segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Correr faz mal à saúde






Jimi Hendrix - Crosstown traffic


_Miler, Charles Miler - ele disse.

Estava estirado no chão. A perna esquerda dobrada numa posição impossível. O braço direito também. Tentou se mexer.

_Por favor, não tente se mexer, é melhor ficar imóvel até a ambulância chegar - eu disse.

Vi Charles Miler esparramado no chão hoje, por volta das sete e meia, logo depois que deixei as crianças na escola. Um carro bloqueava metade da pista e havia ligado o pisca alerta. Talvez eu tivesse passado direto e apenas feito aquela cara de solidariedade fajuta quando a gente vê um acidente. Mas o pouco que tinha visto de Miler era muito parecido com um vizinho. Na dúvida, resolvi parar um pouco mais à frente e ver no que eu poderia ajudar. Voltei correndo até onde estava o atropelado. Muitas pessoas estavam paradas em volta, sem ação, olhando de olhos arregalados a vítima no chão. Quando estava a quatro passos, tive certeza de que não era o meu vizinho. Mas aí já era tarde demais para não me envolver.

O motorista que havia bloqueado a pista gritou para mim que já havia chamado a ambulância, que eu não precisava me preocupar. Só então entendi que todas as pessoas ali pensavam que era parente da vítima, porque tinha corrido até Charles Miler. Resolvi ser útil e me aproximei bem do atropelado. As roupas estavam um pouco sujas de vermelho. A cabeça tinha uma marca quase redonda de sangue. Ele mexia o braço direito, devia estar sentindo uma dor maluca. Foi quando eu perguntei o nome dele.

_O senhor foi atropelado, seu Miler. A ambulância já foi chamada. Mora aqui perto? Tem alguém em casa para a gente avisar?

_Não, minha mulher está em São Paulo. Não tem ninguém em casa.

_Em São Paulo? Talvez fosse melhor ligar para alguém aqui em Brasília. Tem alguém que a gente possa chamar?

Um sujeito estóico. Nenhuma reclamação. Nem mesmo uma careta de dor.

_Tenho dois filhos aqui - ele disse.

_Me diga um telefone, por favor.

Nessa hora ele fez um esforço grande, mas não conseguiu se lembrar de nenhum número. Tentou apalpar o bolso da calça. Mas disse para si mesmo que não havia trazido nada. Estava correndo. Era apenas a corrida matinal de todos os dias, antes de ir para o trabalho.

_Não adianta, não consigo lembrar - ele disse.

_O senhor se lembra do número da sua mulher?

Ele disse o número rapidamente. Quando a mulher atendeu eu disse que era um vizinho, morador do mesmo bairro. E também avisei que as notícias não eram boas.

_É sobre o seu marido. Ele foi atropelado, estou do lado dele, no meio da rua. A ambulância está a caminho. Ele está consciente e pediu para avisar a senhora. Também vou precisar do telefone do seu filho.

_Atropelado? Posso falar com ele? - ela disse.

Passei o celular para Miler. Só então vi a quantidade de sangue que havia no asfalto. Evitei olhar para a perna e o braço. Fraturas expostas não são coisas agradáveis de se ver. Miler mantinha a fleuma.

_Sim, sou eu. Não estou bem, não. Está feia a situação. Muito ruim. Estou quebrado, no chão. Diz o telefone dos meninos para ele. Eu não consigo lembrar.

Agora a mulher de Miler estava muito nervosa e também não conseguia se lembrar dos telefones. Começou a dizer um número mas mudou de idéia na metade. Eu me embolei com o teclado. Um outro sujeito apareceu ao meu lado com um celular.

_Vai ditando os números - ele disse.

A mulher de Miler queria me dizer outro número, mas eu disse que um só bastava. Também quis saber para onde o estavam levando. Mas a ambulância ainda não havia chegado. Eu disse que ela deveria ligar para os bombeiros depois. Agradeci ao outro sujeito que estendeu o telefone.

_Estou sem crédito, senão eu ligava - ele disse.

Disquei o número do filho de Miler. Atendeu ao segundo toque, com voz irritada.

_Quem é?

_É um vizinho. Seu pai foi atropelado. A ambulância está a caminho. Fale com ele.

Miler recuperou a fleuma totalmente.

_Sim. Fui. Estou com a perna e o braço quebrados. Também bati a cabeça - ele disse e me devolveu o telefone ao ouvir o barulho da ambulância.

_A ambulância está chegando. Daqui para frente é com os bombeiros e os paramédicos. Ligue para os bombeiros - eu disse.

A viatura da polícia chegou junto com os bombeiros. Os policiais estavam conversando com uma mulher aos prantos, que percebi ser a autora do atropelamento. Era de meia idade e não estava com roupa de trabalho. Usava moletom. Talvez voltasse da ginástica. No meio da rua, um dos tênis de Miller parecia colocar a língua de fora.
Olhei para trâs, mas não o vi. Os bombeiros e paramédicos fizeram um círculo de capas pretas e brancas em volta dele.

Caminhei até o meu carro. Só então percebi que um pouco mais à frente estava estacionado o carro do atropelamento. Faltava o espelho retrovisor do lado do passageiro. Daquele lado, a lataria estava um pouco amassada e o vidro do passageiro dianteiro estava trincado. Isso explicava o espelho retrovisor que eu havia visto no chão e a marca redonda de sangue na testa de Miler. Talvez o espelho retrovisor direito tivesse pegado no seu braço, com violência. O impacto o fez bater a testa no vidro do passageiro. Miler deve ter continuado o parafuso e caído com muita força no asfalto. O forte impacto provocou as fraturas do braço e da perna.

Ao chegar em casa, encontro o meu vizinho, que é mesmo bastante parecido com Miler. Contei o ocorrido rapidamente e meu vizinho falou que conhece o atropelado. E depois saiu para a sua corrida matinal.

Eu passei o dia com a vítima do atropelamento na cabeça. E basta fechar os olhos para que eu veja seu rosto ensanguentado e sua aparente tranqüilidade. Não consegui fazer muita coisa na oficina. O atropelado tomou conta dos meus pensamentos. Pensei, por exemplo, na forma como aquele velho conseguiu se manter firme e sem lamúrias mesmo espatifado no asfalto. Pensei em como ele pareceu ficar mais firme e resoluto quando falou com o filho no telefone. Pensei na maneira como conversou com a mulher, pedindo ajuda sem pedir, exortando firmeza e determinação. Pensei também no instante em que o vi olhando para mim pela primeira vez, ainda em dúvida se poderia confiar e me passar o telefone da sua mulher. Pensei também na motorista que o havia atropelado, uma dona-de-casa que saía cedo de casa. Para onde iria com tanta pressa? Ao supermercado? Ao amante? À missa? Comprar cigarros? Será que ficaria insegura para dirigir?

Tentei fazer piada de tudo, que é a melhor coisa para o esquecimento. Portanto, me imaginei contando essa história para o Cabeça.

-Big head, correr faz mal à saúde - eu diria, no início da história do dia em que fiz umas ligações celulares para uma pessoa atropelada.

Mas eu conheço o Cabeça. Do jeito que ele é, ele ouviria tudo na maior atenção, e depois diria que eu comecei a história da maneira errada.

_O certo é "atropelamento faz mal à saúde" - ele diria.

2 comentários:

Anônimo disse...

Voce está certo. Depois da corrida de domingo estou todo moído. Hoje é terça. Nunca mais corro uma meia maratona.
Cabeça.

Careca disse...

Big, você ainda vai correr uma maratona inteira, eu sei. Abraço,

Frase do dia