quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Tudo é metáfora, menos dente

Neste ano, meu filho de seis anos iniciou a troca de dentes, os de leite pelos definitivos. O primeiro dente-de-leite ele ficou curtindo a queda, prolongando até a gente enjoar de ver. Era um dentinho muito bonito, da mandíbula inferior, quase na frente.

Ele namorou a queda do dente com tudo a que tinha direito, fazia relatos de como o dente amolecia diariamente, de como não conseguia mastigar algumas coisas. Reclamava de pão, carne e até maçã sem casca. Evitava o lado do dente até para falar. E passava o dia amolecendo o dente com os dedos e depois com a língua. No final, o dentinho ficou parecendo uma portinhola para cachorro, igual às que a gente via nos desenhos animados e filmes americanos. O dente balançava para dentro e para fora. Mas nada dele se decidir a arrancar aquele pedaço de marfim.

Eu e a minha mulher já havíamos conversado sobre o tema e decidido não intervir. Mas depois de duas semanas vendo aquele dente balançar, um dia na hora do almoço eu me ofereci para tirar o Júlio eu mesmo. Quem é Júlio? Ora, depois de duas semanas, o dente já tinha nome e sobrenome, Júlio Iscárie Otis.

_Filho, eu posso tirar o dente, do mesmo jeito que eu vi no cinema. A gente amarra um ferro de passar bem pesado numa ponta da linha. E na outra, a gente amarra o Júlio. Aí, é só jogar o ferro pela janela. Não dói nada, eu já tirei dente assim, estou de prova.

Ele nem me respondeu. Balançou a cabeça e protegeu o dente, cobrindo a boca com as mãos enquanto eu falava em ferro de passar.

_Pensando bem, ferro de passar hoje em dia não pesa quase nada. Mas a gente podia amarrar um piano no Júlio e jogar pela janela, que tal?

Mesma reação. Balançou a cabeça e continuou a proteger o dente.

_A gente não ia conseguir um piano, mesmo. Mas e se a gente amarraaaaai.... eu disse, depois de levar um leve chute de aviso da minha mulher por baixo da mesa.

Graças a esse sinal secreto, percebi que era melhor não continuar com esse assunto na hora da refeição. Até porque minha menina, que vai fazer cinco anos agora em setembro, já olhava para mim de olhos arregalados.

_Careca, te manca! Parece que está planejando torturas para o menino. Sua filha está assustada! – sussurrou a minha mulher, acertando outro sinal secreto na minha outra canela. Esse doeu.

E com a força da psicologia desse argumento, mudei de assunto. Falei do tempo. Falei de futebol. Falei da importância de se cumprir o prometido. Falei de ética. E aí meu filho voltou a falar do Júlio.

_ Paiê, o Júlio vale quantas moedas para a Fada dos Dentes?

_Fada dos Dentes? – indaguei, tolamente, antes de levar mais um sinal secreto na canela. Ela fez o V de vitória para mim e aí a mensagem se tornou mais clara.

_Vale duas moedas, filho – eu disse, piscando para a minha mulher, que pela força do sinal secreto, é uma especialista em cotação de dentes no mercado de fadas.

E eu me levantei bem a tempo de evitar mais uma pergunta e um sinal secreto na minha canela. Eu sou um cara sensível. Eu percebo quando alguns assuntos são doloridos.

_Está tudo muito boom. Está tudo muito beem, mas eu realmente, realmente, preciso voltar para o trabalho.

Toda essa conversa aconteceu há mais de um mês. Agora meu filho acaba de arrancar, por conta própria, o seu terceiro dente de leite, todos da parte de baixo. E nesse pequeno lapso de tempo, a cotação da Fada dos Dentes já aumentou. Na segunda-feira, a Fada deixou vinte mangos.

_Caramba, pai! E esses eram os pequenos da parte de baixo, imagina os dentes da frente!? Vai dar pra comprar um nintendo!

2 comentários:

Liliane disse...

Fada Careca,

voce tá inflacionando o mercado dos dentes de leite...Devia ter continuado dando apenas moedas... Agora começo até a considerar refazer minha dentição para poder reivindicar alguns dinheiros a uma fada bondosa como voce... hehehe!

Liliane

Careca disse...

Liliane, nós, fados, somos muito generosos!

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