terça-feira, 1 de novembro de 2011

O tio que fugiu da guerra



The Beatles - Sgt. Pepper's Lonely Hearts Club Band

Meu pai usa bigode. Nele fica bem. Em mim, não. Eu já tentei, fico parecendo uma caricatura. Mas no meu pai fica legal, ele fica com um ar de autoridade, senhorial, parece que aumenta a importância dele. Mesmo para mim, o bigode do meu pai parece conferir a ele alguma coisa extra e intangível, transmite uma segurança, uma identidade inequívoca, parece ampliar o que é admirável.

O bigode do meu pai é totalmente branco, assim como os cabelos. As sobrancelhas também são brancas. Pensando bem, isso me ocorreu agora e é até engraçado, se ele usasse barba longa e deixasse os cabelos finos crescerem, ficaria um senhor Papai Noel. O único senão é que meu pai é magro. Então seria preciso uma barriga falsa, um enchimento de algodão, para dar a impressão correta. Não, não funcionaria. Esqueça isso.

Minha mãe gosta muito de contar a história de quando o meu pai tirou o bigode. Foi há muito tempo, eu devia ter uns cinco, seis anos. Até então, eu nunca havia visto o meu pai sem bigode. Na época, não sei se é lembrança daquele tempo ou a memória recente de fotos que vivo manuseando, meu pai tinha um belo bigode preto. Usava óculos de tartaruga quadrados, terno quadriculado. Tinha cheiro de alfazema. Na época, todos nós tínhamos cheiro de alfazema, era o perfume predileto da minha mãe e único que existia em casa. Ele também só usava o relógio Orient com pulseira articulada de metal. O mostrador não tinha números, só um pequeno traço de metal em quatro pontos. Um dia meu pai me explicou que o relógio funcionava porque tinha um monte de rubis dentro. E os rubis eram muito, muito valiosos. Por causa desse relógio, eu achava que nós éramos ricos.

Meu pai usava um par de sapatos marrons que eu e meu irmão vivíamos querendo engraxar(quem engraxasse ganhava uma moeda). Por causa desse par de sapatos e pela expectativa de ganhar uma moeda, nós vigiávamos a chegada do meu pai. Era uma espera séria e abnegada. Nem eu nem meu irmão brincávamos depois das seis da tarde para vigiar a porta. O rádio sempre ligado tocava a hora do Angelus. Às vezes tocava uma Ave Maria lírica, clássica. No dia seguinte, colocavam Ave Maria do Morro, que também é muito bonita.

Nesse dia, meu pai demorou a chegar. Tinha ido ao barbeiro, mas nem eu e nem meu irmão sabíamos disso. Com o atraso, meu irmão se cansou e a porta ficou sendo vigiada só por mim. Era a minha chance de ganhar uma moeda por engraxar os sapatos. Os minutos se arrastaram longamente, as Ave Marias acabaram e a rádio voltou a programação normal. Eu esperava, firme. Perto da Voz do Brasil, a campanhia toca e eu corro para atender. É meu pai, estava sem bigode e tocara a campanhia para nos surpreender com a nova aparência. E deu certo, eu não o reconheço sem bigode. Na verdade, estou um pouco assustado.

_Quem é o senhor? - eu pergunto ao meu pai.

_Não está me reconhecendo? Sou seu tio que fugiu da guerra - disse meu pai.

Então eu fico apavorado mesmo, porque o homem tem a voz igual à do meu pai e está falando de uma guerra que eu não sabia que estava acontecendo.

_Vem cá, dá um abraço no seu tio - disse o meu pai.

Aí me desespero e trato de correr aos berros para dentro, porque não vou dar abraço em tio nenhum, por nada deste mundo.

Minha mãe conta que ela precisou me dar uns dois copos com água e açúcar para me acalmar. Ás vezes eu acho que me acalmei sozinho, porque fiquei pensando nos sapatos daquele tio, e em como eles eram parecidos com os do meu pai. De qualquer forma, meu pai nunca mais tirou o bigode.

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