terça-feira, 15 de novembro de 2011

Epifania



King Charles - Bam Bam

Houve uma época em que sonhava que escrevia livros. Lembro de ver páginas e páginas datilografadas, quando ainda datilografava. Para os meus olhos dentro do sonho, eram coisas do balacobaco. Eu nunca conseguia me lembrar do estava escrito exatamente, apenas guardava a sensação de estar desvendando mistérios profundos e de suma importância para a minha vida. Ao despertar, por vezes podia jurar que ainda sentia o sabor desse conhecimento, mas quando achava papel e lápis, tudo já se fora. Então corria para o chuveiro e procurava resgatar pedaços de páginas, mas nada surgia.

Por algum tempo, quando ainda acreditava nos olhos do sonho, eu mantive um caderno de notas e caneta ao lado da cama, prontos para uma anotação rápida. Mas o estratagema nunca funcionou. Estando devidamente preparado para anotações, ou não sonhava com as páginas ou tudo desaparecia ao abrir os olhos. Uma vez despertei durante a noite e anotei frases febrilmente, com as luzes apagadas, certo de que desta vez havia triunfado. Mas no dia seguinte, os garranchos eram incompreensíveis e o pouco que consegui entender não fazia o menor sentido ou era insignificante.

Então parei de acreditar nesses sonhos de escrever o livro dos sonhos. Misteriosamente, os sonhos se intensificaram. Eu agora escrevia o dobro ou o triplo de páginas enquanto dormia. Minha produção sonhadora era tão magnífica que às vezes, na velocidade estupefaciante e maluca do tempo dos sonhos, eu escrevia livros inteiros e suas continuações. Sim, eram dezenas e dezenas de páginas, histórias e estórias encadeadas, com revelações a rodo, metáforas estupendas, parágrafos inspirados, uma beleza. Quando acordava, nesse tempo, eu corria para ler os livros de verdade que eu guardava no banheiro e aquelas páginas reais ajudavam a me manter no clima de sonho e revelação. Eu me sentia o máximo. E às vezes, até acreditava que tinha escrito alguma coisa de verdade, que estava em alguma gaveta, em pastas azuis cuidadosamente protegidas.

Tão misteriosamente quanto surgiram, meus sonhos de escrever páginas e páginas de livros desapareceram. Não achei estranho porque agora também sonho menos sobre qualquer coisa. Os raros sonhos que aparecem trato a pão-de-ló, com o melhor dos meus instintos preservacionistas, mas nem isso faz com que me lembre deles. Mesmo assim, às vezes acordo e olho para o criado mudo e vejo se por acaso não anotei alguma coisa numa folha qualquer. É uma esperança boba, eu sei, mas é inevitável.

Outras vezes, não é sempre, é só de vez em quando, eu me pego a procurar as misteriosas pastas azuis em algum armário. Isso é menos frequente, mas por outro lado é mais sério. Estão por aqui, em algum lugar.

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