quinta-feira, 16 de junho de 2011

O melhor enterro segundo Feijó

Hoje eu estava retirando as cinzas da lareira, como eu prometi que faria, e fiquei lembrando de conversas velhas e amigos que não vejo há tempos. Remexer em cinzas é sempre uma coisa meio mórbida, sei lá, a gente acaba pensando em finitude e morte. Do pó viemos, ao pó voltaremos, essas coisas.

Enchi um balde grande de cinzas e ainda faltava muita coisa quando veio a lembrança de uma conversa que tive com o meu amigo Marcelo Feijó, o fotógrafo, na época em que tomávamos cerveja todos os finais de semana.

_Feijas, o que você acha de cremação? - eu disse.

_Virgem, cruzes, ave Maria! Gosto não!- disse o Feijó.

_Pô, Feijas, mas é muito mais prático - eu disse.

_Não gosto. E não acho prático. Mexer com fogo dá uma trabalheira, sai um fumacê. E ainda tem futum. Não, cremação não está com nada.

_Mas Feijas, não é preciso enterrar. Seu corpo vira um pó, uma coisa fácil de se transportar. Já imaginou, suas cinzas lançadas da torre Eiffel? Da estátua da liberdade? Do Cristo Redentor?

-Com a sorte que eu tenho, não chegaria nem ao Elevador Lacerda. Alguém acabaria me esquecendo num canto. Uma tia me usaria para fazer sabão. Não, senhor. Cremação é muito definitivo. Eu sou tradicionalista. Caixão, baú de madeira, carpideira, vela, choração, velha rezando terço, suco e biscoito.

_Mas tem carpideira, vela, velha, terço, choração, suco e biscoito em cremação também.

_Não tem nada. Eles marcam a hora e a torração é feita rapidinho. Pra mim não serve. Pra mim é enterro. E enterro tipo Glauber.

_Glauber?

_Glauber Rocha, pô! Você não viu o enterro do Glauber?

_Acho que não.

_Tinha tudo o que Nelson Rodrigues disse que teria no enterro do cafajeste: um monte de mulher linda chorando feito louca, meninos e meninas de várias cores e tipos, gente arrancando cabelos, velhinhas com terço, gente bebum, político discursando, banda de música, bloco de carnaval, passista, mãe e pai de santo, vendedora de cocada e acarajé, carrocinha de pipoca, churros, cachorro com cara triste, uma beleza. De repente, na hora de abaixar o baú, uma das mulheres se atira sobre o caixão. Ela quer ir junto. Ela está de blusa decotada, com sutiã rendado e mini-saia justa. Um sapato de salto alto agulha está na sua mão. Dá um vexame danado. Rasga a roupa. Grita. É retirada a custo por um monte de sujeitos de bigode, com jeito de cafetão. A mulher foge dos homens e se atira novamente sobre o caixão. Aí uma das velhinhas de preto, com vela acesa na mão, cochicha uma coisa no ouvido da mulher enlouquecida...

_Rapaz, teve tudo isso?

_Foi um enterro de cinema mesmo.

_O que será que a velhinha cochichou no ouvido da mulher?

_Não sei, mas não adiantou nada. Precisaram chamar os bombeiros para tirar a mulher de cima do caixão. Algumas crianças perderam a paciência e jogaram flores nela.

_Jura?

_Não tenho mais certeza. A realidade já se misturou com o meu desejo - disse o Feijó.

Lembro de ter feito uma pausa longa, imaginando se algum dia alguém pularia sobre o meu caixão desfigurado de amor e dor, sem se importar com o ridículo, rasgando roupa e arrancando os cabelos.

_Feijas?

_Fala.

_Será que o Glauber escreveu o roteiro do próprio enterro?

_Pode ser, pode ser. Era um gênio, o Glauber. Um gênio.

P.S: Duas frases mórbidas:
1- Tirante o Niemeyer, ninguém fica pra semente.
2- Quem haverá de cravar uma estaca no coração de Sir Ney?

5 comentários:

Paulo Bono disse...

Só penso nesse lance de cremação pra não dar trabalho de ninguém me carregar.

abraço, carecone

Anônimo disse...

Texto legal demais.
Abração
Tina

Careca disse...

Bono, esse trabalho só acontece uma vez, acho que as pessoas não vão se incomodar. :) Abç,

Careca disse...

Tina, grande abraço:)

leila disse...

caraca que post bom!

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