem, tudo bem, não falo mais nada.

A estrada parecia ter ficado bem reta, de repente, e tudo ficou monótono também. Era possível ver enormes plantações de soja e cana. Em algumas, grandes estruturas de irrigação estavam em funcionamento. Era a terceira vez que tocava um CD dos Beatles. Nuvens gordas, parecendo com chumaços fofos de algodão, se comprimiam no céu. Uma placa com um grande veado saltando passou num flash, à direita.

_Desculpe. Mas já conversamos assim, antes. Quando você tira umas pessoas do bolso, fala de umas coisas que nunca falou antes, eu já desconfio. Não existe nenhum Rapidinho, não é? Nunca existiu. Às vezes eu acho que você fica testando diálogos comigo.

_Não, é sério. O Rapidinho era legal, super gente boa. E acho que eu já tinha falado dele antes. Olha o táxi, ploft, o quê, ploft, hã?, ploft.

_Não, nunca falou. Tenho certeza.

_Seja como for, eu não fico testando diálogos. Que coisa mais estranha para se dizer!

_Mais estranho que falar de deitar o cabelo?

Algumas dezenas de quilômetros mais tarde, o ritmo de plantações havia aumentado e depois diminuído um pouco. As nuvens agora estavam mais esparsas e manchadas de cor-de-rosa. Fazia calor mesmo a cento e dez por hora. O CD dos Beatles estava guardado. Ela não agüentava mais. Depois de uma breve parada para ir ao banheiro e lanches rápidos, a viagem continuou.

_Já reparou que a gente conversa em círculos?

_ A gente, não. Vo-cê conversa em círculos.

_Não, é sério. Plunct, plact, zuuum...Daqui a pouco vamos falar de novo em deitar o cabelo e velocidade, você vai ver.

_Se depender de mim, não vamos, não.

_E se eu dissesse que sim?

_Sim, o quê?

_Os diálogos.

_Você vai admitir que testa diálogos comigo?

Mas antes que ele dissesse alguma coisa, um motoqueiro ultrapassou o carro a toda velocidade.

_Você viu o louco? Sem capacete!

_Deitou o cabelo, né?

E com um ar de triunfo, ele colocou o disco do Balão Mágico. As crianças acordaram e cantaram em coro o refrão de Plunct, Plact, Zum.


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